sábado, 18 de junho de 2022

Brasil encarna o mito

 


Os cinco nomes do marechal

Naquele longínquo 31 de março de 1964, estagiando num jornal, eu sofria com a inexperiência e a timidez. Quando sobreveio o golpe, tomei coragem e perguntei a um político importante quem, ao ver dele, seria o presidente da República. A resposta veio em três segundos: o Exército só aceitará cinco nomes, Humberto Carlos de Alencar Castello Branco.

Para mim, todo golpe é ruim. Abomino todos os regimes de exceção. Mas antes ter um Castelo Branco, que pairava metros acima dos demais, que muitos outros que nada tinham entre as orelhas. Castelo garantia que a intervenção militar seria de curta duração, dois ou três anos para acabar com o comunismo e a corrupção e implantar algumas reformas na economia.

Pouco tempo antes, chegara ao Brasil o brasilianista Alfred Stepan, que iria fazer uma tese sobre os militares. Tornamo-nos amigos até o recente falecimento dele. Stepan admirava Castelo e não tardou a conseguir acesso à alta oficialidade. Mas, sobre a promessa de Castelo de manter o Exército no poder por um curto período, Stepan não acreditava que ele lograsse tal proeza. Outros oficiais-generais lhe haviam dito precisamente o contrário. Não devolveriam o poder aos civis em menos de 20 anos.


Meus leitores, se os tenho, devem estar impressionados com a exatidão da ciência política. Stepan acertara em cheio. Castelo errou redondamente. Fato é, entretanto, que nos 56 anos decorridos desde aqueles diálogos, este campo de estudos que nos orgulhamos em denominar ciência foi posto em xeque pelo menos umas 50 vezes. Por isso insisto em perscrutar o futuro, fazendo entrevistas, revirando estatísticas ou pacientemente observando o voo dos pássaros, como faziam os antigos adivinhos romanos.

No momento, vejo somente tênues indícios de uma intervenção militar, nada além disso, e así quiera Diós que permanezca! Mas cá, na planície, fora da caserna e do governo, volta e meia vemos milhões de energúmenos vociferando por um novo 31 de março de 1964. Tal ideia lhes ilumina a cabeça e os faz saltitar de alegria. Creem piamente que o verde das fardas livrará nosso país de suas mazelas e desavenças. Em seus momentos de maior devaneio, cogitam que alguns tanques nas ruas trariam de volta nossa tradição de ameno convívio, acabariam com as desordens, nos livrariam da corrupção e do paradeiro econômico, da inflação e de tudo mais que nos desengrandece aos olhos do mundo civilizado.

É possível; tudo é possível. Nos espaços siderais da imaginação, tudo é possível. Alguns chegam mesmo a crer que paraísos políticos, uma vez estabelecidos, não se desfazem. Que a uma elite sábia e honrada se segue outra, esquecendo-se de que, na antiga Roma, governantes sábios e justos foram sucedidos por dementes como Nero, Calígula e Cômodo.

O leitor por certo percebeu que estou falando do desvario de umas poucas mentes doentias, confiante em que males de tal ordem não estão a nos espreitar. No fundo, sinto-me despreocupado, mas sentiria um alívio ainda maior se três espectros vez por outra não me atormentassem. Primeiro, sabemos que o Brasil e a América Latina são as mais perfeitas estufas do populismo, e que populismo, por definição, é um modo de agir político sempre propenso a atropelar as instituições. Em todas as latitudes, populistas são aqueles que não encontram conforto nos limites institucionais da democracia e conclamam o que entendem por “povo” para derrubá-la.

Segundo, a oferta de populistas aumentou. Em épocas pretéritas, os portadores de tal DNA populista apresentavam-se um de cada vez, apoiados por meia dúzia de policiais, e os golpes assemelhavam-se a meras operações de despejo. Foi o que se passou na Argentina em 1928, quando o desmiolado general Uriburu derrubou o presidente Yrigoyen e deu início à sucessão de tragicomédias que transformou a outrora próspera nação pampeana na caricatura que dela resta. No rastro da multiplicação de populistas, nós, brasileiros também teremos no dia 2 de outubro uma oportunidade de ouro de também nos transformarmos numa caricatura da quase caricatura que sempre fomos.

Se recaírmos na polarização iniciada em 2018, estará redondamente enganado quem pensar que acordaremos do pesadelo quando a Justiça Eleitoral der por encerrada a contagem dos votos. Se o enredo deste ano for o mesmo de 2018, seremos forçados a recordar que, comparada à situação de hoje, a de 1964 foi apenas um festival de blefes, uma peça de segunda personificada por artistas do gogó: Carlos Lacerda, de um lado, e o indefectível Almirante Aragão, do outro.

