quarta-feira, 2 de junho de 2021

Pensamento do Dia

 


Não se trata de genocídio, mas de crime contra a humanidade

Na candente retórica da política não configura crime qualificar o presidente da República de genocida em razão de sua estratégia de amistosa convivência com o coronavírus. Tampouco é crime desejar a sua morte, pois a causa supralegal do “direito à perversão” isenta de punição quem deseja o falecimento de outrem, desde que não faça preparativos para tanto e, por óbvio, muito menos atue para consumar o ato.

Ainda que recorrente como palavra polissêmica nas manifestações populares, a imputação leiga de genocídio estiliza a legítima crítica pública sem encontrar adequação técnica no Direito Internacional, mas é indubitável que, à luz da boa doutrina, tal conduta mais se identificaria com a que vem definida como crime contra a humanidade.


Criados pelo jurista polonês Raphael Lemkin, em 1943, com a união das palavras grega génos (família, tribo, raça) e latina caedere (matar) a partir dos episódios de extermínio de armênios e judeus, os termos genocídio/genocida foram introduzidos no Direito pelo Estatuto de Roma, tratado que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI), em 1998, do qual o Brasil se tornou signatário pelo decreto de número 4.388/2002.

O artigo 6.º define o crime de genocídio como “qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo”.

Os crimes contra a humanidade estão conceituados no artigo 7.º, em que se tipificam as iniciativas de ataque sistemático e generalizado a populações civis, sem distinção de características físicas ou culturais, entre eles “atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”.

Nessa barbárie se enquadraria a performance do presidente brasileiro – suficiente para levá-lo às barras do TPI, a exemplo do general croata Ante Gotovina, do ditador líbio Muamar Kadafi e do ex-ministro queniano William Samoei Ruto.

Os “atos desumanos” do presidente do Brasil estão demonstrados em entrevistas, lives, memes e outras manifestações tão trágicas quanto sarcásticas, para sustentar uma política sanitária na qual especialistas identificam, antes de descaso com a saúde pública, uma campanha pró-vírus.

Não se trata apenas de manifestações pessoais, mas de atos oficiais – como demonstrou um levantamento de 3.049 normas federais para a covid-19, analisadas pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Universidade de São Paulo e pela Conectas Direitos Humanos.

O incremento descontrolado do coronavírus se deu por ações e omissões. Como um mecenas da doença, o presidente não equipou o serviço de saúde para o combate à pandemia e boicotou medidas recomendadas pelas organizações internacionais, como o confinamento, o uso de máscara e a restrição a aglomerações, tanto quanto deixou de adquirir vacinas em tempo hábil, e ainda pôs em dúvida a eficácia de imunizantes, ao mesmo tempo que, como um taumaturgo desastrado, tentou sobressair com a receita de remédios ineficazes, a buscar um quiproquó diversionista de “tratamento precoce” – contradição terapêutica e semântica. Que mais poderia fazer, se, como justificou, “não é coveiro?”

A coreografia de abre-alas da pandemia, apregoando laissez-faire, laissez-aller, laissez-passer, ou deixai fazer, deixai ir, deixai passar, foi incentivo para a população viver e trabalhar como se o perigo fosse uma “gripezinha” que segrega um agente infeccioso só maléfico para os predestinados à morte, aos portadores de comorbidades e, no linguajar chulo, aos “maricas”.

A degenerada epidemiologia do Planalto consistiu em deixar a natureza seguir seu curso, o vírus abater os que, em darwinismo imunológico, não adaptassem o organismo à resistência ao mal, enquanto a maioria ficaria naturalmente refratária, e sobreviesse a chamada imunidade de rebanho – ao custo, quem sabe, de alguns milhões de vidas. De quebra, a economia não sofreria tanto e a reeleição do messias estaria assegurada.

O conjunto da obra aponta para o crime contra a humanidade. Advogados brasileiros já protocolaram pedido de investigação no Tribunal Penal Internacional. Embora lento, pois segue o rito do indispensável devido processo legal, com audiências de instrução e amplo direito de defesa, o inquérito do TPI pode declarar a infâmia de uma administração que elegeu a morte como opção preferencial.

