domingo, 9 de fevereiro de 2020

Treinamento para naufrágio

A Humanidade não desaparecerá com uma explosão, mas com um suspiro, vaticinou T. S. Eliot num dos seus poemas mais conhecidos. Penso naqueles versos sempre que surgem notícias de um novo vírus assassino. 

Não creio, contudo, que o anunciado apocalipse silencioso venha a ter como protagonista a nova estirpe de coronavírus, detectada na cidade chinesa de Wuhan nos últimos dias de 2019. 

O surto revelou o melhor e o pior do regime chinês. A burocracia enferrujada do aparelho de Estado atrasou a resposta à epidemia, enquanto o pensamento totalitário dominante no Partido Comunista explica a tentativa inicial de ocultação da mesma. Durante dias, as redes sociais chinesas registraram reclamações de populares enfurecidos com o seu próprio governo, algo muito raro, desde logo porque a internet é vigiada e controlada pelas forças repressivas do regime.

Logo a seguir, porém, os chineses deram um show de organização, disciplina e capacidade de mobilização, isolando grandes cidades, controlando o pânico, e construindo um enorme hospital em apenas dez dias. Nenhum outro país conseguiria algo semelhante. O diretor da Organização Mundial de Saúde (OMS), o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, elogiou as autoridades chinesas, afirmando que as medidas adotadas para combater o vírus em seu epicentro são a melhor maneira de impedir a disseminação daquele. 

Suprema ironia, a principal ameaça à sobrevivência da Humanidade — para além da própria Humanidade — é representada por entidades invisíveis aos nossos olhos e tão rudimentares que ainda hoje se discute a sua natureza: são ou não seres vivos?


Em criança fiz várias viagens de navio, intercontinentais. Lembro-me das sessões de treinamento para um eventual naufrágio. A buzina tocava e todos os passageiros se reuniam no convés. O mais importante, diziam-nos, era controlar o pânico, manter a disciplina, obedecer às instruções da tripulação, e ajudar quem mais precisasse. 

A gripe comum mata mais de 600 mil pessoas todos os anos. A nova estirpe do coronavírus detetada em Wuhan matou até agora perto de 500 pessoas. Não será o apocalipse, mas é certamente um alerta, a buzina chamando os passageiros para o convés do navio. Temos de estar preparados para quando o naufrágio acontecer. Sabemos o que é necessário: rapidez de resposta, transparência, partilha de conhecimentos, colaboração entre todos os países e instituições de pesquisa, calma, organização e disciplina. 

A possibilidade de aparecimento de vírus perigosos aumenta todos os dias, devido à movimentação cada vez mais rápida de cada vez mais gente, ao crescimento das grandes cidades, à destruição de ecossistemas ou ao aquecimento global. Então, sim, acontecerá. Mais dia menos dia, o navio irá naufragar. Sobreviveremos se soubermos aprender com as lições do presente, o que inclui vencer não apenas o coronavírus, mas também a xenofobia que lhe está associada. 

A menos que um simples vírus seja, afinal, mais inteligente do que nós.
José Eduardo Agualusa

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