domingo, 9 de maio de 2021
A ralé virtual no poder
Os primeiros depoimentos na CPI da Pandemia confirmam que há uma espécie de “gabinete paralelo” no Palácio do Planalto, cuja influência sobre o presidente Jair Bolsonaro parece ser maior do que a exercida pelo gabinete de ministros.
Esse “poder paraestatal”, na definição do relator da CPI, senador Renan Calheiros, já era mais ou menos conhecido. O espantoso foi observar em detalhes sua imensa capacidade de determinar os atos e palavras do presidente da República.
Como informado pelo próprio Bolsonaro em discurso, o tal “gabinete paralelo”, chamado também de “gabinete do ódio” e qualificado pelo presidente como “gabinete da liberdade”, é liderado por Carlos Bolsonaro. O segundo filho do presidente, embora seja vereador no Rio de Janeiro, passa vários dias em Brasília assessorando o pai. Carlos Bolsonaro, sem cargo no governo, é na prática, o mais poderoso ministro de Bolsonaro, a julgar pelo que veio à luz na CPI.
Soube-se que Carlos Bolsonaro participou de várias reuniões do presidente com ministros, “tomando notas”, segundo informou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Conforme o testemunho de Mandetta, isso fazia parte de “um assessoramento paralelo” – que, em resumo, confrontava as decisões técnicas do Ministério da Saúde e insistia na adoção formal da cloroquina como medicamento contra a covid-19, embora já houvesse evidências de que o remédio era ineficaz. A queda de dois ministros da Saúde, entre outras razões por sua resistência à cloroquina, mostra a força desse “poder paraestatal”.
Carlos Bolsonaro não tem a menor qualificação para dar opinião sobre os grandes temas de Estado, em especial sobre a pandemia, mas o “gabinete” que ele lidera tem uma qualidade muito valorizada pelo presidente: julga-se capaz de traduzir para Bolsonaro a mixórdia das redes sociais.
Como parece acreditar piamente que foi eleito graças a essa interação com lunáticos da internet, o presidente Bolsonaro concluiu que as redes sociais são uma genuína expressão dos desejos populares. Sendo o intérprete das redes, dando sentido, por assim dizer, às teorias da conspiração que pululam naquele ambiente, o “gabinete paralelo” sobrepõe-se, na hierarquia do governo, aos ministros de Estado – que, por definição, devem se ater à realidade fria de decisões muitas vezes impopulares.
O governo formal, então, é submetido ao filtro do “gabinete paralelo”, tornando-se, na prática, refém da irresponsabilidade dos agitadores de internet. O presidente da República, exatamente por ter consciência de que não tem a menor capacidade para governar, parece sentir-se o tempo todo ameaçado pelo poder formal, institucionalizado, o qual desrespeita desde seus tempos de deputado. As demissões de ministros que o presidente tratou como inimigos, por se concentrarem em fatos concretos e não em delírios do clã presidencial, ilustram o clima de paranoia existente no Palácio do Planalto – alimentado dia e noite pelo “gabinete paralelo”.
O fato é que hoje o País é governado a partir das fantasias das redes sociais, sem qualquer lastro institucional e, sobretudo, moral. A esta altura, já é possível concluir que o presidente Bolsonaro não toma nenhuma decisão sem levar em conta os conselhos do “gabinete paralelo”.
É sintomático que Bolsonaro tenha recrudescido recentemente os ataques a seus inimigos imaginários – a lista, extensa, é encabeçada pelo Judiciário, pelos governadores e pelos comunistas chineses – depois de passar dias recebendo conselhos de Carlos Bolsonaro. E as recomendações foram seguidas à risca, a julgar pela truculência do presidente, como reação à pressão exercida pela CPI, em particular, e pela crise, em geral. De Carlos Bolsonaro – chamado pelo próprio pai de “pitbull” e orgulhoso exegeta do “pensamento” raivoso das redes sociais – não se esperava que sugerisse moderação ao presidente.
Nesse sentido, Bolsonaro mostra-se ainda menor do que sempre foi. Absolutamente desqualificado para a vida pública, que dirá para a Presidência da República, subordina-se, e a seu governo, à ralé virtual – a cujo irresponsável arbítrio Bolsonaro submete o Brasil.
