sábado, 14 de outubro de 2023

Pensamento do Dia

 


A guerra

A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
A guerra, como todo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer alterar.
Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.
A química direta da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem!
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

Os últimos dias da morte

No século XXI, é provável que os humanos façam um lance sério para a aquisição da imortalidade. A luta contra a velhice e a morte será tão somente a continuação da luta, consagrada pelo tempo, contra a fome e a doença, e uma manifestação do valor supremo da cultura contemporânea: a valorização da vida humana. Somos constantemente lembrados de que ela é o que há de mais sagrado no universo. Todos dizem isso: professores nas escolas, políticos nos parlamentos, advogados nos tribunais e atores nos palcos de teatros. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) após a Segunda Guerra Mundial — e que talvez seja o que há de mais próximo que temos de uma Constituição global —, declara categoricamente que o “direito à vida” é o valor fundamental da humanidade. Por se constituir em uma clara violação desse direito, a morte é um crime contra a humanidade, e temos de travar uma guerra total contra ela.

Durante a História, religiões e ideologias não santificaram a vida em si mesma. Santificaram sempre algo que está acima ou além da existência terrena, e consequentemente foram bem tolerantes com a morte. De fato, algumas delas mostraram-se bastante afeiçoadas ao Anjo da Morte. Uma vez que o cristianismo, o islamismo e o hinduísmo insistiam que o significado de nossa existência dependia da sina no pós-vida, elas consideravam a morte como parte vital e positiva do mundo. Humanos morriam porque Deus assim decretava, e o momento de sua morte era uma experiência metafísica sagrada e repleta de significado. Quando um humano estava próximo de seu derradeiro suspiro, era hora de convocar sacerdotes, rabinos e xamãs, fazer o balanço de sua vida e assumir seu verdadeiro papel no universo. Tente imaginar o cristianismo, o islamismo ou o hinduísmo em um mundo sem mortes — o que seria também um mundo sem céu, inferno ou reencarnação.

A ciência e a cultura modernas têm uma visão totalmente diferente da vida e da morte. Não pensam nesta última como um mistério metafísico, e certamente não a veem como a fonte do sentido da vida. Na verdade, para pessoas modernas a morte é um problema técnico que pode e deve ser resolvido.

Como, exatamente, morrem os humanos? Histórias fantásticas medievais descrevem a Morte como uma figura envolvida por um manto negro com capuz, empunhando uma grande foice. Um homem vive sua vida, preocupando-se com isto e aquilo, correndo para lá e para cá, quando subitamente o Anjo da Morte surge à sua frente, bate em seu ombro com um dedo esquelético, e diz: “Venha!”. E o homem implora: “Não, por favor! Espere só um ano, um mês, um dia!”. Mas a figura encapuzada sibila: “Não! Você tem de vir AGORA !”. E é assim que morremos.


Na realidade, contudo, humanos não morrem porque uma figura envolta em um manto negro bate em seu ombro, ou porque Deus assim decretou, ou porque a mortalidade é parte essencial de algum grande plano cósmico. Humanos morrem devido a alguma falha técnica. O coração para de bombear sangue. A artéria principal entope com depósitos de gordura. Células cancerosas espalham-se no fígado. Germes multiplicam-se nos pulmões. E de quem é a responsabilidade por todas essas falhas técnicas? Outros problemas técnicos. O coração para de bombear o sangue porque não chega bastante oxigênio ao músculo cardíaco. Células cancerosas se espalham porque uma mutação genética acidental reescreve suas instruções. Germes se instalaram nos meus pulmões porque alguém espirrou no metrô. Nada metafísico. Somente problemas técnicos.

E todo problema técnico tem uma solução técnica. Não é preciso esperar pela volta de Cristo à Terra para superar a morte. Alguns nerds num laboratório podem fazer isso. Se a morte era tradicionalmente a especialidade de sacerdotes e teólogos, hoje são os engenheiros que estão assumindo o caso. As células cancerosas podem ser mortas por meio de quimioterapia ou por nanorrobôs. Os germes nos pulmões podem ser extintos com o uso de antibióticos. Se o coração parar de bater, é possível fortificá-lo com medicamentos e choques elétricos — e, se isso não funcionar, pode-se realizar o implante de um coração novo. É verdade que no momento não dispomos de solução para todos os problemas técnicos. Mas é exatamente por causa disso que investimos tanto tempo e dinheiro em pesquisas sobre o câncer, germes, a genética e a nanotecnologia.

