terça-feira, 10 de novembro de 2020
Nações não têm amigos
Em 1941, a França sob a presidência do marechal Philippe Pétain, herói de Verdun, convertido à colaboração com os alemães, tornando o Estado francês um Estado súdito ou escravo, o general Charles de Gaulle, de início cavaleiro solitário, tentava organizar o que denominara Forças Francesas Livres, ainda em pequeno número e mal equipadas. Em Vichy, o vice-presidente do Conselho, Pierre Laval, de tendências totalitárias, aproximava-se cada vez mais dos nazistas, dizendo com isso salvar a França, vindo a ser “amigo” do embaixador alemão, Otto Abetz. Na Síria, juntamente com os ingleses, as tropas de De Gaulle lutavam contra os franceses subordinados a Pétain, embora o futuro presidente não cessasse de desconfiar dos próprios ingleses. Suspeitava que eles queriam dominar o Levante, passando a ser senhores de partes do Império (Empire) Francês, no caso, Síria e Líbano. Exasperado com seus aliados, exclamou: “Nações não têm amigos”.
Nações têm interesses. Agem de acordo com o que acreditam ser melhor para elas, dispostas a enfrentar outros Estados com interesses distintos, produzindo um panorama internacional, mutável, de parcerias, convergências, divergências e oposições dos mais diferentes tipos. Os interesses vão se acomodando segundo as relações econômicas, militares, políticas e diplomáticas se vão desenhando. Em situações extremas de divergências, nações tornam-se inimigas em situações de guerra; em convergências, criam-se instituições internacionais visando à acomodação dos interesses mais amplos possíveis, com o intuito de evitar soluções de força. Nesse contexto, cada Estado exporá suas projeções geopolíticas de poder, conforme suas distintas capacidades e forças.
Não há amigos nesse jogo. Quando muito, afinidades pessoais entre presidentes e primeiros-ministros que podem facilitar as relações, sem que estas possam ser ditas fruto da amizade. A amizade é uma categoria aplicável às relações pessoais, não pode ser generalizada para o domínio da política internacional, em que impera o conflito de interesses. O ex-presidente Michel Temer, por exemplo, tinha uma afinidade pessoal com o presidente Vladimir Putin, sem que isso se traduzisse por qualquer subordinação aos interesses russos. Jamais, por exemplo, justificou a invasão da Crimeia.
O presidente Jair Bolsonaro, por sua vez, com sua família, tornou o presidente Donald Trump um “amigo”, procurando alinhar os interesses brasileiros aos americanos. Seu chanceler chegou a fazer elogios ditirâmbicos a Trump no que denominou “discurso de Varsóvia”, como se naquela ocasião o presidente americano se apresentasse como o representante-mor dos valores ocidentais e, particularmente, religiosos. Amigos até nos valores, como se dali em diante esse devesse ser o norte da política externa. Em determinado momento chegou-se a falar da “amizade” entre as famílias Bolsonaro e Trump, o que justificaria o projeto, depois frustrado, de designar um dos filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, embaixador nos Estados Unidos.
Os Estados Unidos sabem muito bem defender os seus interesses; no momento atual, porém, tal não parece ser o caso do Brasil. Se os americanos atacam os chineses, é porque os seus interesses estão sendo contrariados por eles, afirmando-se também como uma potência mundial. Confirmado o novo presidente americano, Jorge Biden certamente será mais diplomático, procurando aumentar as convergências com seu adversário asiático, sem que daí se siga que ele deixará de defender os interesses americanos, como tem feito Trump. Sua aproximação será diferente; seu interesse, o mesmo.
Por que, nesse contexto, o presidente Bolsonaro atacar os chineses? Porque são comunistas? Ora bolas! O país asiático é hoje o maior destinatário das exportações brasileiras do agronegócio, tornando-se progressivamente também um investidor no País. Onde está o interesse brasileiro? Atualmente, numa convergência com os interesses dos chineses, não cabendo minimamente alinhar-se com os americanos. Seguir os americanos significa, no caso, contrariar os interesses brasileiros. O Brasil não é amigo de uns nem de outros!
