segunda-feira, 24 de abril de 2023

CPI ou furdunço?

O Gonçalves Dias da vez é de uma pátria longe da edênica de sabiás e palmeiras. Sua imagem na invasão do Planalto abre-se a interpretações —agiu em suporte ou desbaratamento? O tempo da política é o instantâneo e, na dúvida, a cabeça do general, que não é poeta, rolou.

A celeridade do gesto governista não conteve a sanha da oposição em alongar o problema. Aí vem CPI (ou CPMI, o "m" indica o misto de senadores e deputados). O objetivo, em princípio, é esclarecer o 8 de janeiro. Mas, dada a polidez e o autocontrole dos oposicionistas, explicitados em sessão recente pelo deputado 03, pode desandar para outro propósito.

Reconstruir os fatos e responsabilizar os envolvidos, direta ou indiretamente, é imperativo. Já se investigou muito, mas também é muito o que falta. O evento ainda nem tem nome próprio. Prevalece o desnorteio nominativo: invasão, atos antidemocráticos, intentona, terrorismo, golpe. Nomear é delicado porque encaixa o acontecimento num molde, encaminha uma leitura.

Os nomes provisórios convergem, contudo, em indicar que se tratou de uma ação organizada. Quanto mais informações emergem, mais o ponto se comprova. Organização, no entanto, não quer dizer complô superplanejado, como nas teorias da conspiração. A realidade é mais complicada, com gente dando tiro no pé e iniciativas produzindo o oposto do esperado.


Acontecimento do porte do 8 de janeiro não se resume a um vilão no centro do PowerPoint. Resulta de atos de muitos grupos, nem sempre com mesmos objetivos e líderes, que se cruzam. É um mar de ação coletiva, no qual deságuam muitos pequenos afluentes.

Entender o ordenamento requer coletar e checar consistência e confiabilidade de documentação farta e variada. Não é para amadores. Uma CPI séria terá de fugir da areia movediça das impressões e se fincar em pesquisa robusta.

Assim como o janeiro trumpista deu o modelo para o nosso, a comissão de investigação da Câmara dos Deputados norte-americana dá exemplo de relatório potente. O comitê de nove parlamentares, entre democratas e republicanos, depois de ano e meio de trabalho, soltou catatau de 845 páginas. Chama-se Final Report. Select Committee to Investigate the January 6th Attack on the United States Capitol.

Ficou enorme porque detalha minuciosamente a maquinação e os fatos, acompanhado de links para documentos, uma felicidade para historiadores do futuro. Mas traz no início um sumário de 130 páginas, para dar o sumo aos cidadãos do presente.

Quatro capítulos se detêm na preparação e escancaram o tamanho da culpa presidencial no cartório. Depois vem um descritivo da invasão tim-tim por tim-tim. Identificam-se responsabilidades e omissões de agentes institucionais, os movimentos sociais convocadores (o mais conhecido é o Proud Boys) e os líderes no curso da invasão.

A leitura é alucinante, mas desvela personagens menos alucinados do que se suporia. Mostra que o caos aparente tem sua lógica. Houve quem concebesse, recrutasse, pusesse em marcha. A coordenação se exibiu até enquanto a ação transcorria.

O relatório gringo seria um bom modelo para a CPI. Contudo, tomar essa trilha demandaria empenho coletivo —não apenas do governo, como da oposição— em punir os culpados pelo ataque à democracia. Bem conduzida, a CPI poderia ser um acerto de contas da nação consigo mesma. Mas, se adentrar o estilo bolsonarista de debate, será só furdunço mesmo.

O peregrino

Aquele que possui verdadeiro
valor,
Que toma a linha de frente;
E nela assim permanece
Contra o vento, contra a
tempestade
Nenhum temor o esmorecerá
Ou fará com que desista
Do seu primeiro e
confirmado intento
De ser um peregrino.

John Bunyan

'Burnout' cívico

Prensados pelas redes sociais, a gente se vê obrigada a se posicionar o tempo todo, grande parte das vezes sobre assuntos leves ou absolutamente fora de nossa área de conhecimento ou curiosidade. O que pensamos a respeito do ajuste fiscal; da reforma do ensino; da permanência daquele ministro reconhecidamente ficha-suja; do tal novo arranjo do futebol, a sociedade anônima do futebol (SAF); da internação compulsória dessa gente perdida de si que circula pelas cidades; da mudança de sexo na infância; da inteligência artificial? Houve uma época em que, reconhecendo nossa ignorância, procurávamos ler algum artigo para pelo menos entender o que estava em jogo. Agora vem tudo num vapt-vupt de um post, sem contar a lavagem cerebral das mensagens capciosas que pousam na tela do celular – preparadas com o intuito único de angariar devotos a causas escusas.


Estou sofrendo um burnout cívico. Tomo chá de camomila? De cogumelo? Passo a andar de olhos vendados? Me chafurdo na leitura de entretenimento? Ouço apenas os discos da Xuxa? Entro com uma ação pedindo ressarcimento por assédio moral? Me entoco no meio do mato?

Ô Brasil difícil! Melhor pensar que é assim em tudo quanto é canto. Viver em comunidade, por menor que ela seja, significa embates, lutas por espaço; no fundo, disputa de poder. Tudo bem, mas, aqui na terrinha, estamos caprichando. Não é mais uma questão de participação política ou alienação, é o excesso. Sei da importância de ninguém soltar a mão de ninguém, mas, por favor, soltem a minha, preciso sair correndo. Doutor, vou ter um troço.

Corro, mas do Brasil não saio e continuarei a lutar por ele. Só que estou doente dessa contenda na qual entro com a impressão de ser um inocente útil, o zé-mané cansado. Vejo que muitos brasileiros, atrasados, decidiram pelo deixe-o do ditatorial “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Se debandaram para Portugal, Estados Unidos, Austrália, não sei mais onde, com a esperança de fugir de nossas mazelas. Essa turma se esquece de que, num mundo globalizado, o Brasil enviará, via TV, streaming etc., sua dose diária de racismo, homofobia, misoginia e entornará o caldo sujo da injusta distribuição de renda na cara de todos, todas e todes (abraçado à erudição, rechaço o novo pronome, ou, fiel à urgência do agora, abraço-o?). Não se pode esquecer do tio do zap e seu empenho em compartilhar absurdos de toda espécie. De um jeito ou de outro, como o Brasil fincará as garras nos que se ausentaram, cair fora não resolve nada. Pelo menos com isso me consolo.

Então dou de ombros? Bebo o bar da esquina? Todos os bares da rua? Os da cidade? Me caso com vinte mulheres? Assalto um banco? Vou curar berne de bois soltos em pastos abertos pela grilagem no Pará?

Talvez eu melhore fugindo das tretas impostas pelos outros e inventando as minhas. Sertanejo universitário não é nem sertanejo nem universitário. Goiabada é o melhor doce do mundo (seguido de perto pelo arroz-doce), mas nem pensem na cascão, que não chega aos pés da lisa. Os grandes designers criam coisas estupendas, lindas e cheias de sabedoria, mas ninguém até hoje fez nada tão simples e tocante quanto a estrela solitária do Botafogo. Para cada xícara de arroz, duas e meia de água quente; qualquer coisa diferente disso é embuste e má culinária. Não fosse o chifre, o de Capitu em Bentinho, o Brasil nem teria uma literatura nacional.

Ando me identificando com a galinha-d’angola: Tô fraca!, tô fraca!, tô fraca! Que canseira.
Alexandre Brandão