segunda-feira, 12 de março de 2018

Ao receber Temer, Cármen Lúcia virou problema

O Palácio do Planalto virou um bunker. Nele, não há inocentes. Apenas suspeitos e cúmplices. Quem olha para a fortificação enxerga pus no fim do túnel. Uma evidência de que a corrupção infeccionou os escalões mais graúdos da República. Numa crise moral dessa magnitude, não há meio termo: ou a pessoa é parte da solução ou ela é parte do problema. No sábado, Cármen Lúcia recebeu em sua casa Michel Temer, um presidente que não tem cara de solução. Graças a esse encontro, a comandante do Supremo Tribunal Federal ganhou instantaneamente uma aparência de problema.

Há um esforço pueril para atribuir à reunião ares de normalidade. Nessa versão, tudo não teria passado de um encontro institucional entre dois chefes de Poderes. Conversa mole. O encontro foi 100% feito de esquisitices: o ambiente doméstico, a atmosfera frouxa do final de semana, a pauta desconhecida, a omissão na agenda oficial… Tudo isso mais o fato de que Cármen Lúcia recepcionou em casa não um presidente do Poder Executivo, mas um prontuário que inclui duas denúncias criminais, dois inquéritos por corrupção e uma quebra de sigilo bancário.

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A conversa foi solicitada por Temer. Cármen Lúcia faria um enorme favor a si mesma se perguntasse aos seus botões: como os repórteres ficaram sabendo? Na saída, cercado por câmeras e microfones, o visitante foi questionado sobre o teor da prosa que tivera com a anfitriã. Perguntou-se se haviam tratado do inquérito sobre a propina de R$ 10 milhões da Odebrecht. E Temer: “Não. Só sobre segurança do Rio de Janeiro e do Brasil.” Hã, hã…

A lorota de Temer pendurou Cármen Lúcia nas manchetes na desconfortável posição de alguém que precisa dar explicações sobre atitudes inexplicáveis. Pintado para a guerra, Temer vê inimigos em toda parte. Sobretudo no Supremo. Na Segunda Turma, o relator da Lava Jato, Edson Fachin, incluiu o presidente no rol de investigados do inquérito sobre a Odebrecht. Na Primeira Turma, Luís Roberto Barroso acaba de quebrar o sigilo bancário de Temer no inquérito sobre a troca de propina pela edição de um decreto na área de portos.

Pela primeira vez desde a chegada de Pedro Álvares Cabral o Estado investiga e pune oligarcas com poderio político e empresarial. Numa quadra tão inusitada da vida nacional, Cármen Lúcia deveria conversar com o espelho antes de receber investigados em casa.

Se a ministra tivesse consultado sua consciência, ouviria sábios conselhos: “Não encontre Michel Temer. Se encontrar, prefira a sede do Supremo. Se cair num sábado, transfira para um dia útil. Se lhe pedirem segredo, faça constar da agenda. Se não especificarem a pauta, não entre na sala com menos de duas testemunhas.

Não espanta que Temer ainda se sinta à vontade para constranger a presidente do Supremo com pedidos de encontro. De um personagem crivado de inquéritos não se espera um comportamento recatado. O espantoso é que Cármen Lúcia aceite recebê-lo de qualquer jeito.

A suavidade imprópria reservada a Michel Temer não orna com a rigidez adequada que aproxima Lula da cadeia. Pela experiência que já acumulou na vida, a doutora já deveria saber que todo grande problema começa com pequenas explicações.

A história da riqueza no Brasil

O livro de Jorge Caldeira nasceu clássico. Para Mary Del Priore, a narrativa “é ao mesmo tempo tão monumental quanto síntese […] Com informações inéditas, Caldeira ilumina zonas de sombra” o que o distingue dos intérpretes clássicos da nossa história.

O autor atribui ao seu trabalho, quatro décadas de estudos, pesquisas e as facilidades proporcionadas pela revolução da informática. O livro é filho da inovação digital que permitiu a leitura dos documentos históricos em amplitude e profundidade, adicionando a antropologia (visão ampla da vida humana) e a econometria (ferramentas estatísticas utilizadas para entender variáveis econômicas mediante aplicação de um modelo matemático).