Seria tudo muito engraçado se nós também não nos tivéssemos transformado numa caricatura moderna daquela que antigamente já éramos. Hoje, nada mais parece nos impressionar. Pobres sempre fomos, mas, ao fim da Segunda Guerra, não era comum presenciarmos indivíduos disputando uma vaga para dormir debaixo de algum viaduto, ou para chegar primeiro na cata de restos de comida. A própria violência tornou-se mais violenta, gratuita e cruel.

Bolsonaro, um presidente treinado para matar e imune à dor alheia

Sabe quantas vezes Bolsonaro referiu-se pelo próprio nome ao indigenista Bruno Pereira e ao jornalista Dom Phillips desde que os dois desapareceram no último dia 5 e os seus corpos finalmente foram encontrados 11 dias depois?

Nenhuma. Repetindo: nenhuma vez Bolsonaro os chamou pelo próprio nome. Nem mesmo no comentário que fez ao pé da nota oficial da Funai publicada no Twitter lamentando a morte de Bruno. O comentário anódino limitou-se a duas linhas:

“Nossos sentimentos aos familiares e que Deus conforte o coração de todos”.

Familiares de quem? Sabe-se de quem porque o comentário está apenso à nota. Não fosse a morte do jornalista inglês, Bolsonaro não teria lamentado a de Bruno, como não lamentou a de Maxciel Pereira dos Santos, servidor da Funai, assassinado há dois anos.


Bolsonaro usou a expressão “esse inglês” para não dizer o nome de Dom Phillips, e “os dois” ou “ambos” para não dizer o nome deles. Comentou a nota da Funai porque foi aconselhado a fazê-lo por gente preocupada em que ele não ficasse totalmente mal na foto.

O que vai na mente escura e pantanosa do presidente do Brasil? O que o leva a não se importar com a vida dos outros? Verdade que ele foi treinado para matar, como já disse, e quem mata por profissão deve ser mais ou menos imune à dor que provoca.

“Morram os que tiverem de morrer”, ele disse durante a pandemia da Covid ao prescrever cloroquina para os que não quisessem ficar doentes. “Não sou coveiro.” Imitou uma pessoa arfando por falta de ar. Em Manaus, cerca de 30 morreram por falta de oxigênio.

Em 1998, como deputado federal, proclamou:

“Competente foi a cavalaria norte-americana que dizimou os índios no passado livrando-se de um problema”.

Eleito e empossado presidente, debochou:

“Dizem que a Dilma foi torturada e que fraturaram a mandíbula dela. Traz o raio X para a gente ver o calo ósseo. Olha que eu não sou médico, mas até hoje estou aguardando o raio X”.

O que o leva também a enxergar conspiração em tudo e no que não existe? De novo, sua formação militar. Sem inimigos, como os militares estariam prontos para ir à guerra em defesa do seu país? Os nossos não sabem o que é uma guerra há muito tempo.

Então, inventam inimigos internos para combater. Foi assim em 1964, quando suprimiram a democracia porque o comunismo a ameaçava. Contraditório, não? Sob o comando do ex-capitão, parte dos militares vê outra vez a democracia em perigo. Culpa do PT.

Antes de se eleger presidente, os generais tratavam Bolsonaro com o desdém reservado no passado às vivandeiras de quartéis. Agora, o exaltam com entusiasmo (nada a ver com o Viagra). Quem mudou? Os generais ou Bolsonaro? Os generais se rebaixaram.

É coveiro, sim

Em 2020, no auge da Covid, Jair Bolsonaro preferia passear de jet ski a visitar os hospitais abarrotados e solidarizar-se com os profissionais que arriscavam a vida. Enquanto brasileiros morriam por falta de oxigênio, Bolsonaro imitava uma pessoa lutando para respirar. Já então eram-lhe oferecidas vacinas, que ele desprezava em função da cloroquina. E, quando os cemitérios tiveram de abrir covas rasas para comportar milhares, ele celebrou essa tragédia com uma frase: "E daí? Não sou coveiro".

Agora Bolsonaro terá de ser coveiro. Está diante de dois mortos que o mundo não deixará insepultos: o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips. Queira ou não, são seus mortos, assassinados pelos exploradores, traficantes e pistoleiros a quem ele entregou a Amazônia. Por "ele", leiam-se Bolsonaro ele mesmo, seu cínico vice-presidente Hamilton Mourão, presidente decorativo do Conselho Nacional da Amazônia, e o ex-ministro Ricardo "Boiada" Salles.

Bruno e Dom foram mortos a tiros, esquartejados, possivelmente incendiados e enterrados na floresta. Não se sabe a que se reduziram seus corpos —ou "remanescentes humanos", como foram chamados pelas autoridades. É insuportável imaginar que dois seres humanos, até há pouco na plenitude de suas forças e virtudes, sejam neste momento material de laboratório e, pior ainda, em Brasília, não muito longe do homem que os responsabilizou pela própria morte chamando-os de "aventureiros" e "excursionistas".

