domingo, 9 de fevereiro de 2020

Por que gente com cabeça no lugar engrossa a cruzada contra as artes?

Ninguém acusa a ciência de elitismo. A não ser o populista que, no lugar da educação, e apoiado pelas elites econômicas mais oportunistas e inconsequentes, oferece a Terra plana ou o “design inteligente” como solução para a ignorância.

Então, por que gente com a cabeça aparentemente no lugar continua a engrossar a cruzada de demagogos contra as artes? Por que insistem em confundir exceção com “elitismo cultural”? Afinal, o que esperam da arte? Que confirme crenças, gostos, consensos e hegemonias? Que não seja uma forma de reflexão e conhecimento?

Se fosse assim, praticamente nada do que consideramos artisticamente excepcional existiria. Não haveria Herman Melville e o maior romance americano; não haveria Kafka nem Clarice Lispector. Também não haveria Godard, autor da máxima que, apesar de surrada, continua a deitar luz pelo caminho: “A cultura é a regra; a arte é a exceção”.

Ao contrário do que pretende o projeto ideológico bolsonarista (com o apoio de elites ignaras e suicidas), arte não tem nada a ver com ideologia. Tem a ver com a força e a vulnerabilidade da contradição como resistência à criação de consensos. Tem a ver com a produção de diferença, com a exceção como condição de possibilidade do pensamento e da reflexão, na contramão de crenças e sofismas.

Vem daí a urgência de fomentar e proteger, como um bem social de todos (e não de “elites culturais”), a arte que não se vende nem se paga, aquela que não agrada nem serve ao mercado. Isso não significa que ela seja necessariamente boa ou ruim, apenas que a arte que serve ao mercado não precisa da proteção do Estado. Como podem explicar os economistas liberais, ela se autorregula.

Ao contrário das aparências mais rasteiras, a Terra não é plana. É difícil para quem nunca tirou os pés do chão contrariar suas impressões diárias e imediatas. Mas será essa dificuldade justificativa suficiente para se contentar com o conforto do erro (e suas consequências)?

Num dos seus textos mais misteriosos (“O Ovo e a Galinha”), Clarice Lispector escreve sobre a impossibilidade de ver o ovo pela primeira vez. Só vê o ovo, e o entende, quem já o viu, e isso já não é entender, é reproduzir o erro, a inércia ou a “naturalidade” de uma função irrefletida. Como é que se vê o ovo pela primeira vez? É com essa dificuldade que lida a arte de verdade ou de exceção. Ela não quer ser representação de consensos nem ilustração do que queremos ver. Ela não é confirmação de nada.

Nem crença nem função, nem ideologia nem moral, essa arte encara a dúvida, a contradição e o desconforto de não entender, como condição fundamental do próprio conhecimento, da descoberta e da ampliação do entendimento do mundo.

Sem dúvida e sem contradição não há conhecimento. Mas dúvida e contradição não costumam produzir prazer —pelo menos não à primeira vista. Nada nelas é natural e confortável. E por isso precisam ser fomentadas e defendidas. Não porque correspondam ao que queremos crer, mas justo pelo contrário, porque nos confrontam com a diferença, com o outro, o que não tem nome, com o que nos causa repulsa, o que não podemos ver em nós.

Quando Bolsonaro diz que “cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”, não está apenas exprimindo um racismo abjeto mas também, na sua miséria intelectual, o projeto suicida de erradicação da diversidade cultural.

Homogeneização e extinção —autoextermínio, para surpresa dos “agentes homogeneizadores”— costumam andar de mãos dadas. A natureza é inequívoca: a sobrevivência das espécies está ligada à diversidade. A monocultura empobrece o solo. Um corpo sem anticorpos não sobrevive fora de bolhas estéreis.