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Nenhum homem nesta terra é repúblico, nela zela ou trata o bem comum, senão cada um do particular
Frei Vicente do Salvador


Conclusões originais e surpreendentes: a economia colonial era maior e mais dinâmica do que a metropolitana e acumulou riqueza, o que fulmina o mito da economia de subsistência; a prevalência dos costumes sobre a lei escrita, decorrência da sólida aliança com o gentio Tupi-Guarani cujo caldo de cultura gestou uma série de instituições consuetudinárias flexíveis e pragmáticas a exemplo da estruturação familiar onde o casamento produzia filhos e agregava dotes, mesclando aliança política e acumulação econômica na medida em que as filhas de chefes eram recebidas em matrimônio, progredia o comércio de objetos de ferro (desconhecido pelos Tupis) e o Pau-Brasil; a informalidade tornou-se um espaço propício para o progresso colonial consolidando a prática do “fiado”; a mulher desempenhou um papel central na sociedade e na economia; a terra valor de mercadoria com curso comercial; a distribuição das heranças era equitativa (não havia direito à primogenitura); a decadência do ciclo do ouro fez surgir a figura do “tropeiro”, o desbravador do sertão ignoto com mercadorias de outras fontes produtivas: cacau, charque, farinha, algodão, arroz.

Os colonizados eram na essência notáveis empreendedores: enxergavam oportunidades, assumiam riscos. O colonizador tratou o Brasil como um apêndice improdutivo. Contentava-se, segundo Frei Vicente do Salvador, “em andar arranhando ao longo do mar como caranguejos […] Nenhum homem nesta terra é repúblico, nela zela ou trata o bem comum, senão cada um do particular”. Mostrava a cara para extorquir impostos.

E mais: por aqui deixou traços do formalismo centralizador e autoritário, sob espesso véu da ignorância. Os Livros das Ordenações Manuelinas (1521) consagravam a desigualdade natural; deixou pegadas do corporativismo, dos “direitos adquiridos”, reconhecidos em instância judicial, semente do “Fôro Privilegiado”.

Caro leitor, o magnífico livro deveria ser adotado nas nossas escolas. Ensina e inova.

Gustavo Krause

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Fotografia ganhadora na categoria: Mountains. Southern Highlands, Islândia.
Southern Highlands (Islândia)

Honorários sujos, um questionamento

Uma nova fase da Lava Jato no Rio de Janeiro, deflagrada recentemente contra mais um aliado do ex-governador Sérgio Cabral, acabou, por vias oblíquas, respingando também no escritório Teixeira, Martins & Advogados, responsável pela defesa do ex-presidente Lula. Essa etapa da investigação, batizada de Operação Jabuti, prendeu o ex-presidente da Fecomércio-RJ Orlando Diniz e desnudou pagamentos milionários de honorários advocatícios pela entidade.

Há a suspeita de que o dinheiro tenha sido desviado do Sesc e do Senac do Rio, órgãos que recebem verbas públicas e também foram presididos por Orlando Diniz, e pago ao escritório mencionado para que ele atuasse politicamente a favor dele no governo federal, contra questionamentos à sua gestão. Segundo informações, foram pagos R$ 68,3 milhões em honorários ao escritório. Uma testemunha, o diretor regional do Sesc-RJ Julio Cesar Gomes, afirmou que Diniz acreditava que o escritório de Roberto Teixeira “conseguiria a cadeira nacional para ele”, em referência à Confederação Nacional do Comércio, e “resolveria seu problema político”.

Uma gerente do Sesc-Senac, Veronica Gomes, disse que Diniz firmou uma “cooperação técnica” da Fecomércio-RJ com os dois órgãos, a partir de 2014, a fim de utilizar as receitas das entidades para arcar com gastos advocatícios “a partir da briga com a Confederação Nacional do Comércio, principalmente para recuperar a presidência do Sesc”.

Procurado pela imprensa, o escritório Teixeira, Martins & Advogados disse prestar serviços jurídicos à Fecomércio-RJ desde 2011 “em caso de alta complexidade”, ressalvando: “O escritório não comenta assuntos relativos aos seus clientes ou honorários advocatícios contratados, que são protegidos por sigilo legal”.


Não prejulgo o escritório de Roberto Teixeira. A investigação, certamente, iluminará a cena. Mas suscita a necessidade de uma reflexão e um questionamento ético a respeito do pagamento de honorários milionários de origem duvidosa, até mesmo criminosa, protegidos por um sigilo inaceitável numa democracia moderna e em rota de colisão com a nova sensibilidade que exige absoluta transparência nos assuntos de interesse público.