Tudo considerado, porém, não se pode negar que “#genocida” tem força de palavra de ordem e internacionaliza o problema, ao correr o mundo como motivo já invocado para intervenção estrangeira no Brasil.

A catimba de Bolsonaro

Vai ter Copa. Sete anos depois da controvérsia envolvendo a realização da Copa do Mundo no Brasil, e em plena pandemia, nos vemos na situação surrealista de sediar um evento futebolístico que dois vizinhos entenderam ser inoportuno abrigar.

E por quê? É simples: porque é desse tipo de coisa que gosta Jair Bolsonaro, é esse tipo de evento, e de confusão, que move o presidente do Brasil. Decisões administrativas, montagem de gabinetes de crise, planejamento de políticas públicas, definição de diretrizes de Estado, tudo isso aborrece e entedia o capitão.

A discussão a respeito da realização da Copa América no Brasil é um exemplo acabado de como o modo caótico de decisão de Bolsonaro nos trouxe até aqui. Ela desnuda a forma de pensar e decidir do presidente. Mostra que qualquer esforço narrativo para mostrá-lo como alguém que agora se preocupa com vacinas e com razoabilidade é apenas maquiagem.

Bolsonaro levou meses para decidir cobrar de seu ministro da Saúde, o agora premiado Eduardo Pazuello, alguma providência para que o Brasil estivesse bem posicionado na corrida pelas vacinas.

Mas bastou um telefonema de um cartola para que ele mobilizasse todo o governo para aceitar realizar aqui o campeonato futebolístico que Colômbia e Argentina recusaram por razões políticas, sociais e sanitárias. Razões essas presentes no Brasil, que vive o início de uma terceira onda de Covid-19.

Em sua compreensão tosca e maniqueísta do que seja governar e, principalmente, do que sejam trunfos possíveis para sua reeleição, Bolsonaro acha que trazer um evento festivo para o país pode ajudar a mudar o clima a seu favor.

Ele sentiu o calor das ruas no último fim de semana. Percebeu que sua batata está assando junto a um eleitorado cansado de não ver acelerar o ritmo da vacinação, que ainda não enxerga na carteira de trabalho e no prato os ventos de recuperação econômica que começam a soprar nos indicadores macroeconômicos.

Nada melhor, diante desse quadro, do que uma bola rolando, não é mesmo? Aqueles que sempre encontrarão um jeito de defender qualquer nonsense que o presidente faça dizem que não há diferença entre a Copa América e outros torneios que já estão ocorrendo, inclusive a Libertadores.

Mas os cientistas são unânimes em apontar a inconveniência de promover um entra e sai de delegações quando tentamos, sem sucesso, promover uma barreira sanitária que impeça a entrada de novas variantes do vírus, justamente no momento em que a curva de casos volta a subir.

Além disso, transparece desse episódio algo essencial a compreender no momento em que uma CPI avança na discussão de responsabilidades por nosso fracasso na pandemia: ele decorre do pouco-caso com que o presidente da República encara a doença, as vidas daqueles que governa e as mortes que continuam a se suceder aos milhares.

Faltou vacina porque Bolsonaro não quis comprar e não comprou enquanto pôde. E, por ele, a vida segue, e a bola corre, porque não há nada com que ele se importe acontecendo fora das quatro linhas do campo da política, aquele único em que ele sabe jogar.

Que todos — senadores, eleitores, ministros do Supremo, procuradores da República — extraiam desse episódio que é puro suco de bolsonarismo uma lição definitiva, que precisará estar no centro de qualquer estratégia para 2022: Bolsonaro não vai se moderar, não vai se conscientizar, não vai se importar. Seguirá governando impelido pelo objetivo único do poder para si e para os seus.

É essa a compreensão que tem de nortear o relatório da CPI no nevoeiro de mentiras, empulhações e tentativas de dourar a história da pandemia que paira sobre depoimentos cada vez mais dispersos. Ou a investigação não sairá do zero a zero num jogo ruim.