Mesmo os leigos, que não estão envolvidos em pesquisas científicas, acostumaram-se a pensar na morte como um problema técnico. Quando uma mulher vai ao médico e pergunta “Doutor, o que há de errado comigo?”, ele poderá responder “Bem, você está com uma gripe” ou “Você tem tuberculose”, ou “Você tem câncer”. Mas nunca dirá “Você tem morte”. E é generalizada a percepção de que uma gripe, a tuberculose e o câncer são problemas técnicos, para os quais algum dia poderemos encontrar a solução técnica.

Mesmo quando pessoas morrem num furacão, num acidente de carro ou numa guerra, tendemos a tratar esse evento como uma falha técnica que poderia e deveria ter sido evitada. Se o governo tivesse adotado uma política melhor; se a municipalidade tivesse feito adequadamente seu trabalho; se o comandante militar tivesse tomado uma decisão mais sensata, a morte poderia ter sido evitada. A morte tornou-se um motivo quase automático para processos legais e investigações. “Como é possível que tenham morrido? Alguém, em algum lugar, meteu os pés pelas mãos.”

A grande maioria dos cientistas, médicos e estudiosos ainda se distancia de sonhos explícitos com a imortalidade com a alegação de que estão tentando superar este ou aquele problema específico. No entanto, como a velhice e a morte são o resultado de problemas específicos, e nada além disso, não existe um ponto no qual médicos e cientistas irão se deter e declarar: “Até aqui, e nenhum passo a mais. Já superamos a tuberculose e o câncer, mas não vamos erguer um só dedo para combater o Alzheimer. As pessoas poderão continuar a morrer desse mal”. Não se afirma na Declaração Universal dos Direitos do Homem que os humanos têm “direito à vida até os noventa anos”. O que se diz é que todo ser humano tem direito à vida. Ponto. Esse direito não é limitado por uma data de vencimento.

Consequentemente, uma minoria crescente de cientistas e pensadores está falando mais abertamente sobre o assunto hoje em dia e declara que a principal empreitada da ciência moderna é derrotar a morte e garantir aos humanos a juventude eterna. Exemplos notáveis são o gerontologista Aubrey de Grey e o polímata e inventor Ray Kurzweil (ganhador da Medalha Nacional dos Estados Unidos para Tecnologia e Inovação em 1999). Em 2012, Kurzweil foi nomeado diretor de engenharia no Google, e um ano depois o Google lançou uma subcompanhia chamada Calico, cuja missão declarada é “resolver a morte”. 
Recentemente o Google nomeou outro verdadeiro crente na imortalidade, Bill Maris, para presidir o fundo de investimentos Google Ventures. Em uma entrevista concedida em janeiro de 2015, Maris disse: “Se vocês me perguntarem hoje se é possível viver até os quinhentos anos, a resposta é sim”. Maris dá suporte a suas corajosas palavras com investimentos pesados. O Google Ventures está investindo 36% de sua carteira de 2 bilhões de dólares em start-ups na área da biociência, inclusive projetos ambiciosos relacionados com a prorrogação da vida. Empregando uma analogia com o futebol americano, Maris explicou que na luta contra a morte “não estamos tentando avançar algumas jardas. Estamos tentando ganhar o jogo”. Por quê? Porque, segundo ele, “viver é melhor do que morrer”.

Esses sonhos são compartilhados com outros luminares do Vale do Silício. O cofundador do PayPal, Peter Thiel, confessou recentemente que tem o desejo de viver para sempre. “Acredito que existem três modos de encarar [a morte]”, ele explicou. “Você pode aceitá-la, negá-la ou combatê-la. Nossa sociedade é dominada por pessoas que estão entre a negação e a aceitação; eu prefiro combatê-la.” Muitos irão rejeitar tais declarações por considerá-las fantasias de adolescentes. No entanto, Thiel deve ser levado muito a sério. Um dos mais bem-sucedidos e influentes empreendedores no Vale do Silício, possui uma fortuna pessoal estimada em 2,2 bilhões de dólares. É bem óbvio: igualdade é out — imortalidade é in.