Na verdade, alguns advogados são o lado ganhador da Lava Jato. Todavia, se o dinheiro for fruto de corrupção, não poderia acabar no bolso de defensores milionários, a pretexto da proteção do manto do sigilo legal.

Sem prejuízo do inquestionável direito de defesa e da preservação das prerrogativas dos advogados, inerentes à democracia, é preciso abrir uma discussão ética acerca do alcance do sigilo legal. Faço aqui uma analogia com um tema quente da ética jornalística: o direito à privacidade de figuras públicas.

Relembro, amigo leitor, uma análise que fiz sobre o desnudamento midiático da relação amorosa do ex-presidente Lula e Rosemary Nóvoa Noronha, ex-chefe do gabinete da Presidência da República em São Paulo. A infidelidade conjugal do ex-presidente, conhecida nos bastidores das redações, foi escancarada numa edição da Folha de S.Paulo: Poder de assessora vem de relação íntima com Lula, cravou a chamada de primeira página.

A jornalista Suzana Singer, então ombudsman do jornal, fez oportuna análise da matéria. Sem usar a palavra “amante”, a Folha contou que, nas 23 viagens internacionais em que Rosemary acompanhou Lula, a então primeira-dama, Marisa Letícia, nunca estava presente. Segundo a reportagem, havia um esquema especial que permitia o acesso de Rose à suíte presidencial nessas escapadas.

Seria um relacionamento de 19 anos, iniciado quando ela era bancária e ele, candidato derrotado à Presidência da República. “A Folha invadiu a privacidade de Lula? Sim. Era necessário? Sim”. As respostas de Suzana Singer às interrogações éticas, curtas e diretas, foram redondas. Concordei plenamente.

O jornalismo brasileiro, ao contrário da imprensa norte-americana, por exemplo, tende a preservar a intimidade dos homens públicos. As escapulidas dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Figueiredo, conhecidas e comentadas nas rodas jornalísticas, nunca migraram para as manchetes dos jornais. Os episódios, todos, poderiam ser “interessantes” para o público (despertavam curiosidade), mas não eram de interesse público legítimo. Não estava em jogo dinheiro público.

O caso Lula, no entanto, foi bem diferente. De acordo com a Polícia Federal, Rosemary conseguiu, entre outras coisas, colocar em postos estratégicos do governo amigos corruptos que vendiam pareceres jurídicos favoráveis a empresários. Rose, gabando-se de sua relação íntima com Lula, tinha influência no Banco do Brasil. Trabalhou pela escolha do então presidente do banco, Aldemir Bendine, e indicou diretores da instituição. Como foi possível que Rose, uma antiga secretária do PT, acumulasse tanto poder a ponto de influir em setores nevrálgicos do governo? Tudo isso, rigorosamente de interesse social, só ganhou dimensão pública graças ao trabalho da imprensa.

Só isso, e não é pouco, já justificaria a invasão da privacidade do ex-presidente Lula. A defesa do direito à intimidade não pode ser usada para impedir a investigação e revelação pela imprensa de informações de evidente interesse público.

A evolução do alcance do direito à privacidade pode inspirar uma serena discussão sobre os limites do sigilo que protege os honorários dos advogados. Não existem direitos absolutos. A sociedade deve conhecer a origem e os valores que abastecem defesas milionárias. Pensemos numa situação extrema: é razoável que milhões de reais despejados na defesa de narcotraficantes permaneçam protegidos pela capa do sigilo? Dinheiro de origem duvidosa, roubado da população, pode ir para o bolso de advogados, numa boa? E tudo protegido pela força do anonimato.

É um tema polêmico? Sim. Mas como está, não dá. Está na hora de a OAB abrir uma discussão. Com serenidade, mas com seriedade.

A pregação dos profetas

O drama dos bons políticos

Os eleitores estão de partida. Mas não sabem para onde. Querem que alguém aponte um caminho no qual acreditem. É aí que mora o perigo do senso comum

O Brasil está mais ou menos como aquele cavaleiro descrito pelo escritor tcheco Franz Kafka, no conto A Partida:
— Para onde cavalga, senhor?— Não sei direito — eu disse —, só sei que é para fora daqui, fora daqui. Fora daqui sem parar; só assim posso alcançar meu objetivo.— Conhece então o seu objetivo? — perguntou ele.— Sim — respondi — Eu já disse: “fora daqui”, é esse o meu objetivo.