Aliás, no que diz respeito aos Estados Unidos, os interesses deles consistem em ser “ambientalistas” em relação ao Brasil, tal como foi publicamente sustentado pela National Farmers Association. Eles adoram florestas aqui e fazendas lá! Procuram aumentar a competitividade de seus produtos, advogando pelo irrestrito direito à propriedade, enquanto o Brasil possui o instituto da reserva legal, que obriga os proprietários rurais a preservarem com vegetação nativa uma parte de sua propriedade. Na Amazônia, convém lembrar, esse índice é de 80%.
A mudança na direção americana exporá à luz do dia os equívocos da atual política externa. Amizades à parte, os interesses deverão impor-se. Se o presidente Bolsonaro for inteligente, e ele o é quando se trata diretamente de seus interesses políticos e familiares, realinhará e remodelará as relações do Brasil com o mundo, em particular com os seus principais parceiros, numa cena internacional que apresentará mutações importantes.
Contraste com democracia dos EUA voltando ao normal faz situação brasileira parecer ainda mais triste
Joe Biden é o novo presidente dos Estados Unidos. Em seu discurso da vitória, defendeu a união de todos os americanos, inclusive dos que não haviam votado nele, e prometeu que governaria para todos. Perdi o trecho seguinte porque comecei a rir lembrando que teve gente com fama de sério apostando que Bolsonaro um dia faria o mesmo.
Biden fez belas citações bíblicas e mencionou os transexuais entre os americanos que quer defender. Agradeceu especialmente aos negros americanos, que foram decisivos para sua vitória.
Só esclarecendo, não agradeceu apenas o Hélio Negão que estava ali do lado, agradeceu Kamala Harris, primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente, agradeceu seu antigo companheiro de chapa, o ex-presidente Barack Obama, e agradeceu o poderoso movimento de organizadores negros que lhe deram vitórias decisivas em cidades como Detroit e Filadélfia.
Biden também anunciou que nesta segunda-feira (9) vai indicar uma força-tarefa de cientistas para lidar com a pandemia. Duvido que chame o Osmar Terra, duvido que alguém ali seja demitido ou humilhado publicamente se decidir trabalhar, como aconteceu com Mandetta, Teich e Pazuello. Biden deve trazer os Estados Unidos de volta para o Acordo de Paris, que proíbe ministros como Ricardo Salles.
Biden fez belas citações bíblicas e mencionou os transexuais entre os americanos que quer defender. Agradeceu especialmente aos negros americanos, que foram decisivos para sua vitória.
Só esclarecendo, não agradeceu apenas o Hélio Negão que estava ali do lado, agradeceu Kamala Harris, primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente, agradeceu seu antigo companheiro de chapa, o ex-presidente Barack Obama, e agradeceu o poderoso movimento de organizadores negros que lhe deram vitórias decisivas em cidades como Detroit e Filadélfia.
Biden também anunciou que nesta segunda-feira (9) vai indicar uma força-tarefa de cientistas para lidar com a pandemia. Duvido que chame o Osmar Terra, duvido que alguém ali seja demitido ou humilhado publicamente se decidir trabalhar, como aconteceu com Mandetta, Teich e Pazuello. Biden deve trazer os Estados Unidos de volta para o Acordo de Paris, que proíbe ministros como Ricardo Salles.
Enfim, o contraste com um país voltando ao normal fez a situação brasileira parecer ainda mais triste. As pessoas dançando nas ruas da Filadélfia não estão comemorando porque Trump foi “moderado pelo centrão”.
A única coisa na eleição americana que me lembrou o Brasil de 2020 foi a tentativa de Donald Trump, o candidato derrotado, de dar um golpe de Estado. Mas é aquilo, se Trump não fosse golpista, Bolsonaro não gostaria tanto dele.
Até o momento de entrega dessa coluna, Trump ainda não havia reconhecido sua derrota. Mentiu que a eleição foi fraudada, mentiu que teve mais votos do que Biden, enfim, “went full Jair”. Torce para que haja protestos de rua que forcem uma judicialização da eleição, e já escalou Rudolph Giuliani, o genro do Borat, para conduzir a batalha legal.
Deve dar errado. Lá não há hipótese dos militares aceitarem um golpe. O Partido Republicano é, no geral, um partido sólido que tem certo interesse na manutenção das regras do jogo. A rede conservadora Fox News não bancou a palhaçada.
Mas esse último crime de Trump contra a democracia pode ter consequências. O artigo de Patrícia Campos Mello publicado neste sábado (7) mostrou que o discurso da “eleição roubada” pode manter a base trumpista permanentemente radicalizada, com cada vez menos fé nas instituições. Os próximos dias devem ser importantes para medirmos a viabilidade desse discurso. Talvez o trumpismo sem poder pareça patético demais para sobreviver.