Esse “poder paraestatal”, na definição do relator da CPI, senador Renan Calheiros, já era mais ou menos conhecido. O espantoso foi observar em detalhes sua imensa capacidade de determinar os atos e palavras do presidente da República.
Como informado pelo próprio Bolsonaro em discurso, o tal “gabinete paralelo”, chamado também de “gabinete do ódio” e qualificado pelo presidente como “gabinete da liberdade”, é liderado por Carlos Bolsonaro. O segundo filho do presidente, embora seja vereador no Rio de Janeiro, passa vários dias em Brasília assessorando o pai. Carlos Bolsonaro, sem cargo no governo, é na prática, o mais poderoso ministro de Bolsonaro, a julgar pelo que veio à luz na CPI.
Soube-se que Carlos Bolsonaro participou de várias reuniões do presidente com ministros, “tomando notas”, segundo informou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Conforme o testemunho de Mandetta, isso fazia parte de “um assessoramento paralelo” – que, em resumo, confrontava as decisões técnicas do Ministério da Saúde e insistia na adoção formal da cloroquina como medicamento contra a covid-19, embora já houvesse evidências de que o remédio era ineficaz. A queda de dois ministros da Saúde, entre outras razões por sua resistência à cloroquina, mostra a força desse “poder paraestatal”.
Carlos Bolsonaro não tem a menor qualificação para dar opinião sobre os grandes temas de Estado, em especial sobre a pandemia, mas o “gabinete” que ele lidera tem uma qualidade muito valorizada pelo presidente: julga-se capaz de traduzir para Bolsonaro a mixórdia das redes sociais.
Como parece acreditar piamente que foi eleito graças a essa interação com lunáticos da internet, o presidente Bolsonaro concluiu que as redes sociais são uma genuína expressão dos desejos populares. Sendo o intérprete das redes, dando sentido, por assim dizer, às teorias da conspiração que pululam naquele ambiente, o “gabinete paralelo” sobrepõe-se, na hierarquia do governo, aos ministros de Estado – que, por definição, devem se ater à realidade fria de decisões muitas vezes impopulares.
O governo formal, então, é submetido ao filtro do “gabinete paralelo”, tornando-se, na prática, refém da irresponsabilidade dos agitadores de internet. O presidente da República, exatamente por ter consciência de que não tem a menor capacidade para governar, parece sentir-se o tempo todo ameaçado pelo poder formal, institucionalizado, o qual desrespeita desde seus tempos de deputado. As demissões de ministros que o presidente tratou como inimigos, por se concentrarem em fatos concretos e não em delírios do clã presidencial, ilustram o clima de paranoia existente no Palácio do Planalto – alimentado dia e noite pelo “gabinete paralelo”.
O fato é que hoje o País é governado a partir das fantasias das redes sociais, sem qualquer lastro institucional e, sobretudo, moral. A esta altura, já é possível concluir que o presidente Bolsonaro não toma nenhuma decisão sem levar em conta os conselhos do “gabinete paralelo”.
É sintomático que Bolsonaro tenha recrudescido recentemente os ataques a seus inimigos imaginários – a lista, extensa, é encabeçada pelo Judiciário, pelos governadores e pelos comunistas chineses – depois de passar dias recebendo conselhos de Carlos Bolsonaro. E as recomendações foram seguidas à risca, a julgar pela truculência do presidente, como reação à pressão exercida pela CPI, em particular, e pela crise, em geral. De Carlos Bolsonaro – chamado pelo próprio pai de “pitbull” e orgulhoso exegeta do “pensamento” raivoso das redes sociais – não se esperava que sugerisse moderação ao presidente.
Nesse sentido, Bolsonaro mostra-se ainda menor do que sempre foi. Absolutamente desqualificado para a vida pública, que dirá para a Presidência da República, subordina-se, e a seu governo, à ralé virtual – a cujo irresponsável arbítrio Bolsonaro submete o Brasil.
Bolsonaro dá sinais de epidemia mental
O deputado Fausto Pinato, do bloco de apoio ao Presidente, escreveu publicamente que Bolsonaro sofre de grave doença mental. Segundo ele, não há outra explicação para suas posições em relação à China.
De fato, são gestos de insanidade, o presidente do Brasil, sem qualquer razão, ofender e provocar a potência chinesa, que marcha para ter a maior economia do mundo, com a maior população e alguns dos mais avançados setores em tecnologia. Só isto bastaria para indicar sinais de insanidade.