É mais ou menos assim que vamos às eleições de 2018. As pesquisas mostram uma desorientação muito grande da maioria dos eleitores. Não é por causa da inelegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), nem em razão da liderança resiliente do deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ). O percentual de indecisos na eleição varia de 38% a 42%, considerando-se todos os candidatos pesquisados. Numa eleição relâmpago, com 45 dias de campanha, qualquer coisa pode acontecer, inclusive nada de extraordinário.
Comecemos, pois, pelo extraordinário. Os projetos mais radicais à mesa são os de Bolsonaro e de Guilherme Boulos, o líder dos sem-teto lançado pelo PSol. Radicais de direita e esquerda, respectivamente. Ambos são regressistas do ponto de vista do papel do Estado e da relação do Brasil com o mundo. São projetos excludentes entre si, mas que têm em comum o anacronismo ideológico de direita e de esquerda. Eleitoralmente falando, Bolsonaro tem muito mais densidade do que Boulos. É beneficiado por uma certa reação conservadora de parcelas da sociedade à violência, ao desemprego e à corrupção, principalmente, o eleitorado evangélico. Boulos busca os órfãos de Lula com o antigo radicalismo petista, que não cola mais, por causa da Operação Lava-Jato.

Fora esses dois extraordinários, temos Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede), Álvaro Dias (Podemos), Geraldo Alckmin (PSDB) e Rodrigo Maia (DEM) com candidaturas formalizadas. O presidente Michel Temer ainda costeia o alambrado, como diria o falecido Leonel Brizola. E o PT não sabe ainda quem será o substituto de Lula, embora o nome mais cotado seja o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad. Os eleitores de esquerda, centro-esquerda, centro-direita e direita estão sendo disputados por essa turma. Por enquanto, todo mundo pode virar ou continar japonês.

O que pode fazer diferença na campanha para esses candidatos? Em primeiro lugar, o recall de campanhas anteriores. Casos de Marina, Ciro e Alckmin. Em segundo, os recursos financeiros e o tempo de televisão. Vantagens para Haddad, Alckmin e Maia. Em terceiro, as estruturas de poder e capilaridade partidária, idem. Quarto, a imagem do candidato em relação à Lava-Jato e às propostas que seduzam os eleitores. É aí que o jogo pode haver muita diferença. Finalmente, a proposta política. Nesse quesito, ninguém apresentou ainda um programa exequível. E, ademais, como diz o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a proposta precisa ser traduzida e “fulanizada” para seduzir os eleitores.

De volta ao cavaleiro kafkiano, os eleitores estão de partida. Mas não sabem para onde. Querem que alguém aponte um caminho no qual acreditem. É aí que mora o perigo do senso comum. A saída pode ser um não caminho, um precipício. O ambiente facilita a vida dos demagogos e dos populistas, que oferecem soluções fáceis para uma situação difícil e complexa. Na eleição, todos são tentados a isso. Mas há os que acreditam nesse tipo de narrativa, como aconteceu com a ex-presidente Dilma Rousseff, que deu com os burros n’água, e os que sabem que não é por aí. O caminho a percorrer é pedregoso, difícil, e não dará vida fácil para ninguém.

O Brasil precisa da estabilidade da moeda, de taxas de juros baixas, de crédito acessível e de investimentos maciços em infraestrutura. Mas não pode garantir um cenário dessa ordem com o governo gastando mais do que arrecada e sem a reforma da Previdência. O país precisa crescer e gerar empregos, mas não tem como fazer isso sem aumentar a produtividade. Para isso, precisa melhorar a qualidade da educação, de saúde da população e de segurança dos cidadãos. O rol de necessidades de um ciclo virtuoso de desenvolvimento não se resolve com mágica. Entretanto, é difícil vencer as eleições com esse discurso, depois de uma recessão que gerou 14 milhões de desempregados. Esse é o problema dos bons políticos.

O poder absoluto te dá asas...