É possível repetir no Brasil de 2022 a fórmula vencedora dos democratas americanos? O governador Flávio Dino propôs exatamente isso, uma aproximação da esquerda e do centro para derrotar Bolsonaro. Dino tem razão, mas ainda não bolamos uma forma de fazer isso funcionar dentro do multipartidarismo brasileiro.
No Partido Democrata americano estão os equivalentes ideológicos de boa parte do PSDB brasileiro, toda a centro-esquerda e quase toda a esquerda. Sem a estrutura partidária para forçar a união, teremos que ser mais hábeis politicamente do que os americanos.
A única coisa na eleição americana que me lembrou o Brasil de 2020 foi a tentativa de Donald Trump, o candidato derrotado, de dar um golpe de Estado. Mas é aquilo, se Trump não fosse golpista, Bolsonaro não gostaria tanto dele.
Até o momento de entrega dessa coluna, Trump ainda não havia reconhecido sua derrota. Mentiu que a eleição foi fraudada, mentiu que teve mais votos do que Biden, enfim, “went full Jair”. Torce para que haja protestos de rua que forcem uma judicialização da eleição, e já escalou Rudolph Giuliani, o genro do Borat, para conduzir a batalha legal.
Deve dar errado. Lá não há hipótese dos militares aceitarem um golpe. O Partido Republicano é, no geral, um partido sólido que tem certo interesse na manutenção das regras do jogo. A rede conservadora Fox News não bancou a palhaçada.
Mas esse último crime de Trump contra a democracia pode ter consequências. O artigo de Patrícia Campos Mello publicado neste sábado (7) mostrou que o discurso da “eleição roubada” pode manter a base trumpista permanentemente radicalizada, com cada vez menos fé nas instituições. Os próximos dias devem ser importantes para medirmos a viabilidade desse discurso. Talvez o trumpismo sem poder pareça patético demais para sobreviver.
É possível repetir no Brasil de 2022 a fórmula vencedora dos democratas americanos? O governador Flávio Dino propôs exatamente isso, uma aproximação da esquerda e do centro para derrotar Bolsonaro. Dino tem razão, mas ainda não bolamos uma forma de fazer isso funcionar dentro do multipartidarismo brasileiro.
No Partido Democrata americano estão os equivalentes ideológicos de boa parte do PSDB brasileiro, toda a centro-esquerda e quase toda a esquerda. Sem a estrutura partidária para forçar a união, teremos que ser mais hábeis politicamente do que os americanos.
Bolsonaro e Trump, o fim do romance que nunca foi
Se você olhar para a história, uma coisa fica óbvia: o pouco interesse que os Estados Unidos mostram pelos países sul-americanos, tanto sob presidentes democratas quanto sob presidentes republicanos. Veio disso o apelo que Jair Messias Bolsonaro ganhou entre grande parte da população brasileira, em 2018: a suposta relação especial com a família mais poderosa do mundo, a Família Trump. Imaginava-se, no campo bolsonarista, uma ligação direta entre Brasília e a Casa Branca. E via-se, consequentemente, nas manifestações pró-Bolsonaro pelo país, as bandeiras dos Estados Unidos e do Brasil juntas, lado a lado.
Mas tal relação especial trouxe pouca coisa concreta para o Brasil, além de alguns encontros simbólicos e do fato de a delegação brasileira ter sido infectada com covid-19 depois de uma visita a Trump na Flórida. Para a economia brasileira, o tão esperado acesso maior ao mercado americano não se concretizou. Muito pelo contrário: a política de America First de Trump manteve as proteções às importações de aço e de produtos agrícolas brasileiros, por exemplo. O esperado acordo comercial entre os EUA e o Brasil ainda não foi além de um primeiro rascunho. E, provavelmente, logo morrerá por completo. Ao invés de acordos especiais com líderes como Bolsonaro e o britânico Boris Johnson, o presidente eleito Biden deve voltar a fortalecer os órgãos multilaterais.