O desenvolvimento vertiginoso de campos como a engenharia genética, a medicina regenerativa e a nanotecnologia estimulam profecias ainda mais otimistas. Alguns especialistas acreditam que os homens vão vencer a morte por volta de 2200; outros anunciam que isso acontecerá em 2100. Kurzweil e De Grey são ainda mais confiantes: eles sustentam que qualquer pessoa que tenha um corpo saudável e uma igualmente saudável conta bancária terá em 2050 uma chance séria de imortalidade, enganando a morte uma década por vez. Segundo esses dois estudiosos, a cada dez anos aproximadamente poderemos ir até uma clínica e receber um tratamento renovador que não só irá curar doenças, como também regenerar tecidos deteriorados e aumentar a eficácia de mãos, olhos e cérebro. Antes de se realizar o próximo tratamento, os médicos terão inventado uma série de novos medicamentos, atualizações e uma variedade de dispositivos. Se Kurzweil e De Grey estão certos, talvez já haja alguns imortais caminhando a seu lado na rua — ao menos se você estiver andando por Wall Street ou pela Quinta Avenida.

Na verdade, eles serão amortais, e não imortais. Ao contrário de Deus, os futuros super-homens poderão morrer em alguma guerra ou em um acidente de trânsito, e nada os trará de volta. Contudo, diferentemente de nós, mortais, suas vidas não teriam “data de vencimento”. Enquanto uma bomba não os fizer em pedaços ou um caminhão não lhes passar por cima, poderão continuar a viver indefinidamente. No entanto, é bem provável que isso fará dessas pessoas as mais ansiosas na História. Nós mortais arriscamos diariamente nossa vida porque sabemos que ela, de um jeito ou de outro, vai acabar. Assim, saímos em jornadas no Himalaia, nadamos no mar e participamos de outras ações perigosas, como atravessar a rua ou comer fora. Mas, se acreditarmos que podemos viver para sempre, seremos loucos se apostarmos com o infinito.

Será que teríamos um começo melhor se adotássemos metas mais modestas, como duplicar a expectativa de vida? No século XX , quase a duplicamos — a expectativa de vida passou de quarenta para setenta anos —; assim, no século XXI , poderíamos ao menos tornar possível uma nova duplicação e chegar aos 150. Embora esteja muito aquém da imortalidade, essa conquista iria revolucionar a sociedade humana. De saída, estrutura familiar, matrimônio e relações entre pais e filhos seriam transformados. Hoje em dia, as pessoas ainda esperam estar casadas “até que a morte as separe”, e boa parte da vida gira em torno de ter e criar filhos. Agora, tentemos imaginar uma pessoa com 150 anos de idade. Se se casasse aos quarenta, ela ainda teria 110 anos pela frente. Seria realista esperar que um casamento dure 110 anos? Até mesmo os fundamentalistas católicos veriam isso como um obstáculo. Em decorrência, a tendência atual de casamentos em série provavelmente se intensificaria. Uma pessoa que tem dois filhos aos quarenta anos terá, quando completar 120, apenas uma lembrança remota dos anos que dedicou à sua criação — um episódio menor em sua longa vida. Difícil dizer que tipo de relação pais-filhos poderia se desenvolver em tais circunstâncias.

E quanto às carreiras profissionais? Atualmente, de modo geral, estuda-se para se ter uma profissão da adolescência até pouco mais de vinte anos; depois, passa-se o resto da vida atuando nessa atividade. Obviamente existe um aprendizado mesmo quando se está com quarenta ou cinquenta anos, mas a vida costuma dividir-se em um período de aprendizagem seguido de um período de trabalho. Isso não vai funcionar se as pessoas começarem a viver até os 150 anos, sobretudo em um mundo constantemente sacudido por novas tecnologias. As carreiras serão muito mais longas e será preciso se reinventar de novo e de novo, mesmo aos noventa anos.

Ao mesmo tempo, as pessoas não vão se aposentar aos 65 anos nem vão abrir caminho para a nova geração com suas ideias inovadoras e suas aspirações. Em uma citação famosa, o físico Max Planck afirmou que a ciência avança de funeral em funeral. Ele quis dizer que somente quando uma geração desaparece é que surgem novas teorias com uma chance de erradicar as antigas. Isso se aplica não apenas às ciências. Pense por um momento em seu lugar de trabalho. Não importa se você é um acadêmico, um jornalista, um cozinheiro ou um jogador de futebol. Como você se sentiria se seu chefe tivesse 120 anos, suas ideias tivessem sido formuladas quando a rainha Vitória ainda governava, e sabendo que ele provavelmente permaneceria como seu chefe por mais algumas décadas?