Poeta e cineasta excepcional, Pier Paolo Pasolini também foi um combativo adversário do fascismo, em especial daquele que se manifesta onde menos se espera, com outros nomes. Em sua última entrevista, horas antes de ser assassinado, Pasolini falava do perigo de um sistema cultural e educacional consumista, capaz de fazer todo mundo desejar as mesmas coisas, e assim matar o desejo.

O maior desafio da cultura é fomentar o outro, a exceção. E é esse o paradoxo de um projeto ideológico uniformizador como o do bolsonarismo, não só para a cultura mas para o país. Combater o outro (na educação, na ciência e nas artes) é estrangular-se. É criar um país fraco, vulnerável, monotemático, infértil, para corresponder à miséria do pensamento do seu líder. É esse, aliás, o projeto ao qual os fascismos estão condenados inadvertidamente. Mas é isso o que desejamos para nós?
Bernardo Carvalho

Weintraub é ministro só dele mesmo

O bolsonarismo não inova ao reservar no governo espaços para especialistas e delimitar áreas destinadas a quem trata de forma direta da execução de projetos relacionados a objetivos políticos e ideológicos do grupo no poder. O Ministério da Economia, de Paulo Guedes, por exemplo, enfrenta questões objetivas. Por exemplo, das reformas, em que estão em jogo pontos fundamentais relacionados à estabilidade econômica, ao crescimento e à geração de empregos.

Bolsonaro e filhos, porém, reservaram temerariamente cargos importantes também para ideólogos orgânicos da extrema direita. Entre eles, o economista e professor Abraham Weintraub, o segundo ministro da Educação do governo, substituto de Ricardo Vélez, de perfil semelhante. Um sério erro. Weintraub tem se destacado pela absoluta incompreensão da importância do cargo. Dedica-se a travar a chamada “guerra cultural”, um tipo de briga de rua no mundo virtual.


Os erros crassos de ortografia de Weintraub são menos graves do que a sua incapacidade de administrar o MEC num momento em que o Brasil precisa acelerar projetos para impulsionar a educação, quando persiste grande evasão no ensino médio, existe um contingente preocupante de analfabetos funcionais, e os cuidados com a primeira infância, cruciais para uma boa formação, continuam sendo negligenciados.

Os problemas que se repetem no Enem foram enfrentados de forma canhestra, e restou um forte golpe na já debilitada confiabilidade no exame, a única porta de entrada de milhões de jovens para o ensino superior. Além de gerenciar o reparo do Enem, por meio do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep), ligado ao MEC, o ministro precisa cuidar da implementação do currículo único (a partir da Base Nacional Comum Curricular) e da reforma do ensino médio, aprovada no Congresso, e da qual nada se fala no MEC de Weintraub. E é preciso encaminhar proposta ao Congresso da renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que vence este ano. É a única fonte de recursos para a grande maioria das secretarias de Educação de estados e municípios.

Especialistas dizem que o MEC tem de ser um polo de aglutinação técnica e política, para fazer um trabalho amplo e constante de estimulação junto a governadores e prefeitos, cujos secretários e professores são os responsáveis por melhorar o ensino em cada sala de aula. Este é um papel estratégico do MEC.

Weintraub não consegue exercê-lo. Não procura dialogar. É apenas um militante de causas extremadas. Não tem perfil para o cargo. Não pode transitar na Câmara dos Deputados, devido à compreensível repulsa do presidente da Casa, Rodrigo Maia, e não apenas deste: acaba de chegar ao STF pedido de impeachment do ministro encaminhado por deputados e senadores. Não transita no meio universitário, nem tem diálogo com a comunidade de especialistas no setor, está isolado no MEC, bajulado apenas pelo presidente Bolsonaro e filhos. Weintraub é só ministro dele mesmo. O MEC está à deriva, e a educação também.

É isto um homem?

