Não creio, contudo, que o anunciado apocalipse silencioso venha a ter como protagonista a nova estirpe de coronavírus, detectada na cidade chinesa de Wuhan nos últimos dias de 2019.
O surto revelou o melhor e o pior do regime chinês. A burocracia enferrujada do aparelho de Estado atrasou a resposta à epidemia, enquanto o pensamento totalitário dominante no Partido Comunista explica a tentativa inicial de ocultação da mesma. Durante dias, as redes sociais chinesas registraram reclamações de populares enfurecidos com o seu próprio governo, algo muito raro, desde logo porque a internet é vigiada e controlada pelas forças repressivas do regime.
Logo a seguir, porém, os chineses deram um show de organização, disciplina e capacidade de mobilização, isolando grandes cidades, controlando o pânico, e construindo um enorme hospital em apenas dez dias. Nenhum outro país conseguiria algo semelhante. O diretor da Organização Mundial de Saúde (OMS), o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, elogiou as autoridades chinesas, afirmando que as medidas adotadas para combater o vírus em seu epicentro são a melhor maneira de impedir a disseminação daquele.
Suprema ironia, a principal ameaça à sobrevivência da Humanidade — para além da própria Humanidade — é representada por entidades invisíveis aos nossos olhos e tão rudimentares que ainda hoje se discute a sua natureza: são ou não seres vivos?
Em criança fiz várias viagens de navio, intercontinentais. Lembro-me das sessões de treinamento para um eventual naufrágio. A buzina tocava e todos os passageiros se reuniam no convés. O mais importante, diziam-nos, era controlar o pânico, manter a disciplina, obedecer às instruções da tripulação, e ajudar quem mais precisasse.
A gripe comum mata mais de 600 mil pessoas todos os anos. A nova estirpe do coronavírus detetada em Wuhan matou até agora perto de 500 pessoas. Não será o apocalipse, mas é certamente um alerta, a buzina chamando os passageiros para o convés do navio. Temos de estar preparados para quando o naufrágio acontecer. Sabemos o que é necessário: rapidez de resposta, transparência, partilha de conhecimentos, colaboração entre todos os países e instituições de pesquisa, calma, organização e disciplina.
A possibilidade de aparecimento de vírus perigosos aumenta todos os dias, devido à movimentação cada vez mais rápida de cada vez mais gente, ao crescimento das grandes cidades, à destruição de ecossistemas ou ao aquecimento global. Então, sim, acontecerá. Mais dia menos dia, o navio irá naufragar. Sobreviveremos se soubermos aprender com as lições do presente, o que inclui vencer não apenas o coronavírus, mas também a xenofobia que lhe está associada.
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