Na esfera política, os resultados poderiam ser ainda mais sinistros. Você gostaria de ver Vladimir Putin circulando por aí por mais noventa anos? Pensando melhor, se as pessoas vivessem até os 150 anos, Stálin ainda estaria em Moscou, em 2016, governando firme e forte aos 138 anos, o presidente Mao estaria na meia-idade, com 123, e a princesa Elizabeth estaria esperando sentada para herdar o trono de um Jorge VI com 121 anos. Seu filho, o príncipe Charles, não chegaria a reinar antes de 2076.

De volta ao domínio da realidade: estamos muito longe de qualquer certeza de que as profecias de Kurzweil e De Grey se realizarão em 2050 ou em 2100. Minha opinião pessoal é de que as esperanças de juventude eterna no século XXI são prematuras, e quem quer que as leve demasiadamente a sério está sujeito a sofrer um amargo desapontamento. Não é fácil viver com a consciência de que vamos morrer, mas é muito pior acreditar na imortalidade e constatar que tudo se tratava de um equívoco.

Embora a duração média de vida tenha duplicado nos últimos cem anos, não é razoável extrapolar e concluir que podemos duplicá-la novamente para alcançar 150 anos no século seguinte. Em 1900, a expectativa de vida global não excedia os quarenta anos porque jovens morriam de subnutrição, doenças infecciosas e violência. Porém, quem escapava à fome, à peste e à guerra podia viver até os setenta ou oitenta anos, que é a duração de vida natural do Homo sapiens. Ao contrário do que em geral se supunha, em séculos anteriores os septuagenários não eram considerados aberrações da natureza. Galileu Galilei morreu com 77 anos, Isaac Newton com 84, e Michelangelo viveu 88 anos, sem a ajuda de antibióticos, vacinas ou transplante de órgãos. De fato, mesmo os chimpanzés na selva podem ter seis décadas de vida.

Na verdade, até o presente a medicina não prolongou o tempo de vida natural do ser humano em um ano sequer. Sua grande conquista foi nos salvar da morte prematura e permitir que usufruamos da plenitude da existência. Mesmo que o câncer, a diabetes e outros grandes assassinos possam ser vencidos, poderíamos nos estender até os noventa anos — mas isso não seria suficiente para nos levar aos 150, muito menos aos quinhentos anos. Para isso, a medicina terá não só de realizar a reengenharia das estruturas e dos processos fundamentais do corpo humano como também descobrir como regenerar órgãos e tecidos. Não está claro se seremos capazes de fazer isso até 2100.

Não obstante, toda tentativa frustrada de vencer a morte nos aproxima um passo do alvo, e isso vai nos dar esperança e encorajar esforços ainda maiores. Embora provavelmente a Calico, do Google, não vá “resolver a morte” a tempo de tornar imortais Sergey Brin e Larry Page (cofundadores do Google), decerto descobertas significativas em biologia celular, medicina genética e saúde humana serão realizadas. A próxima geração de googlers poderá iniciar seu ataque à morte a partir de posições mais recentes e mais efetivas. Os cientistas que gritam “imortalidade” são como o garoto que gritou “lobo”: mais cedo ou mais tarde, o lobo realmente aparece.

Mesmo que não conquistemos a imortalidade durante nossa existência, a guerra contra a morte ainda será o projeto emblemático do próximo século. Acrescente à nossa crença na santidade da vida humana a dinâmica do estamento científico e a esta as necessidades da economia capitalista, e a guerra implacável contra a morte parece inevitável. Nosso compromisso ideológico com a vida humana nunca permitirá que simplesmente aceitemos a morte. Enquanto a morte for motivada por alguma coisa, estaremos empenhados em superar suas causas.