Mais grave é que a China é o maior parceiro comercial do Brasil e o principal fornecedor de vacinas contra a covid. Basta o governo chinês se impacientar, para a economia brasileira sofrer um revés de tamanho catastrófico, e nossa situação sanitária sofrer consequências ainda mais graves. Se a China deixar de comprar nossa proteína vegetal e animal, a perda econômica não será apenas por alguns anos, poderá ser por décadas ou definitiva.
No lugar de nos preparar para o momento em que isto poderá ocorrer em algum momento no futuro, quando a China encontrar outras fontes de proteínas mais próximas, o Presidente parece querer antecipar nossa debacle, simplesmente por preconceito pessoal contra a China. Isto já é sinal do que o Deputado Pinato chama de insanidade.
Mais urgente ainda é provocar o corte do fornecimento de vacina contra o covid. A única solução para barrar o número de mortos é a vacinação em massa e nosso único caminho nos próximos meses é a vacina chinesa. Além de que dezenas de milhões já tomaram a primeira dose e precisam da segunda vinda da China.
A fala do presidente só tem como explicação uma mente desequilibrada. Como foi a Rainha Maria I, vinda com D. João VI. Sofria de depressão, sentimento de vazio, irritabilidade, isolamento, sentimento de culpa, ao ponto de ganhar o apelido de Maria Louca. Mas não tinha qualquer participação no governo. Sua loucura era um drama e um problema familiar, sem consequências para o país.
O caso do presidente Bolsonaro é diferente. Suas manifestações de insanidade representa uma ameaça de proporções catastróficas. Não seria problema maior se seus distúrbios fossem invenções da oposição, como aliás alguna consideram quw acontecia com a Rainha Maria. Mas seus gestos começam a ser reconhecidos e denunciados por seus apoiadores.
E sabemos que a China não é a única mania pertubadora do presidente. A análise de seus discursos passa a impressão que ele tem surtos de delírios. Seria grave se ele fosse apenas um mentiroso incorrigível, mas é pior: tudo indica que ele acredita em seus delírios e vive rodeado de pessoas que acreditam no que ele diz quando delira, acredita e tem pavor de medo dele.
Até mesmo um general reconhece isto ao dizer que tomou vacina escondido, outro general assustado diz que “quem pode manda, quem não pode obedece” e com isto justifica usar o Ministério da Saúde para promover o uso de remédios comprovadamente ineficazes. A paranoia é uma doença que contamina pelo medo e que retroalimenta seu grupo. É isto que faz o Brasil atravessar um momento perigoso.
Mas este problema seria bem enfrentado se o Brasil assistisse uma aliança de líderes sanos unidos para vencer as eleições de 2022 e colocar um governo pelo menos lúcido. Não é isso que assistimos: em momento de risco, a divisão também é uma loucura. Aparentemente temos um governo insano e uma oposição sem juízo.
De fato, são gestos de insanidade, o presidente do Brasil, sem qualquer razão, ofender e provocar a potência chinesa, que marcha para ter a maior economia do mundo, com a maior população e alguns dos mais avançados setores em tecnologia. Só isto bastaria para indicar sinais de insanidade.
Mais grave é que a China é o maior parceiro comercial do Brasil e o principal fornecedor de vacinas contra a covid. Basta o governo chinês se impacientar, para a economia brasileira sofrer um revés de tamanho catastrófico, e nossa situação sanitária sofrer consequências ainda mais graves. Se a China deixar de comprar nossa proteína vegetal e animal, a perda econômica não será apenas por alguns anos, poderá ser por décadas ou definitiva.
No lugar de nos preparar para o momento em que isto poderá ocorrer em algum momento no futuro, quando a China encontrar outras fontes de proteínas mais próximas, o Presidente parece querer antecipar nossa debacle, simplesmente por preconceito pessoal contra a China. Isto já é sinal do que o Deputado Pinato chama de insanidade.
Mais urgente ainda é provocar o corte do fornecimento de vacina contra o covid. A única solução para barrar o número de mortos é a vacinação em massa e nosso único caminho nos próximos meses é a vacina chinesa. Além de que dezenas de milhões já tomaram a primeira dose e precisam da segunda vinda da China.