O que acontece a essa gente que no meio de uma pandemia só se preocupa com as cotações da Bolsa? Essa gente que mesmo no meio da miséria mais desmoralizante ainda pensa que seu catre é melhor que o catre alheio? Que raio de humanidade é essa que não sente, não vê, não ouve, senão o que lhe chega ao pé da porta, o que lhe fisga o nervo, o que lhe quebra o osso, o que lhe subtraem do próprio bolso? Pertence de fato à espécie humana essa gente armada até os dentes, que não enxerga o outro a não ser como um alvo? Que tipo de gente é essa que se fotografa sobre o lombo de um cadáver como um prêmio angariado, que chama de esporte a uma matança, de erro a um estupro, de incidente a duzentos e cinquenta assassinatos? Que espécie é essa imune a toda lei, toda Constituição, toda justiça, a quem é dado o poder de matar, e, não lhe fosse dado, tomaria à força e assim igualmente mataria? Que bicho maldito é esse que não se reconhece bicho, mas se regozija em ser maldito, em nada se importando, quem sabe mesmo se divertindo, se o que lhe sai da boca é crime, e o que lhe sai das mãos, mais crime, de que elemento é feito isto que empesteia a terra e o ar e água por onde passa, que desgraça uma floresta, que arrasa uma cidade, que tipo de ser é este, afinal? É isto um homem?
Mariana Ianelli

Pensamento do Dia


Treinamento para naufrágio

A Humanidade não desaparecerá com uma explosão, mas com um suspiro, vaticinou T. S. Eliot num dos seus poemas mais conhecidos. Penso naqueles versos sempre que surgem notícias de um novo vírus assassino. 

Não creio, contudo, que o anunciado apocalipse silencioso venha a ter como protagonista a nova estirpe de coronavírus, detectada na cidade chinesa de Wuhan nos últimos dias de 2019. 

O surto revelou o melhor e o pior do regime chinês. A burocracia enferrujada do aparelho de Estado atrasou a resposta à epidemia, enquanto o pensamento totalitário dominante no Partido Comunista explica a tentativa inicial de ocultação da mesma. Durante dias, as redes sociais chinesas registraram reclamações de populares enfurecidos com o seu próprio governo, algo muito raro, desde logo porque a internet é vigiada e controlada pelas forças repressivas do regime.

Logo a seguir, porém, os chineses deram um show de organização, disciplina e capacidade de mobilização, isolando grandes cidades, controlando o pânico, e construindo um enorme hospital em apenas dez dias. Nenhum outro país conseguiria algo semelhante. O diretor da Organização Mundial de Saúde (OMS), o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, elogiou as autoridades chinesas, afirmando que as medidas adotadas para combater o vírus em seu epicentro são a melhor maneira de impedir a disseminação daquele. 

Suprema ironia, a principal ameaça à sobrevivência da Humanidade — para além da própria Humanidade — é representada por entidades invisíveis aos nossos olhos e tão rudimentares que ainda hoje se discute a sua natureza: são ou não seres vivos?


Em criança fiz várias viagens de navio, intercontinentais. Lembro-me das sessões de treinamento para um eventual naufrágio. A buzina tocava e todos os passageiros se reuniam no convés. O mais importante, diziam-nos, era controlar o pânico, manter a disciplina, obedecer às instruções da tripulação, e ajudar quem mais precisasse. 

A gripe comum mata mais de 600 mil pessoas todos os anos. A nova estirpe do coronavírus detetada em Wuhan matou até agora perto de 500 pessoas. Não será o apocalipse, mas é certamente um alerta, a buzina chamando os passageiros para o convés do navio. Temos de estar preparados para quando o naufrágio acontecer. Sabemos o que é necessário: rapidez de resposta, transparência, partilha de conhecimentos, colaboração entre todos os países e instituições de pesquisa, calma, organização e disciplina. 