O estado científico e a economia capitalista ficarão mais do que felizes em endossar esse empenho. A maior parte de cientistas e banqueiros não se importa com o que estão trabalhando, contanto que isso lhes ofereça a oportunidade de fazer novas descobertas e obter maiores lucros. Pode alguém imaginar um desafio científico maior do que driblar a morte — um mercado mais promissor do que o da juventude eterna? Se você tem mais de quarenta anos, feche os olhos por um minuto e tente se lembrar do corpo que tinha aos 25. Não se concentre em sua aparência, mas acima de tudo em como era senti-lo. Você estaria disposto a pagar quanto pela oportunidade de ter aquele corpo de volta? Sem dúvida, algumas pessoas não se importariam muito com isso, mas haveria muitas outras dispostas a pagar grandes quantias, constituindo um mercado quase infinito.

Se tudo isso ainda não é o bastante, o medo da morte entranhado na maioria dos humanos confere à guerra contra a morte um ímpeto irresistível. Desde que se conscientizaram de que a morte é inevitável, as pessoas se condicionaram a suprimir o desejo de viver para sempre, ou o refrearam em favor de novas metas. Elas querem viver para sempre e assim compõem uma sinfonia “imortal”, empenham-se pela “glória eterna” em alguma guerra, ou mesmo sacrificam a própria vida para que sua alma “desfrute da felicidade perpétua no paraíso”. Grande parte de nossa criatividade artística, de nosso comprometimento político e de nossa fé religiosa é alimentada pelo medo da morte.

Uma vez perguntaram a Woody Allen, que fez uma carreira fabulosa falando do medo da morte, se ele esperava viver para sempre nas telas. Allen respondeu: “Eu preferiria viver em meu apartamento”. E acrescentou: “Não quero atingir a imortalidade por meio do meu trabalho. Quero atingi-la não morrendo”. Glória eterna, cerimônias comemorativas nacionalistas e sonhos com o paraíso são substitutos muito insatisfatórios para o que humanos como Woody Allen realmente desejam — não morrer. Se as pessoas pensarem (com ou sem bons motivos) que têm uma boa probabilidade de escapar da morte, a vontade de viver se recusará a continuar empurrando a carroça da arte, da ideologia e da religião e se lançará à frente como uma avalanche.

Se você acha que fanáticos religiosos com olhos flamejantes e barbas esvoaçantes são cruéis, espere só para ver o que farão magnatas idosos do varejo e estrelinhas de Hollywood envelhecendo quando pensarem que o elixir da vida está ao alcance deles. Se e quando a ciência fizer um progresso significativo na guerra contra a morte, a batalha real sairá dos laboratórios para os parlamentos, os tribunais e as ruas. Os esforços científicos, uma vez coroados de sucesso, desencadearão conflitos políticos amargos. Todas as guerras e todos os conflitos da história tornar-se-ão um pálido prelúdio da verdadeira batalha a nossa frente: a busca da juventude eterna.
Yuval Noah Harari, "Homo Deus: uma breve história do amanhã"

O mundo em guerra

O mundo está em guerra, como sempre. O mundo tem hoje cerca de dez guerras em andamento. Todas são igualmente iguais, pela sua insensatez, crueldade e mortes. Mas algumas têm mais relevância pela sua amplitude e consequências políticas.

As três mais relevantes hoje são a Guerra entre o Hamas e Israel, sendo o Oriente Médio o berço e a origem dos conflitos de nossa civilização; a Guerra da Ucrânia, uma guerra geopolítica entre a Rússia e os Estados Unidos que domina toda a Europa, e joga por baixo a noção da relativa estabilidade da ordem mundial pós Segunda Guerra; e o possível conflito entre os Estados Unidos e a China, na luta pela hegemonia mundial deste século XXI, com a China tendendo a ultrapassar o PIB do Estados Unidos, gerando tensões que podem resultar em guerra. Este é o trio que nos amargura na visão quase apocalíptica do amanhã.

No berço de nossa civilização, Gregos e Persas se antepuseram, a Grécia mais ligada à noção de democracia, a Pérsia mais baseada no conceito do estado centralizado. Samuel Huntington, em “O choque de civilizações”, fala-nos sobre a relativa diminuição da economia ocidental e o relativo aumento da economia dos países árabes e islâmicos, em concepções antepostas. Israel com política expansionista territorial, entra em conflito contínuo com os Palestinos, ainda sem a constituição de um Estado, e com o mundo Árabe, com poucas chances de solução em não havendo negociação.