Subversão ao vivo em verde-oliva

 

A soberba e a subversão da ordem imperam, absolutas, desde que Bolsonaro subiu ao Planalto. Cabe à cidadania lutar contra o arbítrio em todos os níveis, do guarda da esquina ao presidente da República 
Roberto Romano

Os milicos que se cuidem

Foi num dia de semana à tarde, em 1970, auge da ditadura —me contaram. Um garoto de seus 15 anos ganhou uma flautinha de plástico e foi à praia com ela. Sentado na areia, numa Ipanema vazia, tentou tirar o Hino Nacional —afinal, ouvia-o todo dia. Ao extrair algo parecido com a frase inicial, percebeu uma sombra entre ele e o Sol. Olhou para cima e viu um sujeito forte, bronzeado, de cabelo reco. O homem rugiu: "Por que está tocando isso?". O garoto, surpreso, ficou mudo. Não havia resposta. O homem emendou: "Estou ali naquela barraca escutando tudo. Se continuar com gracinha vai se dar mal!". Um vendedor de mate sussurrou para o garoto: "Coronel do Exército".

É típico das ditaduras se apoderarem dos símbolos nacionais. O Brasil de Médici era uma diarreia verde-amarela. Uma geração de escolares foi submetida a anos de bandeira e hino diários, de pé, no pátio do colégio. Talvez por isso, um garoto de cabelo comprido tocando o Hino Nacional na praia pudesse ser um deboche, uma contestação.

O governo Bolsonaro não é uma ditadura — ainda. Mas, em algumas matérias, já se comporta como. Assenhorou-se, por exemplo, das cores nacionais e de conceitos como "povo", "democracia" e "liberdade" e da expressão "homem de bem". São "homens de bem" os que, contra a corrupção do PT, apoiam o extermínio de brasileiros pela Covid, promovido por ele.

Mas, agora, Bolsonaro se superou. Apropriou-se daquele que se considera o detentor do monopólio dos símbolos —o próprio Exército. Do mais tosco soldado ao mais empafiado general, Bolsonaro embolsou-os com benesses, empregos, cargos e uma ideologia intangível, em nome da qual passou a ditar-lhes o regulamento e fazê-los abdicar até de uma de suas cláusulas pétreas: a disciplina.

Os milicos que se cuidem. Um dia, ainda veremos Bolsonaro de dedo no nariz de um deles por tocar o Hino numa flautinha de plástico.

Essa Copa é nossa, Brasil

 


Somos todos idiotas

Sendo uma das idiotas que não saem de casa, na gentil descrição do senhor Presidente da República, tenho tido muito tempo para pensar na vida; o que me leva, invariavelmente, a concluir que, num mundo de idiotas, o melhor a fazer é não pensar. 

Todos nós, idiotas, estamos cansados. Do isolamento e das restrições da pandemia, da solidão e da monotonia, mas, sobretudo, das notícias que nos chegam a respeito dos outros idiotas, aqueles que se rebelam contra as máscaras, não respeitam distanciamento social e acham que vírus se combate no grito. 

Eles não aprenderam que, além dos cientistas que desenvolvem vacinas, ninguém pode fazer nada de concreto contra uma pandemia. 


Nós idiotas que ficamos em casa fazemos o possível para evitar que o vírus circule. É pouco, de fato, mas é o que podemos fazer. Ficar em casa quando se pode ficar em casa não é desdouro nem falta de coragem, é consciência social: quanto menos gente houver nas ruas menos o vírus estará em circulação e menos pessoas serão contaminadas. 

Não parece difícil de explicar, mas, pelo visto, é impossível de entender. Há alguma mutação genética ou ausência de atividade cerebral que impede que os idiotas, aqueles, compreendam essa verdade basilar. Um dia eles ainda vão ser estudados pela Ciência. 

A nossa idiotice de isolados é um sentimento tingido pela melancolia, intenso mas inofensivo. Passamos os dias trabalhando, lendo, cozinhando, lavando louça, participando de lives, cuidando de plantas e de bichos, refletindo e torcendo para que haja vacina logo para todo mundo. 

Enquanto isso o idiota lá desdenha das máscaras, aglomera, voa de helicóptero, faz churrasco, anda de moto, cavalga pela Esplanada dos Ministérios e oferece ao mundo o espetáculo da sua estupidez relinchante e orgulhosa de si mesma. 