A possibilidade de aparecimento de vírus perigosos aumenta todos os dias, devido à movimentação cada vez mais rápida de cada vez mais gente, ao crescimento das grandes cidades, à destruição de ecossistemas ou ao aquecimento global. Então, sim, acontecerá. Mais dia menos dia, o navio irá naufragar. Sobreviveremos se soubermos aprender com as lições do presente, o que inclui vencer não apenas o coronavírus, mas também a xenofobia que lhe está associada. 

A menos que um simples vírus seja, afinal, mais inteligente do que nós.
José Eduardo Agualusa

Acabou de recomeçar

O monstro finalmente derrotado começava a dar lugar à monstruosidade dos vencedores
Antonio Tabucchi, "Tristano morre"

Bolsonaro confirma sentença de morte da Amazônia

Em um só documento, Jair Bolsonaro confirmou as acusações estrangeiras e brasileiras aos seus propósitos destrutivos para a Amazônia, atestou serem mentirosas afirmações suas na Mensagem ao Congresso sobre 2019-2020, e expôs o país a graves reações internacionais.

Tudo isso em uma sentença de morte da Amazônia sob a forma de projeto mandado ao Congresso: a abertura da região, inclusive das reservas indígenas e dos parques nacionais, a toda exploração empresarial.

O desmatamento amazônico, preocupação de numerosos países e de cientistas das alterações climáticas, é incentivado sob disfarce no projeto. A oferta da área florestal à pecuária, explicitada no texto, pressupõe o desmatamento preliminar para a formação de pastos.

E em imensas extensões, porque a criação de gado com lucratividade em escala empresarial, ali, recomenda grandes rebanhos, dado o oneroso transporte aos distantes centros de distribuição e exportação.


A abertura das reservas indígenas à exploração empresarial, por sua vez, encobre o transtorno total das relações do Estado com a população indígena. E das políticas indigenistas mais ou menos equivalentes em todos os governos pós-ditadura militar, exceto o atual.

Os indígenas perdem o domínio das terras que lhes são reconhecidas, e do próprio ambiente: seu único direito de contestar a exploração, diz o projeto, incide sobre o garimpo primitivo. Para o mais, devem satisfazer-se com a retribuição financeira admitida pelo empreendimento.

Isso é de uma radicalidade feroz como poucas vezes terá sido, se alguma vez o foi, em disposição de governo. Daí não se pode esperar senão um processo ainda mais celerado e acelerado de extirpação da cultura indígena. E de vidas que a têm sustentado, apesar da pressão de convívios forçados e dissolutos.

Esse projeto pode explicar uma das motivações básicas da ligação de velhos militares a Bolsonaro, exibida desde a campanha eleitoral pelo general Villas Bôas, então comandante do Exército e hoje conselheiro do governo.

Na primeira década da ditadura, anos 1970, a questão indígena recebeu relevância nas Forças Armadas e, por indução delas, na imprensa. De elaborações simplistas, surgira o delírio de que estrangeiros — sobretudo os Estados Unidos — ambicionavam apossar-se da Amazônia, e a maneira de evitá-lo seria difundir a ocupação econômica da região.

Uma fantasia precursora da ministra Damares Alves, pois acaba-se com a riqueza florestal da Amazônia e sua importância para o mundo, e ninguém mais desejará possuí-la. A teoria ainda prevalece. E cumpre mais um papel.

Por décadas, a obsessão foi a guerra com a Argentina. Uma das promoções do general Amaury Kruel, contei aqui há muitos anos, foi pelo plano de Estado-Maior por ele feito para o caso dessa guerra. O Rio Grande do Sul tornou-se uma concentração de recursos do Exército e da FAB por causa da obsessão.

O primeiro porta-aviões, Minas Gerais, ruína inglesa que acabou custando uma loucura monetária, foi comprado porque a Argentina tinha o seu. Com o presente, Juscelino apagou a ira golpista na Marinha. Com as crises econômicas, a Argentina perdeu a posição onírica para a Amazônia.