Na Europa, chega a impressionar que um país como a Ucrânia, com PIB de US$ 200 bilhões em 2021 e renda per capita de US$ 3.500, 00 dólares, hoje com o PIB diminuído para US 160 bilhões e recebendo auxílio militar de US$150 bilhões no primeiro ano do conflito, seja o palco de tamanha guerra que abala os alicerces mundiais. Em 2021, o PIB da Rússia aumentou 22%, o dos Estados Unidos 9%, o da União Europeia caiu 3,5%. Desde 1950, os Estados Unidos participaram em cerca de 30 guerras no mundo, a Rússia em seis.

No Mar da China, navios e aviões da China e dos Estados Unidos provocam-se reciprocamente, aumentando a possibilidade de conflito. De 2000 a 2021, o PIB dos Estados Unidos foi de US$ 10,3 trilhões para US$ 23,3 trilhões, a China de US$ 1,2 trilhões para US$ 17,7 trilhões. A China reivindica Taiwan, responsável por 90% da produção mundial dos supercondutores na vanguarda do conhecimento, os Estados Unidos defendem a sua autonomia. Os supercondutores são fundamentais na determinação do poder econômico e político das nações no século XXI. A luta que era antes por colônias, depois por petróleo, agora é por supercondutores.

Na música de Rita Lee, “Alô, alô Marciano, aqui quem fala é da Terra, pra variar, estamos em guerra, você não imagina a loucura, o ser humano tá na maior fissura porque, tá cada vez mais down in the high society”. O mundo é cego, e marcha para a sua possível autodestruição, na contraposição do mercado e da crise ecológica que se aproxima.

Acerca do fanatismo

A essência do fanatismo consiste em considerar determinado problema como tão importante que ultrapasse qualquer outro. Os bizantinos, nos dias que precederam a conquista turca, entendiam ser mais importante evitar o uso do pão ázimo na comunhão do que salvar Constantinopla para a cristandade. Muitos habitantes da península indiana estão dispostos a precipitar o seu país na ruína por divergirem numa questão importante: saber se o pecado mais detestável consiste em comer carne de porco ou de vaca. Os reacionários americanos prefeririam perder a próxima guerra do que empregar nas investigações atómicas qualquer indivíduo cujo primo em segundo grau tivesse encontrado um comunista nalguma região. Durante a Primeira Guerra Mundial, os escoceses sabatários, a despeito da escassez de víveres provocada pela atividade dos submarinos alemães, protestavam contra a plantação de batatas ao domingo e diziam que a cólera divina, devido a esse pecado, explicava os nossos malogros militares. Os que opõem objecções teológicas à limitação dos nascimentos, consentem que a fome, a miséria e a guerra persistam até ao fim dos tempos porque não podem esquecer um texto, mal interpretado, do Génese. Os partidários entusiastas do comunismo, tal como os seus maiores inimigos, preferem ver a raça humana exterminada pela radioatividade do que chegar a um compromisso com o mal - capitalismo ou comunismo segundo o caso. Tudo isto são exemplos de fanatismo.

Em cada comunidade há um certo número de fanáticos por temperamento. Alguns desses fanáticos são essencialmente inofensivos e os outros não fazem mal enquanto os seus partidários forem pouco numerosos ou estiverem afastados do poder. Os “amish” na Pensilvânia pensam que é mau usar botões; isto é completamente inofensivo, salvo na medida em que revela um estado de espírito absurdo. Alguns protestantes extremistas gostariam de ressuscitar a perseguição aos católicos; essas pessoas só serão inofensivas enquanto forem em pequeno número. Para que o fanatismo se torne uma ameaça séria é preciso que possua bastantes partidários para pôr a paz em perigo, internamente por meio de uma guerra civil ou externamente por uma cruzada; ou quando, sem guerra civil, estabeleça uma Lei dos Santos que implique a perseguição e a estagnação mental. No passado, o melhor exemplo da história é o reinado da Igreja desde o século IV ao século XVI.

(...) Para curar o fanatismo - salvo nas aberrações raras dos indivíduos excêntricos - são necessárias três condições: segurança, prosperidade e educação liberal.

Bertrand Russell, "A Última Oportunidade do Homem"

O radicalismo vai vencer o jogo político?