O novo elo entre EUA e Europa
E mais: um governo Biden restabelecerá as relações tumultuadas com a Europa, para, em conjunto, acelerar uma agenda comum mais "global", visando, principalmente, uma agenda de proteção ambiental mais forte. O Brasil foi o único país sul-americano a aparecer nos discursos de Biden como candidato, clamando uma campanha bilionária para salvar a Floresta Amazônica. Ao invés de explorar, junto com Trump, as riquezas do subsolo da Amazônia, como tem sido o desejo – não respondido, diga-se de passagem – de Bolsonaro, agora o Brasil vai ter que lutar contra a pressão conjunta dos Estados Unidos e da Europa.
Haverá, também, uma guinada de 180 graus nas questões de valores sociais. O governo Biden voltará para a política progressista de Barack Obama, promovendo políticas de proteção a minorias também no âmbito internacional. O Brasil ficará ainda mais isolado internacionalmente com sua ideologia conservadora. Isso sim é um duro golpe para o campo bolsonarista, que já não consegue dar a guinada conservadora dentro do Brasil. Agora, nem haverá mais declarações internacionais contra o aborto ou a ideologia de gênero em conjunto com os EUA. Bolsonaro terá que fazer isso agora com os húngaros e os poloneses.
Por outro lado, é de se esperar que Biden continue com a agenda antichinesa de Trump. As supostas ameaças ao Ocidente, vindas de uma China cada vez mais forte, entraram de vez na política americana e, por partes, na da Europa. Mas, até agora, o combate aos verdadeiros comunistas se limitou, no Brasil, a bravatas virtuais, tuítes e posts e algumas ofensas verbais. Ao mesmo tempo, a China continua sendo o parceiro econômico mais importante para o Brasil. É de se esperar pressões por parte de Washington para bloquear o acesso da gigante chinesa Huawei às licitações para as redes 5G no Brasil, no ano que vem. Vem problema por aí: Bolsonaro compraria uma briga com a Casa Branca para fazer negócio com os comunistas de Pequim? Ou cederá a soberania brasileira ao "socialista" Biden?
Durante anos, Jair Messias Bolsonaro e seus filhos, principalmente o quase embaixador nos EUA, Eduardo, tinham declarado aberta e exaustivamente que apoiam Donald Trump e de que acreditavam na sua reeleição em 2020. Nas manifestações de apoiadores do presidente brasileiro, a bandeira americana sempre foi muito presente, como, também, cartazes e camisas celebrando a aliança Trump-Bolsonaro, até com frases como "Make Brazil great again".
Mas bastou Donald Trump ficar para trás na corrida presidencial, na sexta-feira, para Bolsonaro trocar o famoso "Trump - I love you" pelo "Trump não é a pessoa mais importante do mundo". Depois se calou sobre a vitória de Joe Biden. Para Bolsonaro, pessoalmente, a derrota do ídolo derruba várias das narrativas que fizeram com que ele ganhasse a presidência brasileira, em 2018. Sua narrativa de ser um vingador da direita, uma figura quase de super-herói de cinema, foi copiada da corrida eleitoral de 2016, entre Trump e Hillary Clinton. Agora, o vingador-mor americano foi derrotado pelo "Sleepy Joe".
Foi um duro golpe também para Eduardo Bolsonaro, que se empenhava, junto ao ex-assessor de Trump Steve Bannon, para criar um movimento "alt-right" na América Latina. Mas o "Movement" tropical nunca deslanchou, e atualmente Bannon, ao invés de derrubar a esquerda mundo afora, tem de se defender na Justiça americana por fraude na arrecadação de fundos para a construção do muro entre o México e os Estados Unidos. Como Trump, Bannon sofre com o cerco das redes sociais às notícias falsas. Enquanto Trump tinha seus tuítes marcados com avisos, Bannon era expulso do Twitter.
No Brasil, as redes bolsonaristas, fundamentais para o diálogo entre o presidente e seus seguidores, já sofreram duros golpes do STF, que apertou o combate às fake news. Enquanto isso, Bolsonaro tem de assistir à volta da esquerda na América do Sul, principalmente na Argentina e na Bolívia. Uma troca de regime na Venezuela, que tem sido a agenda mais forte em conjunto de Bolsonaro e Trump, deve ser secundária na agenda de Joe Biden. Cubanos e venezuelanos exilados, principalmente na Flórida, votaram em Trump. E perderam junto com ele. Agora, Biden deve voltar a se aproximar de Cuba, restabelecendo o diálogo promovido por Barack Obama.