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Se você pegar no mais ardente dos revolucionários, e der poder absoluto a ele, dentro de um ano ele será pior do que o próprio czar
Mikhail Bakunin

A esquerda diante da democracia

“Este nosso encontro talvez fosse improvável”, sugeriu Guilherme Boulos no lançamento de sua pré-candidatura presidencial, diante de Caetano Veloso e um cortejo de celebridades. Improvável por quê? “O que nos uniu foi o avanço do conservadorismo, que nos forçou a buscar alianças novas”, explicou o candidato pelo PSOL. De acordo com a narrativa que vai sendo alinhavada pela esquerda, o Brasil já não vive numa democracia. O “golpe do impeachment” abriu uma fase de “autoritarismo” que equivale a “voltar 50 anos atrás” (portanto a 1968, segundo Boulos) e se destina a “retirar direitos” trabalhistas e previdenciários. Não é um bom caminho para enfrentar os desafios do ciclo pós-Lula.

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Boulos subordina o PSOL a uma narrativa que nasceu como tática do PT para conservar a hegemonia lulista sobre a esquerda na sequência da desmoralizante derrota representada pelo impeachment. Do ponto de vista petista, a denúncia do “golpe de 2016” não passa de um expediente oportunista — e a prova disso é que o PT já anunciou a retomada da política de coligações eleitorais com os “golpistas” do MDB e do “centrão”. Mas aquilo que serve ao lulismo não serve à esquerda pós-lulista.

Taticamente, a denúncia do “autoritarismo” implica a “unidade das esquerdas” — isto é, uma frente formal (como quer Tarso Genro) ou informal (como prefere Boulos), no modelo da aliança de resistência à ditadura militar. Na prática, monta-se uma camisa de força eleitoral: após o primeiro turno, os partidos e movimentos de esquerda devem se juntar às candidaturas remanescentes do “campo da esquerda”, que tendem a ser aquelas patrocinadas pelo PT.

No caso da disputa presidencial, a esquerda fica virtualmente comprometida com o candidato ungido por Lula (seja ele Jaques Wagner, Fernando Haddad, Ciro Gomes ou outro). “Jamais vou pedir para você não ser candidato”, garantiu Lula em mensagem exibida no lançamento da campanha de Boulos, explicitando o sentido da parceria. Por essa via, o lulismo sobrevive ao ocaso político de Lula, ancorando as forças de esquerda ao redor de um cais em ruínas.

Estrategicamente, a negação da realidade é a pior das bússolas políticas. No Brasil, estão ausentes todos os traços clássicos dos regimes autoritários. As liberdades públicas não foram tocadas. A separação de poderes ficou comprovada pelo próprio impeachment e, no governo Temer, pelo fracasso do projeto de reforma previdenciária, dois lances de confronto do Congresso com o Executivo. A independência do Judiciário é atestada pelos inquéritos e denúncias contra Temer. O voto de Gilmar Mendes decidiu o habeas corpus a favor de José Dirceu. Lula está solto; Eduardo Cunha, preso. Apesar do que se propaga falsamente a partir do PT e do PSOL, os militares não são (nem poderiam ser) usados para reprimir manifestações políticas.

O Boulos que fala em retorno a 1968 — assim como as celebridades (devo dizer “intelectuais”?) que o cercam — reflete a dificuldade da esquerda pós-lulista de encarar os dilemas reais de nossa democracia bastante imperfeita. A narrativa farsesca, que soa como música aos ouvidos de convertidos, tem o efeito de isolar seus arautos numa redoma folclórica. Lula qualificou Boulos como “pessoa de muito futuro na política”. O dúbio elogio equivale a excluí-lo do presente.

A fonte de inspiração de Boulos e de boa parte do PSOL é o espanhol Podemos, fundado em 2014 sob o influxo das manifestações anti-austeridade. Atraído pelo castrismo e pelo chavismo, o partido esquerdista classificou a monarquia parlamentar espanhola (o “regime de 1978”) como uma versão amenizada do franquismo. Nutrindo-se da recessão e dos escândalos de corrupção, o Podemos decolou como um míssil, chegando perto de ultrapassar o Partido Socialista para figurar como segundo partido do país. Contudo, entrou em declínio após as eleições gerais de dezembro de 2015, vitimado por seu próprio discurso de negação da democracia.

O ato desastrado inicial foi a recusa de um pacto de governo com os socialistas, o que propiciou a recondução dos conservadores ao poder. O ato seguinte foi uma aliança tácita com os nacionalistas catalães, que o conduziu a repetir o epíteto de “bloco monárquico” usado pelos separatistas contra todos os partidos constitucionalistas. A reação do eleitorado, expressa nas pesquisas de opinião, já empurrou o Podemos à condição de quarto partido do país. Farsas têm consequências — eis a lição espanhola.