O radicalismo tornou-se um dos maiores desafios da política contemporânea. Esse modelo privilegia o confronto e a polarização em vez da negociação e do compromisso. Por muitas vezes ele esteve presente e forte na História, mas a chamada terceira onda de democratização, iniciada com a Revolução dos Cravos em Portugal (1974), e o fim da Guerra Fria inauguraram uma breve era em que havia sempre a esperança da vitória dos acordos e do diálogo nos planos nacional e internacional, mesmo quando os conflitos permaneciam. O cenário se modificou nos últimos anos, com a ascensão da lógica da guerra permanente, que conquista cada vez mais corações e mentes, votos e armas.

A chamada pax americana não foi, evidentemente, um mundo róseo ou o fim da História. Houve guerras nos Bálcãs e no Iraque, vários atentados terroristas, o 11 de Setembro, a invasão do Afeganistão, algumas crises econômicas internacionais, a derrota da paz em Israel e a manutenção de importantes regimes autoritários, como a China ou a Arábia Saudita. Mesmo assim, havia dois fatores distintivos do período: a força de lideranças democráticas em várias partes do mundo, capazes de estabelecer algum nível de diálogo nacional e internacional, e uma maior cooperação entre potências globais e regionais, permitindo a entrada da China na Organização Mundial do Comércio e a ascensão dos Brics.



Desde a crise econômica de 2008 tem havido um declínio da democracia e da interlocução internacional. O entendimento desse fenômeno passa pela ascensão de regimes autoritários ou iliberais, bem como pela crise de relacionamento dos países líderes do eixo ocidental - EUA e Europa - com a Rússia e a China, mas tem seu elemento-chave num modus operandi político que pode ser denominado de lógica da guerra permanente. Trata-se de um tipo de radicalismo que joga contra a democracia e os acordos internacionais em nome de uma visão de mundo baseada no confronto e na violência contra os adversários.

No plano interno dos países, o radicalismo presente na lógica da guerra permanente teve na ascensão da extrema direita a sua mola propulsora. São grupos radicais - fascistas para alguns - que adotaram um discurso de luta cultural e moral não só contra a esquerda, mas contra valores básicos construídos desde o Iluminismo. Não estão apenas combatendo os “comunistas”, como gostam de dizer. Vão muito além e são contrários aos que pensam diferente, denunciando-os cotidianamente em praça pública - leia-se: nas redes sociais. Desse modo, não há nenhum espaço para se negociar e encontrar um meio-termo com os adversários. Tal visão de mundo mata o lado mais rico da política, especialmente nas democracias: a arte de se construir compromissos entres os grupos divergentes.

Por esse caminho radicalizante, substitui-se o pluralismo político que ancorou o jogo democrático desde o final da Segunda Guerra Mundial pela polarização imutável. Uma verdadeira cruzada moral dos “puros” contra os “impuros” alimenta essa lógica da guerra permanente. Contra a ideia de que a democracia é o terreno da competição legítima entre opostos e de que a alternância entre grupos é saudável, estabelece-se uma única forma de política: ou minha posição vence, ou é preciso tornar ilegítimo o outro lado. A extrema direita, no fundo, não aceita a incerteza intrínseca aos regimes democráticos, caminhando, de um modo ou de outro, para soluções autoritárias, seja para inviabilizar o governo dos rivais, seja para evitar qualquer controle institucional dos seus governantes.

A extrema direita é a principal propulsora da lógica da guerra permanente como norteadora do jogo político, porém por vezes parcelas da esquerda também adotam tal padrão, principalmente em suas batalhas por cancelamento nas redes sociais. Negar-se ao diálogo, à possibilidade de estabelecer compromissos entre os diferentes ou à busca pelo convencimento é fazer o jogo dos extremistas. Ao fim e cabo, esse é um erro fatal, porque naturaliza a radicalização e a polarização que movimentos antissistema e reacionários querem que comandem a política contemporânea. Por isso, aos democratas genuínos só resta sempre apostar no diálogo amplo e evitar o comportamento de menosprezo à arte da política em nome de imperativos morais absolutos.

A ascensão do extremismo político no plano interno dos países semeou o radicalismo no âmbito internacional. Trump iniciou a batalha sem fim contra a China, gerando uma animosidade entre americanos e chineses que impacta negativamente o mundo todo. Putin destruiu todos os seus inimigos políticos - alguns literalmente - em nome de uma ideologia moralista e extremista, ganhando um poder irrefreável que lhe permitiu a aventura inconsequente da invasão da Ucrânia. O radicalismo terrorista do Hamas, alimentado pelo modelo totalitarista dos líderes iranianos, produziu um massacre terrível de inocentes, e terá como resposta a promessa de carnificina advinda do governante israelense, um pretendente explícito ao autoritarismo.