Mas será que Bolsonaro será Trump nas eleições presidenciais de 2020? Terá ele o mesmo destino que o ídolo americano, de ser derrotado pela oposição esquerdista? Vale lembrar que no Brasil não existem partidos com o grau de organização como o Democrata e o Republicano nos Estados Unidos. E muito menos uma oposição unida. Por enquanto.
Em vez de dois partidos fortes, há uma fragmentação do cenário partidário cada vez maior. Tanto que Bolsonaro atualmente está sem partido, depois de fracassar em criar o próprio. Nas eleições municipais, já se desenha a derrota de candidatos apoiados pelo presidente, como Celso Russomanno em São Paulo e Marcelo Crivella no Rio de Janeiro. Mas isso pouco diz sobre as chances de Bolsonaro de se reeleger em 2022. Se continuar com o apoio do velho Centrão, o berço político dele durante os 28 anos como parlamentar, Bolsonaro poderá ter mais êxito que o ídolo americano.
Mas tal relação especial trouxe pouca coisa concreta para o Brasil, além de alguns encontros simbólicos e do fato de a delegação brasileira ter sido infectada com covid-19 depois de uma visita a Trump na Flórida. Para a economia brasileira, o tão esperado acesso maior ao mercado americano não se concretizou. Muito pelo contrário: a política de America First de Trump manteve as proteções às importações de aço e de produtos agrícolas brasileiros, por exemplo. O esperado acordo comercial entre os EUA e o Brasil ainda não foi além de um primeiro rascunho. E, provavelmente, logo morrerá por completo. Ao invés de acordos especiais com líderes como Bolsonaro e o britânico Boris Johnson, o presidente eleito Biden deve voltar a fortalecer os órgãos multilaterais.
O novo elo entre EUA e Europa
E mais: um governo Biden restabelecerá as relações tumultuadas com a Europa, para, em conjunto, acelerar uma agenda comum mais "global", visando, principalmente, uma agenda de proteção ambiental mais forte. O Brasil foi o único país sul-americano a aparecer nos discursos de Biden como candidato, clamando uma campanha bilionária para salvar a Floresta Amazônica. Ao invés de explorar, junto com Trump, as riquezas do subsolo da Amazônia, como tem sido o desejo – não respondido, diga-se de passagem – de Bolsonaro, agora o Brasil vai ter que lutar contra a pressão conjunta dos Estados Unidos e da Europa.
Haverá, também, uma guinada de 180 graus nas questões de valores sociais. O governo Biden voltará para a política progressista de Barack Obama, promovendo políticas de proteção a minorias também no âmbito internacional. O Brasil ficará ainda mais isolado internacionalmente com sua ideologia conservadora. Isso sim é um duro golpe para o campo bolsonarista, que já não consegue dar a guinada conservadora dentro do Brasil. Agora, nem haverá mais declarações internacionais contra o aborto ou a ideologia de gênero em conjunto com os EUA. Bolsonaro terá que fazer isso agora com os húngaros e os poloneses.
Por outro lado, é de se esperar que Biden continue com a agenda antichinesa de Trump. As supostas ameaças ao Ocidente, vindas de uma China cada vez mais forte, entraram de vez na política americana e, por partes, na da Europa. Mas, até agora, o combate aos verdadeiros comunistas se limitou, no Brasil, a bravatas virtuais, tuítes e posts e algumas ofensas verbais. Ao mesmo tempo, a China continua sendo o parceiro econômico mais importante para o Brasil. É de se esperar pressões por parte de Washington para bloquear o acesso da gigante chinesa Huawei às licitações para as redes 5G no Brasil, no ano que vem. Vem problema por aí: Bolsonaro compraria uma briga com a Casa Branca para fazer negócio com os comunistas de Pequim? Ou cederá a soberania brasileira ao "socialista" Biden?
Durante anos, Jair Messias Bolsonaro e seus filhos, principalmente o quase embaixador nos EUA, Eduardo, tinham declarado aberta e exaustivamente que apoiam Donald Trump e de que acreditavam na sua reeleição em 2020. Nas manifestações de apoiadores do presidente brasileiro, a bandeira americana sempre foi muito presente, como, também, cartazes e camisas celebrando a aliança Trump-Bolsonaro, até com frases como "Make Brazil great again".