Outro indicador da origem e da impulsão atual do projeto anti-Amazônia: é claro que não foi ocasional a simultaneidade entre a proposta mandada ao Congresso e o vazamento de um alegado estudo contra intenções hostis da França para a Amazônia.

Estão vendo? Precisamos ocupar a nossa Amazônia — e, quem sabe, talvez também a de vizinhos — antes que algum aventureiro o faça, como já disse nossa pobre história. Mas não se pode dizer que o “estudo militar” seja medíocre: não passa de idiota.

Também dos últimos dias, a Mensagem ao Congresso é uma combinação de mentiras e cinismo. Entre elas, a dedicação do governo à sustentabilidade ambiental. Ao que me consta, jamais um governo ousou propor um projeto tão obstinado e minucioso contra o meio ambiente, a vida como criação da natureza e o conjunto do país. Nenhuma reação internacional, seja onde e qual for, será desproporcional ou surpreendente.

Por que os poderes religiosos e políticos temem tanto a sexualidade?

No Brasil, enquanto o presidente Bolsonaro mistura em seus discursos Deus, sexo e poder, sua ministra da Mulher, Damares Alves, clama a favor da castidade dos jovens. Por que será que o poder religioso e o poder político temem tanto o exercício livre da sexualidade? De acordo com antropólogos e psicólogos se deve ao fato de que ninguém é mais difícil de dominar pelo poder do que uma mulher e um homem felizes. E é a sexualidade, exercida sem tabus e medo, uma das maiores fontes de felicidade.

Enquanto os deuses antigos do paganismo eram mais liberais com sexo, a partir da chegada do monoteísmo e concretamente do cristianismo influenciado por Paulo de Tarso, o exercício da sexualidade com sua força de libertação, começou a ser considerada como pecado e a mulher como a tentação do homem. Para isso foi retomado o mito de Eva, que tentou o homem fazendo-o desobedecer a Deus.

Desde então, as igrejas cristãs relegaram a mulher como perigosa ao homem e foi até afastada dos mistérios do culto dos quais os homens se apossaram. Elas foram relegadas da hierarquia da Igreja. E na vida, como sentenciou São Paulo, “submetida em tudo ao homem”, até no exercício da sexualidade.


Todos os poderes, do religioso ao político, à medida em que se tornavam mais autoritários e ditatoriais, foram alérgicos a uma sexualidade vivida em liberdade. No mundo político essa tentação de controlar a sexualidade das pessoas foi um pecado que tentou a direita e a esquerda, assim como o preconceito para que a mulher chegasse ao poder.

Lembro aqui no Brasil, quando Lula designou como candidata a sua sucessão sua ministra Dilma Rousseff, respondeu a um amigo que lhe perguntou por que havia escolhido uma mulher: “Porque ela é mais homem do que nós dois juntos”. No outro extremo, hoje Bolsonaro, além de seu pouco apreço pela mulher e o feminino, está usando em seus discursos e conversas uma linguagem que degrada a sexualidade. Do famoso vídeo com a cena do golden shower, do Carnaval passado, a suas já famosas comparações da política com relacionamentos, está banalizando a força que o sexo exerce na vida humana. E, ao mesmo tempo, adere às consignas de sua ministra, a pastora evangélica Damares, que advoga pelo exercício da castidade entre as jovens para não ficarem grávidas antes da maturidade.

Se a Igreja já tentou legislar até sobre a posição em que os casais deveriam fazer sexo somente para procriar, e chamou de “partes sujas” os órgãos da reprodução, hoje a presidência de Bolsonaro nos acostumou a fazer chacota sobre o assunto, como a de comparar suas relações com o Congresso com dois casados que às vezes não se entendem, mas que “acabam dormindo juntos sob os mesmo lençóis”. E sua maneira de tratar a nomeação da secretária da Cultura, a atriz Regina Duarte, como sua “namorada” e a de dizer que como “o ato ainda não foi consumado”, ainda pode deixá-la fora do poder.