A insensatez tomou conta da ordem internacional e a lógica da guerra permanente, sem espaço para o diálogo e o compromisso entre opositores, está prevalecendo. A consequência disso não será a vitória inconteste de um dos grupos, que provavelmente se autointitula como o “lado certo da História”. Ao contrário, os resultados mais prováveis serão a piora do cenário econômico global, o crescimento do número de mortes e do caos nos ambientes de guerra, bem como a incapacidade para guiar o mundo para as batalhas que favorecem a todos, como a luta contra a desigualdade e a mudança climática. China, EUA, Rússia, Israel, Palestina, nenhum deles ou qualquer outro ganhará com o radicalismo crescente. O futuro imediato do século XXI só caminhará para uma trilha mais positiva se for recuperada a política como parteira de acordos amplos pela sobrevivência e desenvolvimento do maior número possível de nações.

E o Brasil, como fica diante desse cenário? Três questões são centrais diante da ascensão da guerra permanente como variável-chave da ordem política atual. Em primeiro lugar, é preciso ter grande capacidade de equilíbrio em sua política externa. No fato conflituoso mais recente, é fundamental ressaltar o caráter terrorista da ação do Hamas, que não representa por completo a posição do povo palestino, do mesmo modo que é necessário lutar para uma solução negociada para o curto e o longo prazos. No plano imediato, atuar para evitar tanto o maior número possível de mortes como o prolongamento dessa crise. Numa perspectiva temporal mais ampla, ajudar a juntar o maior número possível de apoios para a convivência pacífica e soberana desses dois povos, buscando isolar os que não querem nem o Estado de Israel nem uma nação palestina.

A posição brasileira deverá se basear na defesa incondicional dos direitos humanos de todos e evitar a tomada de posições em razão de amizades políticas. Ademais, o Brasil não será o ator central para resolver esse conflito, cabendo mais aos Estados Unidos, à China e aos países árabes essa posição. Dessa maneira, qualquer ação mais espalhafatosa, mesmo que bem-intencionada, deverá ser trocada pela parcimônia.

Uma segunda questão que deriva do fortalecimento da lógica da guerra permanente diz respeito aos atores que defendem esse modelo no Brasil, particularmente aqueles que atuaram em prol de um golpe de Estado. Não será possível garantir as bases democráticas do país se não houver uma punição dos extremistas golpistas. A política deve se lastrear principalmente na busca do acordo e do compromisso, contudo, quando está em jogo a própria sobrevivência da democracia, as ações têm de ser exemplares, para evitar que o radicalismo da extrema direita volte a se expressar no futuro próximo pela via antidemocrática.

O ponto central nesse cenário de radicalismo relaciona-se a uma terceira questão: como recuperar a política brasileira para que ela funcione por meio de um cálculo responsável em prol do diálogo e do compromisso? Os principais líderes políticos não podem se esquecer dos resultados calamitosos do extremismo bolsonarista, em particular sua negação constante da política institucional e da conversa entre os diferentes. É necessário adotar um modelo oposto a esse, que procure a construção de consensos, em vez de apostar na polarização e na definição de um caminho com apenas um vencedor. Mais interlocução contínua entre os diferentes e menos ameaças de ataque ao outro, eis a fórmula para sairmos melhores dessa crise nacional e internacional de grande monta.

Uma nova política não será para alijar a esquerda, a direita ou o centro democráticos do jogo político. Ela deve, em vez disso, procurar o que há de comum e construir pontes para uma posição que não signifique uma perda substantiva para nenhum grupo político e social significativo. A radicalização que houve nas últimas semanas no Congresso Nacional, numa aliança estratégica entre setores do Centrão com o bolsonarismo, poderá gerar um desastre para o país no momento internacional mais delicado desde o fim da Guerra Fria. A história recente está mostrando que a lógica da guerra permanente só tem produzido votos para os radicais e enfraquecido os democratas de diversos matizes. É nisto que deveriam pensar os chefes dos Poderes em Brasília.