Mas bastou Donald Trump ficar para trás na corrida presidencial, na sexta-feira, para Bolsonaro trocar o famoso "Trump - I love you" pelo "Trump não é a pessoa mais importante do mundo". Depois se calou sobre a vitória de Joe Biden. Para Bolsonaro, pessoalmente, a derrota do ídolo derruba várias das narrativas que fizeram com que ele ganhasse a presidência brasileira, em 2018. Sua narrativa de ser um vingador da direita, uma figura quase de super-herói de cinema, foi copiada da corrida eleitoral de 2016, entre Trump e Hillary Clinton. Agora, o vingador-mor americano foi derrotado pelo "Sleepy Joe".
Foi um duro golpe também para Eduardo Bolsonaro, que se empenhava, junto ao ex-assessor de Trump Steve Bannon, para criar um movimento "alt-right" na América Latina. Mas o "Movement" tropical nunca deslanchou, e atualmente Bannon, ao invés de derrubar a esquerda mundo afora, tem de se defender na Justiça americana por fraude na arrecadação de fundos para a construção do muro entre o México e os Estados Unidos. Como Trump, Bannon sofre com o cerco das redes sociais às notícias falsas. Enquanto Trump tinha seus tuítes marcados com avisos, Bannon era expulso do Twitter.
No Brasil, as redes bolsonaristas, fundamentais para o diálogo entre o presidente e seus seguidores, já sofreram duros golpes do STF, que apertou o combate às fake news. Enquanto isso, Bolsonaro tem de assistir à volta da esquerda na América do Sul, principalmente na Argentina e na Bolívia. Uma troca de regime na Venezuela, que tem sido a agenda mais forte em conjunto de Bolsonaro e Trump, deve ser secundária na agenda de Joe Biden. Cubanos e venezuelanos exilados, principalmente na Flórida, votaram em Trump. E perderam junto com ele. Agora, Biden deve voltar a se aproximar de Cuba, restabelecendo o diálogo promovido por Barack Obama.
Mas será que Bolsonaro será Trump nas eleições presidenciais de 2020? Terá ele o mesmo destino que o ídolo americano, de ser derrotado pela oposição esquerdista? Vale lembrar que no Brasil não existem partidos com o grau de organização como o Democrata e o Republicano nos Estados Unidos. E muito menos uma oposição unida. Por enquanto.
Em vez de dois partidos fortes, há uma fragmentação do cenário partidário cada vez maior. Tanto que Bolsonaro atualmente está sem partido, depois de fracassar em criar o próprio. Nas eleições municipais, já se desenha a derrota de candidatos apoiados pelo presidente, como Celso Russomanno em São Paulo e Marcelo Crivella no Rio de Janeiro. Mas isso pouco diz sobre as chances de Bolsonaro de se reeleger em 2022. Se continuar com o apoio do velho Centrão, o berço político dele durante os 28 anos como parlamentar, Bolsonaro poderá ter mais êxito que o ídolo americano.
Mau exemplo faz vilões
Todo e qualquer líder que não percebe o valor do exemplo não tem a mais pequena vocação para a função. O exemplo é o mais poderoso instrumento de motivação: capaz de ajudar a elevar homens a heróis ou descer a vilõesMafalda Anjos, "Bye Trump"
O 'Viva la Muerte!' de Bolsonaro
Ontem, 9 de novembro de 2020, foi um dia feliz para a espécie humana: a Pfizer anunciou que a vacina contra a Covid-19 produzida pela empresa, em parceria com a alemã Biotech, obteve 90% de eficácia nos testes realizados até o momento. Até então, estimava-se que as vacinas em desenvolvimento poderiam ter, em média, 50% de taxa de imunização efetiva. É uma excelente notícia porque agora temos uma porta de saída mais larga para o flagelo que golpeia as nossas vidas, em qualquer latitude. Ainda vai demorar um pouco para atravessarmos o umbral que nos levará de novo a ter um cotidiano normal, visto que é preciso produzir e transportar bilhões de doses, mas a passagem existe e é alcançável.
Cerca de 24 horas depois do dia feliz para a espécie humana, os brasileiros foram presenteados pelo presidente Jair Bolsonaro com o dia da infâmia. Ele comemorou no Facebook o fato de Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ter interrompido os testes com a vacina do laboratório chinês Sinovac, comprada pelo governador de São Paulo, João Doria, e que será produzida também pelo Instituto Butantan. Um dos voluntários morreu e o estudo clínico foi suspenso pela agência para verificar se o óbito guarda relação com a vacina ou não (já se sabe que a resposta é negativa).