Os maiores tiranos da história tiveram medo do sexo e o ridicularizaram, talvez para exorcizá-lo. Lembro quando o general e ditador Franco decidiu que as mulheres não podiam ir à praia de biquíni, já que isso atentava contra a moralidade. Imediatamente surgiram as piadas e ironias. Um guarda civil se aproximou de uma jovem estrangeira que tomava sol em uma praia e lhe disse: “Senhorita, você não pode ficar aqui com um maiô de duas peças”. E a jovem lhe respondeu com humor: “Então, seu guarda, me diga se prefere que eu tire a parte de cima ou a de baixo”.

A Igreja também sempre teve medo da mulher, a eterna tentadora, e de seus seios. Lembro que em uma viagem do papa Paulo VI a Uganda, na África negra, ao aterrissar o avião o religioso era esperado por um grupo de jovens mulheres para fazer uma dança ritual em sua homenagem. Na África as mulheres costumam andar com os seios descobertos com toda a naturalidade, mas os organizadores da viagem papal pensaram que não era de bom tom aquelas jovens se apresentarem ao Papa com os seios descobertos e as obrigaram a colocar um sutiã. Quando os fotógrafos se aproximavam elas cobriam com as mãos, envergonhadas, não os seios e sim os sutiãs.

Esse problema não resolvido do poder com o sexo se deve a que não existe nada mais machista do que ele. E essa é uma das grandes batalhas da libertação da mulher realizada nesse momento no mundo. A mulher sabe que só adquirirá o papel que lhe pertence na sociedade da mesma forma que o homem quando o sexo deixar de ser um tabu e ela deixar de ser vista como objeto de tentação e pecado. Nada dá mais medo hoje aos poderes políticos e religiosos do que esse movimento de libertação dos gêneros. Que a sexualidade é livre como o ar e o sol e ninguém, nem o poder religioso e o civil têm direitos sobre tal liberdade. Os tabus sobre o sexo foram e continuam sendo criados pelo poder masculino para submeter a mulher e os que ousarem fazer uso da liberdade de gênero no exercício da sexualidade.

Exigir no século XXI que as jovens brasileiras abracem a castidade por medo de ficar grávidas antes do tempo é ignorar que a fisiologia e a natureza fizeram com que a mulher muito jovem já possa procriar para assegurar-se o direito à prole e que hoje, no pior dos casos, existem substitutivos à castidade para evitar gravidezes não desejadas.

Um teólogo da libertação colombiano me disse uma vez que é curioso que a Igreja tenha criado o dogma da Imaculada Conceição para exaltar a castidade já que, dessa forma, a virgem Maria pôde ficar grávida e ter Jesus por obra e graça do Espírito Santo sem precisar fazer sexo. E me dizia: “Não há maior desprezo pelo exercício da sexualidade, uma das forças motoras da Humanidade sem a qual nenhum de nós existiria começando pelos Papas”.

Esse medo ancestral das igrejas à sexualidade também explica o sacerdócio celibatário obrigatório e as pressões contra o papa Francisco, o menos machista dos Papas da idade moderna, que não só começou a abrir no Sínodo sobre a Amazônia a possibilidade de padres casados, como chegou a dizer que a Igreja precisava com urgência de uma “nova teologia da mulher”, que seria o último grande tabu da Igreja, como o é seu afastamento da hierarquia.

A guerra contra Francisco já está aberta. Das insinuações a que talvez esteja com câncer de cérebro a que traiu o papado por não querer se chamar Papa. Como os primeiros cristãos, de fato, preferiu desde o primeiro dia se chamar simplesmente “bispo de Roma” e até renunciou aos palácios vaticanos para morar no quarto de uma simples pensão para padres. Francisco é o primeiro Papa que não só não vê a mulher como inimiga e tentadora e o sexo como pecado, como acredita serem imprescindíveis para que a Igreja não fique fora da História.

Pode existir heresia maior?