Hipnotizada pelo passado, a esquerda pós-lulista ainda cultua a Cuba dos Castro, jura fidelidade ao regime agonizante de Nicolás Maduro, recusa-se a admitir o fiasco da política econômica dilmista, traça paralelos delirantes entre o governo Temer e o regime militar e, sobretudo, vira as costas ao diálogo democrático. Três décadas atrás, o PT rejeitou assinar a Constituição de 1988, a mesma que lhe permitiu governar o Brasil por 13 anos. Hoje, imitando o Podemos, seus presumíveis sucessores crismam todos os demais atores políticos como um “bloco autoritário”.

2018 não é 1968. Alguém precisa dizer isso a Boulos.

Demétrio Magnoli

Paisagem brasileira

CENA LINDA DE UMA MULHER  GUERREIRA

A palavra 'mal' foi abolida do nosso vocabulário covarde

Ficar sem palavras é a pior coisa que pode acontecer a quem vive delas. Mas há sempre uma primeira vez.

Amigos sábios tinham feito um ultimato: ou eu assistia a "O Ato de Matar", o premiado documentário de Joshua Oppenheimer, ou eles cortavam relações comigo.

Cedi. Tinham razão. É talvez a mais radical e perturbadora experiência cinematográfica dos meus últimos longos anos.

Cenário: Indonésia, dias de hoje. Tema: as matanças organizadas por milícias pró-Suharto depois do golpe militar de 1965 para limpar o país de "comunistas" (um termo suficientemente vago que tanto se aplica a militantes marxistas como a imigrantes chineses).

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Mas o melhor de tudo são os atores principais: nada menos que os próprios carrascos, hoje envelhecidos, e que partilham com Oppenheimer lembranças e técnicas com uma naturalidade que está para lá do bem e do mal. E, quando digo "atores", a palavra é exata: eles não apenas falam abertamente dos seus crimes como encenam os crimes para explicar melhor.

O caso de Anwar Congo merece destaque. No início do documentário, encontramos a lenda (tradução: mais de mil vítimas). E o que impressiona no velho Anwar é a sua alegria –não a alegria de viver, mas a alegria que sente na evocação da matança.

Eu sei, eu sei: a palavra "mal", hoje, foi abolida do nosso vocabulário covarde. O mal nasce da pobreza, da ignorância, da doença. Ou, melhor ainda, é um resquício lamentável de fantasias religiosas.

Para Anwar, o mal é uma afirmação da existência. Os detratores das milícias gostam de usar a palavra "gangsters". Mas Anwar gosta dessa palavra: "gangster", diz-nos ele com a sabedoria de um filólogo, significa "homem livre". E os "homens livres" criam as suas próprias leis.

Anwar é uma espécie de existencialista do açougue que aprendeu tudo com o cinema americano. A pose, os ternos, os gestos. E, claro, as técnicas.

Com ele visitamos o terraço de uma casa que servia de matadouro nos anos loucos de 1965 e 1966. Era uma terrível sujidade –o sangue, o cheiro. Quem aguentava aquilo?

Poucos. Ninguém. Os nazistas, que eram os nazistas, só optaram pelas câmeras de gás porque os fuzilamentos em massa andavam a perturbar a saúde psíquica dos soldados do Reich.

Então o nosso "gangster" começou a estrangular com arame, o método mais barato e eficaz. Ele próprio, com um amigo, mostra-nos como a coisa funcionava. É tão fácil como andar de bicicleta –e ele conta tudo como quem fala de uma bicicleta.

E a consciência? Haverá uma consciência que tudo vigia e condena?

Boa pergunta. Uma pergunta que os carrascos fazem uns aos outros. O nosso Anwar, apesar da alegria, confessa a um deles que ainda tem pesadelos. O outro desvaloriza: diz-lhe que é uma questão de nervos mas que um bom médico cura tudo.

Depois, em momento que parece ter sido escrito por Dostoiévski "lui même", ainda aconselha: o segredo de matar com a consciência tranquila é encontrar uma boa desculpa para o ato.