Genocida.
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Desde os tempos em que trabalhei em Brasília, numa outra encarnação, eu já sabia que educação, caráter e hombridade não são requisitos básicos para assumir cargos importantes na administração pública. Mas eu ainda guardava uma ilusão solitária, e imaginava que era preciso ter um mínimo de inteligência e de sofisticação intelectual para ser Ministro das Relações Exteriores.
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A Mauritânia fica na costa africana, ao Norte, logo abaixo do Marrocos e colada à Argélia, em pleno Saara: sua capital Nouakchott, com cerca de um milhão de habitantes, é a maior cidade do deserto. 

Eu não sabia disso, e não foi por falta de interesse na região, porque antes da chegada do Exército Islâmico ao Mali cheguei a fazer planos de viajar para o país, ali ao lado. Eu também não sabia que a Mauritânia só aboliu a escravidão oficialmente em 1981 e que conserva o antigo hábito berbere de engordar as mulheres: meninas com 8 ou 9 anos são obrigadas a beber leite de camelo aos litros e, aos 12, já são obesas de 30 anos. 

Como idiota que sou, tenho fugido da vida real mergulhando em documentários, e foi no canal Tracks, no YouTube, que encontrei uma série holandesa sobre os países do Saara. Ela é apresentada por Bram Vermeulen, e está em inglês; há opção de legendas automáticas. O Tracks é um aglutinador de conteúdo que reúne documentários sobre o mundo todo realizados por emissoras de diversos países, e tem uma coleção extraordinária de vídeos.
Cora Rónai

Governo minúsculo

Um presidente de verdade, unificaria o país, pacificando-o. Visitaria não os palanques, mas os hospitais. Renderia homenagens a médicos e enfermeiros. Confortaria as famílias dos mortos. Pregaria a vacinação. O "despresidente" Bolsonaro faz tudo ao contrário. Muitos imaginam que o inquilino do Planalto sofre de insanidade. Engano. Ele aproveita cada segundo dela. 

O guarda da esquina está de volta

O Ato Institucional número 5, que em dezembro de 1968 fez a ditadura ainda branda tirar a máscara e revelar sua face mais cruel, causou assombro ao então vice-presidente Pedro Aleixo (PSD-MG).

Ele foi o único que votou contra a adoção do ato na reunião comandada pelo presidente Arthur da Costa e Silva, um general bonachão, que só lia palavras cruzadas e se dizia democrata.

Aleixo alegou na ocasião: “O problema de uma lei assim não é o senhor [Costa e Silva], nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”.


Acertou na mosca, como se viu a partir dali e até que a ditadura se esgotasse em janeiro de 1985. A anarquia agitou os quartéis. Os mais pavorosos crimes foram cometidos por soldados e generais.

Com uma democracia ainda plena, embora ameaçada por um ex-capitão afastado do Exército por indisciplina e órfão assumido da ditadura de 64, o guarda da esquina reapareceu.

Foi visto, ontem, em Goiânia, ao prender o professor da rede pública estadual e secretário estadual do Partido dos Trabalhadores (PT) de Goiás, Arquidones Bites Leão.

Com a farda da Polícia Militar, o guarda exigiu que o professor retirasse do capô do seu carro uma faixa onde estava escrito: “Fora Bolsonaro Genocida”.

Como o professor não o fez, o guarda leu para ele um trecho da Lei de Segurança Nacional que proíbe ofensas ao presidente da República e a um grupo limitado de autoridades.

Em seguida, deu-lhe voz de prisão e levou-o preso para a sede da Polícia Federal, onde o professor foi interrogado e libertado mais tarde. O guarda de Goiânia tem fotos com Bolsonaro.

O que tanto Aleixo temeu à sua época começa a repetir-se 53 anos depois aqui e acolá.

A anarquia militar de Bolsonaro

O vice-presidente Hamilton Mourão defendeu a necessidade de punição do general Eduardo Pazuello dizendo que é preciso “evitar que a anarquia se instaure dentro das Forças”.

Santas palavras. A partir da Proclamação da República, em 1889, a anarquia militar empesteou a política brasileira do século XX com pelo menos 14 levantes e seis golpes. Pode-se dizer que alguns foram de direita, outros de esquerda, mas todos tinham uma essência política. Os tenentes dos anos 20 queriam uma nova República. Até mesmo os generais que, em 1969, empossaram a junta militar dos Três Patetas (expressão usada por Ernesto Geisel em conversas privadas e Ulysses Guimarães em declaração pública) agiram em nome de uma suposta defesa da ordem.