A fala do presidente só tem como explicação uma mente desequilibrada. Como foi a Rainha Maria I, vinda com D. João VI. Sofria de depressão, sentimento de vazio, irritabilidade, isolamento, sentimento de culpa, ao ponto de ganhar o apelido de Maria Louca. Mas não tinha qualquer participação no governo. Sua loucura era um drama e um problema familiar, sem consequências para o país.
O caso do presidente Bolsonaro é diferente. Suas manifestações de insanidade representa uma ameaça de proporções catastróficas. Não seria problema maior se seus distúrbios fossem invenções da oposição, como aliás alguna consideram quw acontecia com a Rainha Maria. Mas seus gestos começam a ser reconhecidos e denunciados por seus apoiadores.
E sabemos que a China não é a única mania pertubadora do presidente. A análise de seus discursos passa a impressão que ele tem surtos de delírios. Seria grave se ele fosse apenas um mentiroso incorrigível, mas é pior: tudo indica que ele acredita em seus delírios e vive rodeado de pessoas que acreditam no que ele diz quando delira, acredita e tem pavor de medo dele.
Até mesmo um general reconhece isto ao dizer que tomou vacina escondido, outro general assustado diz que “quem pode manda, quem não pode obedece” e com isto justifica usar o Ministério da Saúde para promover o uso de remédios comprovadamente ineficazes. A paranoia é uma doença que contamina pelo medo e que retroalimenta seu grupo. É isto que faz o Brasil atravessar um momento perigoso.
Mas este problema seria bem enfrentado se o Brasil assistisse uma aliança de líderes sanos unidos para vencer as eleições de 2022 e colocar um governo pelo menos lúcido. Não é isso que assistimos: em momento de risco, a divisão também é uma loucura. Aparentemente temos um governo insano e uma oposição sem juízo.
Nacionalismo tabajara
Uma variante desse vírus é o nacionalismo fechado, que impede, por exemplo, a internacionalização das vacinas. Outra é quando colocamos as leis do mercado ou do mercado intelectual ou da propriedade intelectual acima das leis do amor e da saúde da humanidadePapa Francisco
O triste fim de Jair Messias Bolsonaro
Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos. Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olímpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: – Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.
Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada. Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: – Alvorada é coisa de comunista! — esbracejara: – Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.
O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.
Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trémulas procurou a Glock 19 que sempre deixava sob o travesseiro.
– Largue a pistola, não vale a pena!
A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a Glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:
– Quem está aí?
Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos. Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:
– Porra! Quem é você?
– Tenho muitos nomes – disse o velho. – Mas pode me chamar Anhangá.
– Você não é real!
– Não?
– Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!
O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele, mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:
– Em todo o caso, sou o seu sonho mau. Vim para levar você.
– Levar para onde, ó paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.
– Vou levar você para a floresta.
– Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazónia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso do que o ouro…
O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado – era uma onça enfurecida, lançando-se contra o Presidente:
– Acabou!
Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:
– Você não pode me deixar aqui. Sou o Presidente do Brasil!
– Era – rugiu Anhangá, e foi-se embora.
Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o Presidente. Não havia sinais dele.
– Cheira a onça – assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério. Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.
Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio. Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio. Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio. As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio. As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio. O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio – e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.
Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada. Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: – Alvorada é coisa de comunista! — esbracejara: – Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.
Susa Monteiro |
O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.
Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trémulas procurou a Glock 19 que sempre deixava sob o travesseiro.
– Largue a pistola, não vale a pena!
A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a Glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:
– Quem está aí?
Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos. Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:
– Porra! Quem é você?
– Tenho muitos nomes – disse o velho. – Mas pode me chamar Anhangá.
– Você não é real!
– Não?
– Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!
O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele, mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:
– Em todo o caso, sou o seu sonho mau. Vim para levar você.
– Levar para onde, ó paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.
– Vou levar você para a floresta.
– Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazónia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso do que o ouro…
O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado – era uma onça enfurecida, lançando-se contra o Presidente:
– Acabou!
Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:
– Você não pode me deixar aqui. Sou o Presidente do Brasil!
– Era – rugiu Anhangá, e foi-se embora.
Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o Presidente. Não havia sinais dele.
– Cheira a onça – assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério. Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.
Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio. Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio. Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio. As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio. As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio. O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio – e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.
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