Seja o que tiver restado deles, mesmo que uma unha, terá de ser entregue às suas famílias e sepultado —Bruno, aqui mesmo, e Dom, quem sabe em seu país. Era o que Bolsonaro mais temia: a prova física do crime. A partir de agora, ninguém mais, em qualquer parte, poderá dizer que o desconhece.

Os coveiros da Covid eram heróis. O coveiro da Amazônia pode ser chamado de muita coisa — você escolhe.

Cristão é de morte


Jesus Cristo não comprou pistola porque não existia na época
Jair Bolsonaro

A Amazônia não é brasileira

São tolos e mal informados os que pensam que a Amazônia é brasileira. Não. A floresta não pertence ao Brasil ou Colômbia, Venezuela, Peru, Equador e Guianas. Sua imensidão territorial se estende por estes países e colônias, mas sua importância ultrapassa toda e qualquer fronteira. Parece que vai demorar muito ainda até que se perceba que para salvar o mundo será necessária uma política globalmente estruturada para defender a Amazônia. Pode ser tarde. Por ora, quem tenta proteger a floresta de seus algozes são homens bons como Bruno Pereira e Dom Phillips. E estes são sistematicamente sabotados por governos ou assassinados por pessoas com interesses contrariados.

O que Bruno e Dom buscavam não era uma utopia, um sonho, um ideal. Eles lutavam por uma causa possível. A Amazônia tem solução. A primeira e mais urgente é entender que, embora não se questione as soberanias dos países amazônicos sobre seus territórios, é fundamental que haja participação mundial na defesa da floresta. Participação com recursos, equipamentos e homens. Não se trata de um território qualquer. Ao contrário. A simples busca pelos corpos e do barco de Bruno e Dom mostrou como é intrincada e complexa a região. Tampouco se pode ignorar a sua dimensão.


Países como Brasil, Venezuela e Colômbia, que mal conseguem controlar o crime nas suas grandes cidades, tornam-se ainda mais impotentes diante da enormidade da floresta. Vejam os exemplos do tráfico e das milícias em comunidades como Alemão e Rio das Pedras, ou em Petare, a maior favela venezuelana. A Comuna 13, berço do traficante Pablo Escobar em Medellín, foi durante anos região inexpugnável pelo Estado colombiano. Se até aí os Estados nacionais ou locais são incapazes, imagine na Amazônia.

No caso do Brasil, além da falta de recursos, falta boa vontade do governo federal para agir contra os crimes cometidos na floresta e contra ela. Jair Bolsonaro é o maior incentivador da bandidagem instalada na Amazônia. O presidente defende garimpeiros, madeireiros, grileiros e os que querem expandir a fronteira agrícola para o interior da floresta. O mesmo presidente que defende o marco temporal para reduzir os territórios indígenas e ataca o Supremo dizendo que não acatará sua decisão se ela lhe contrariar.

Foram muitos os sinais em favor dos crimes e de criminosos ecológicos emitidos pelo governo Bolsonaro. Um dos mais eloquentes foi a fala do ex-ministro Ricardo Salles naquela reunião ministerial em que pediu que o presidente aproveitasse que o foco da imprensa estava na Covid para “passar a boiada”, desmontando onde fosse possível o arcabouço legal em favor do meio ambiente. Se grandes criminosos ambientais sentem-se confortados pela política do vale-tudo governamental, o mesmo ocorre com pés de chinelo como os irmãos Amarildo e Dos Santos, assassinos de Bruno e Dom.

Claro que Bolsonaro é culpado por estas mortes pelas razões expostas, mas é evidente também que crimes anteriores contra ativistas como o seringalista Chico Mendes e a irmã Dorothy Stang também devem ser atribuídos à frouxidão dos governos da sua época. O seringalista do Acre foi assassinado por outros dois pés de chinelo, o pequeno agricultor Darly Alves dos Santos e seu filho Darci. O assassinato da irmã em Anapu foi encomendado também por um pequeno fazendeiro que se sentia acima da lei.

Chico Mendes, que virou mártir e hoje empresta seu nome para um órgão do Ministério do Meio Ambiente (ICMbio - Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), morreu no governo Sarney, em 1988. Dorothy Stang foi assassinada ainda no primeiro mandato de Lula, em 2005. Obviamente, Lula e Sarney não estimulavam garimpeiros e madeireiros nem atacavam indígenas. Sarney demarcou 67 reservas e Lula, 79. Mas faltaram a ambos recursos, equipamentos e homens para defender estes territórios e a própria Amazônia. Por isso a importância de abrir a floresta a todos os que estiverem dispostos a trabalhar para salvar o mundo.