A má notícia é que hoje a anarquia militar tem um pé na delinquência civil, para dizer o mínimo. Gregório Fortunato, o “Anjo Negro” e chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas, era paisano. Fabrício Queiroz, o chevalier servant dos Bolsonaros, é um ex-policial militar. Nenhuma crise militar do século passado teve PMs, muito menos conexões com milicianos. Em 1964, o general Humberto Castello Branco disse que “não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos, destinam-se a garantir os poderes constitucionais e sua coexistência”. À época, a palavra “milícia” tinha outro significado.

Não passava pela cabeça dos generais do século passado conviver com a ideia de PMs amotinados. Em 1961, quando policiais militares de São Paulo rebelaram-se, o comandante da tropa de São Paulo, general Arthur da Costa e Silva, acabou com o levante no grito e prendeu os indisciplinados.

A essência política da anarquia militar do século XX cumpria um relativo ritual hierárquico. Em 1955, o general Odylio Denys foi decisivo para que seu colega, o ministro Henrique Lott, depusesse dois presidentes numa só noite. Seis anos depois, como ministro, prendeu-o por ter defendido a posse de João Goulart.

Nessa anarquia, prevaleciam os generais silenciosos, aqueles de que ninguém lembra o nome.

Bolsonaro gosta de falar em “minhas Forças Armadas”. As tropas de chefes militares que comiam abelhas, como Floriano Peixoto, não tinham dono. Também não existiam PMs amotinadas, milicianos, nem generais da ativa em manifestações de motoqueiros paramentados. Cenas como as da ação da PM no Recife no último domingo são um aviso de que a anarquia pode vir de baixo. Os disparos de balas de borracha contra manifestantes foram uma clara provocação anárquica, porém deliberada.

Hoje esses personagens existem e são um fator relevante na desordem política e administrativa do país. A anarquia militar de Bolsonaro é nova — e pior.

O risco de “que a anarquia se instaure dentro das Forças” tornou-se visível com o general Pazuello subindo no carro de som de Bolsonaro, mas ele está aí desde 2018, quando o comandante do Exército sugeriu com seu famoso tuíte que o Supremo Tribunal Federal negasse o habeas corpus que impediria a prisão de Lula. Ele ecoava uma manifestação do comandante das tropas do Sul, general Jair Dantas Ribeiro, em 1962, forçando a realização de um plebiscito para enterrar o regime parlamentarista. João Goulart apostava na anarquia militar.

Elio Gaspari

O quadrúpede que grunhe

Os disparates de Jair Bolsonaro costumavam atrair os leitores. Sempre que reproduzíamos uma de suas barbaridades, o ponteiro do Google Analytics subia vertiginosamente.

Isso mudou. Ele pode até insultar os velhos campeões de audiência do nosso site, dizendo que Lula “grunhe” e que Dilma é uma “quadrúpede”, mas ninguém mais se importa. O efeito se dissipou. Não cola. A sua estupidez, que provocava estupor, agora só provoca repulsa. Ou, pior ainda, desalento.

Até o ano passado, muita gente, inclusive na imprensa, acreditava que a estupidez de Jair Bolsonaro fosse premeditada, e que escondesse alguma forma de esperteza. Agora todos sabem que ele é só isso mesmo. Ele parece raso porque é raso, parece primário porque é primário.

Ontem à noite, enquanto lamentava as 460 mil mortes de Covid, ele riu. Uma de suas macacas de auditório perguntou-lhe o motivo de tanto contentamento, e ele explicou:

“Alguns acham, tem gente filmando aqui, vai sair eu rindo. ‘Não pode, não sei o quê, o problema’. Isso acontece. Se a gente não tentar ser feliz, vai esperar o quê? Eu pergunto: essa pandemia vai acabar quando? Alguém sabe? Vai até as eleições do ano que vem?”

Só há isso na cabecinha obtusa de Jair Bolsonaro: 2022. Ele não é capaz de ver nada além disso. Não é esperteza, não é estratégia, não é xadrez: ele é apenas mais um quadrúpede que grunhe.