A comemoração de Jair Bolsonaro foi no Facebook. Ele compartilhou uma postagem de um admiradora, que escreveu o seguinte:
Ele ganha…
“Viva la muerte!”, porque é disso que se trata. O presidente da República Federativa do Brasil comemorou a morte de um cidadão brasileiro. Comemorou a morte de um voluntário de um teste com uma vacina que pode preservar a vida de milhões de cidadãos brasileiros, igualmente. Comemorou a morte com uma notícia falsa, já que a vacina não causa invalidez e anomalia — pelo contrário, ela tem se mostrado bem segura — e a morte do voluntário, de acordo com as autoridades paulistas, não está relacionada à administração da vacina. Comemorou porque só tem olhos para o adversário político João Doria, não para a saúde dos brasileiros, como vem sobejamente demonstrando desde o início da pandemia. Comemorou sem lembrar-se de que os testes com a vacina da AstraZeneca, produzida em parceria com Oxford e comprada pelo governo federal, também foi interrompido por causa da morte de uma voluntária — e logo retomado.
A Anvisa anunciou a suspensão ontem à noite e pegou o Instituto Butantan de surpresa. “Falha de comunicação” e “preocupação exagerada”, contemporizou Dimas Covas, presidente da instituição. As evidências mostram o contrário: tem cheiro, cor e forma de politicagem para satisfazer Jair Bolsonaro, que considera uma vitória pessoal a suspensão do teste com a vacina comprada pelo governador João Doria. Suspensão causada pela morte de um cidadão brasileiro, repita-se.
De acordo com este site, Doria disse a um interlocutor que “Bolsonaro jogou gasolina nas suas próprias vestes, não merece nenhuma resposta”. Não sei você, mas estou enojado com mais esse ato de psicopatia do presidente da República Federativa do Brasil. Precisamos atravessar também esse umbral. Será a melhor resposta.
Cerca de 24 horas depois do dia feliz para a espécie humana, os brasileiros foram presenteados pelo presidente Jair Bolsonaro com o dia da infâmia. Ele comemorou no Facebook o fato de Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ter interrompido os testes com a vacina do laboratório chinês Sinovac, comprada pelo governador de São Paulo, João Doria, e que será produzida também pelo Instituto Butantan. Um dos voluntários morreu e o estudo clínico foi suspenso pela agência para verificar se o óbito guarda relação com a vacina ou não (já se sabe que a resposta é negativa).
A comemoração de Jair Bolsonaro foi no Facebook. Ele compartilhou uma postagem de um admiradora, que escreveu o seguinte:
“Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O Presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha.”
“Viva la muerte!”, porque é disso que se trata. O presidente da República Federativa do Brasil comemorou a morte de um cidadão brasileiro. Comemorou a morte de um voluntário de um teste com uma vacina que pode preservar a vida de milhões de cidadãos brasileiros, igualmente. Comemorou a morte com uma notícia falsa, já que a vacina não causa invalidez e anomalia — pelo contrário, ela tem se mostrado bem segura — e a morte do voluntário, de acordo com as autoridades paulistas, não está relacionada à administração da vacina. Comemorou porque só tem olhos para o adversário político João Doria, não para a saúde dos brasileiros, como vem sobejamente demonstrando desde o início da pandemia. Comemorou sem lembrar-se de que os testes com a vacina da AstraZeneca, produzida em parceria com Oxford e comprada pelo governo federal, também foi interrompido por causa da morte de uma voluntária — e logo retomado.
A Anvisa anunciou a suspensão ontem à noite e pegou o Instituto Butantan de surpresa. “Falha de comunicação” e “preocupação exagerada”, contemporizou Dimas Covas, presidente da instituição. As evidências mostram o contrário: tem cheiro, cor e forma de politicagem para satisfazer Jair Bolsonaro, que considera uma vitória pessoal a suspensão do teste com a vacina comprada pelo governador João Doria. Suspensão causada pela morte de um cidadão brasileiro, repita-se.
De acordo com este site, Doria disse a um interlocutor que “Bolsonaro jogou gasolina nas suas próprias vestes, não merece nenhuma resposta”. Não sei você, mas estou enojado com mais esse ato de psicopatia do presidente da República Federativa do Brasil. Precisamos atravessar também esse umbral. Será a melhor resposta.
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