Há a suspeita de que o dinheiro tenha sido desviado do Sesc e do Senac do Rio, órgãos que recebem verbas públicas e também foram presididos por Orlando Diniz, e pago ao escritório mencionado para que ele atuasse politicamente a favor dele no governo federal, contra questionamentos à sua gestão. Segundo informações, foram pagos R$ 68,3 milhões em honorários ao escritório. Uma testemunha, o diretor regional do Sesc-RJ Julio Cesar Gomes, afirmou que Diniz acreditava que o escritório de Roberto Teixeira “conseguiria a cadeira nacional para ele”, em referência à Confederação Nacional do Comércio, e “resolveria seu problema político”.
Uma gerente do Sesc-Senac, Veronica Gomes, disse que Diniz firmou uma “cooperação técnica” da Fecomércio-RJ com os dois órgãos, a partir de 2014, a fim de utilizar as receitas das entidades para arcar com gastos advocatícios “a partir da briga com a Confederação Nacional do Comércio, principalmente para recuperar a presidência do Sesc”.
Procurado pela imprensa, o escritório Teixeira, Martins & Advogados disse prestar serviços jurídicos à Fecomércio-RJ desde 2011 “em caso de alta complexidade”, ressalvando: “O escritório não comenta assuntos relativos aos seus clientes ou honorários advocatícios contratados, que são protegidos por sigilo legal”.
Não prejulgo o escritório de Roberto Teixeira. A investigação, certamente, iluminará a cena. Mas suscita a necessidade de uma reflexão e um questionamento ético a respeito do pagamento de honorários milionários de origem duvidosa, até mesmo criminosa, protegidos por um sigilo inaceitável numa democracia moderna e em rota de colisão com a nova sensibilidade que exige absoluta transparência nos assuntos de interesse público.
Na verdade, alguns advogados são o lado ganhador da Lava Jato. Todavia, se o dinheiro for fruto de corrupção, não poderia acabar no bolso de defensores milionários, a pretexto da proteção do manto do sigilo legal.
Sem prejuízo do inquestionável direito de defesa e da preservação das prerrogativas dos advogados, inerentes à democracia, é preciso abrir uma discussão ética acerca do alcance do sigilo legal. Faço aqui uma analogia com um tema quente da ética jornalística: o direito à privacidade de figuras públicas.
Relembro, amigo leitor, uma análise que fiz sobre o desnudamento midiático da relação amorosa do ex-presidente Lula e Rosemary Nóvoa Noronha, ex-chefe do gabinete da Presidência da República em São Paulo. A infidelidade conjugal do ex-presidente, conhecida nos bastidores das redações, foi escancarada numa edição da Folha de S.Paulo: Poder de assessora vem de relação íntima com Lula, cravou a chamada de primeira página.
A jornalista Suzana Singer, então ombudsman do jornal, fez oportuna análise da matéria. Sem usar a palavra “amante”, a Folha contou que, nas 23 viagens internacionais em que Rosemary acompanhou Lula, a então primeira-dama, Marisa Letícia, nunca estava presente. Segundo a reportagem, havia um esquema especial que permitia o acesso de Rose à suíte presidencial nessas escapadas.
Seria um relacionamento de 19 anos, iniciado quando ela era bancária e ele, candidato derrotado à Presidência da República. “A Folha invadiu a privacidade de Lula? Sim. Era necessário? Sim”. As respostas de Suzana Singer às interrogações éticas, curtas e diretas, foram redondas. Concordei plenamente.
O jornalismo brasileiro, ao contrário da imprensa norte-americana, por exemplo, tende a preservar a intimidade dos homens públicos. As escapulidas dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Figueiredo, conhecidas e comentadas nas rodas jornalísticas, nunca migraram para as manchetes dos jornais. Os episódios, todos, poderiam ser “interessantes” para o público (despertavam curiosidade), mas não eram de interesse público legítimo. Não estava em jogo dinheiro público.
O caso Lula, no entanto, foi bem diferente. De acordo com a Polícia Federal, Rosemary conseguiu, entre outras coisas, colocar em postos estratégicos do governo amigos corruptos que vendiam pareceres jurídicos favoráveis a empresários. Rose, gabando-se de sua relação íntima com Lula, tinha influência no Banco do Brasil. Trabalhou pela escolha do então presidente do banco, Aldemir Bendine, e indicou diretores da instituição. Como foi possível que Rose, uma antiga secretária do PT, acumulasse tanto poder a ponto de influir em setores nevrálgicos do governo? Tudo isso, rigorosamente de interesse social, só ganhou dimensão pública graças ao trabalho da imprensa.
Só isso, e não é pouco, já justificaria a invasão da privacidade do ex-presidente Lula. A defesa do direito à intimidade não pode ser usada para impedir a investigação e revelação pela imprensa de informações de evidente interesse público.
A evolução do alcance do direito à privacidade pode inspirar uma serena discussão sobre os limites do sigilo que protege os honorários dos advogados. Não existem direitos absolutos. A sociedade deve conhecer a origem e os valores que abastecem defesas milionárias. Pensemos numa situação extrema: é razoável que milhões de reais despejados na defesa de narcotraficantes permaneçam protegidos pela capa do sigilo? Dinheiro de origem duvidosa, roubado da população, pode ir para o bolso de advogados, numa boa? E tudo protegido pela força do anonimato.
É um tema polêmico? Sim. Mas como está, não dá. Está na hora de a OAB abrir uma discussão. Com serenidade, mas com seriedade.
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