E para quem pensa que existem leis internacionais –ou, jocosamente, "direitos humanos"– que impedem esse ato, um dos carrascos decide filosofar: a Convenção de Genebra foi escrita por vencedores. Ali, na Indonésia, eles são os vencedores. O código que interessa é outro: a Convenção de Jacarta, digamos.

Era Adam Smith, na sua "Teoria dos Sentimentos Morais", quem dizia que só somos verdadeiramente humanos quando temos a capacidade de nos imaginarmos no lugar do outro.

"O Ato de Matar" apresenta-nos o resultado dessa "falha de imaginação": a transformação do ato de matar em simples rotina cotidiana. Como escovar os dentes, comer, fumar.

Terminei o documentário sem palavras. E depois, consultando as notícias do dia, lá encontrei as polêmicas do momento. Como, por exemplo, as acusações pungentes de que os filmes de James Bond são "sexistas" e merecem boicote.

Em condições normais, tanta estupidez teria o dom de me enervar. À luz do documentário, olho para elas com uma brandura paternal. As cabecinhas vazias do Ocidente que perdem tempo com essas coisas são, afinal, crianças brincando no jardim.

Promessa não mata fome

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Um povo já não acredita nas promessas dos governantes, porque perdeu a vontade fanática que o levava a acreditar e a tecer razões para isso 
Agustina Bessa-Luís

Aos infiéis, os milhões

Começou na quinta-feira e vai até 7 de abril o leilão eleitoral que deve arrematar mais de 50 dos 513 deputados federais e uma centena dos 1.024 estaduais do país. Ainda que amparado por lei, aprovada pelos próprios beneficiários no ano passado, o troca-troca é um dos absurdos do sistema brasileiro. Um desrespeito desmedido ao eleitor.

E não é o único: somam-se a ele os fundos públicos (o eleitoral, de R$ 1,7 bilhão, e o partidário, de R$ 888 milhões), o privilégio para os ricos, que poderão empenhar suas fortunas pessoais na campanha, o conto da carochinha de que o caixa 2 foi excluído com o advento do financiamento do Tesouro. E ainda a permissão para coligações de conveniência ou os olhos vesgos para os palanques antecipados – sabe-se lá custeados por quem -, visíveis a olho nu e sem qualquer punição.

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A janela da infidelidade, que há dois anos mexeu com a filiação de 90 deputados federais, é um escândalo. Contraria o princípio da proporcionalidade, critério pelo qual, goste-se ou não, os parlamentares são eleitos. Por ele, candidatos com poucos votos chegam ao Olimpo puxados por campeões, e votos conferidos só à legenda contam para aumentar a bancada do partido.

A família e apoiadores do deputado-candidato Jair Bolsonaro inauguraram a janela 2018, levando sete parlamentares para o minúsculo PSL, que pulou de três para 11 deputados e imagina fechar a vidraça com pelo menos 20. O DEM elegeu 31 federais em 2014, tem 33, e sonha entrar abril com 45. O PR quer pular dos atuais 37 para 42, e o PP, hoje com 45, sete a mais do que elegeu há quatro anos, imagina chegar a 60 deputados.

As perdas devem sobrar para o PT e o PSDB, que de 2014 para cá já viram suas bancadas serem reduzidas de 68 para 58 e de 54 para 46, respectivamente.

A pulação de galho em galho sempre foi uma excrecência, mas hoje a barganha é ainda mais desavergonhada.

Até 2014, a corrida atrás dos deputados de outras siglas se dava, basicamente, para ampliar segundos no horário de propaganda eletrônica dito gratuito. Não raro – e nada garante que não irá se repetir – utilizavam-se também coligações com partidos de aluguel para satisfazer a mesma cobiça.

Agora, além do rádio e TV, o argumento é dinheiro vivo de fundos pagos por todos os brasileiros – R$ 1,5 milhão ofertam o PT, MDB e PSDB, R$ 1,8 milhão a R$ 2 milhões cobre o PTB, R$ 2,5 milhões grita o DEM.

Lances feitos e administrados diretamente pelos donos dos partidos.

Em pleno século XXI, o Brasil caminha firme e forte para institucionalizar o coronelismo. Só terá dinheiro na campanha eleitoral quem o chefe mandar. Ou os ricos e muito ricos, o que no es lo mismo pero es igual.

Só o eleitor, negando votos aos oportunistas, pode consertar esse descalabro.

Mary Zaidan