quarta-feira, 2 de junho de 2021

A anarquia militar de Bolsonaro

O vice-presidente Hamilton Mourão defendeu a necessidade de punição do general Eduardo Pazuello dizendo que é preciso “evitar que a anarquia se instaure dentro das Forças”.

Santas palavras. A partir da Proclamação da República, em 1889, a anarquia militar empesteou a política brasileira do século XX com pelo menos 14 levantes e seis golpes. Pode-se dizer que alguns foram de direita, outros de esquerda, mas todos tinham uma essência política. Os tenentes dos anos 20 queriam uma nova República. Até mesmo os generais que, em 1969, empossaram a junta militar dos Três Patetas (expressão usada por Ernesto Geisel em conversas privadas e Ulysses Guimarães em declaração pública) agiram em nome de uma suposta defesa da ordem.


A má notícia é que hoje a anarquia militar tem um pé na delinquência civil, para dizer o mínimo. Gregório Fortunato, o “Anjo Negro” e chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas, era paisano. Fabrício Queiroz, o chevalier servant dos Bolsonaros, é um ex-policial militar. Nenhuma crise militar do século passado teve PMs, muito menos conexões com milicianos. Em 1964, o general Humberto Castello Branco disse que “não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos, destinam-se a garantir os poderes constitucionais e sua coexistência”. À época, a palavra “milícia” tinha outro significado.

Não passava pela cabeça dos generais do século passado conviver com a ideia de PMs amotinados. Em 1961, quando policiais militares de São Paulo rebelaram-se, o comandante da tropa de São Paulo, general Arthur da Costa e Silva, acabou com o levante no grito e prendeu os indisciplinados.

A essência política da anarquia militar do século XX cumpria um relativo ritual hierárquico. Em 1955, o general Odylio Denys foi decisivo para que seu colega, o ministro Henrique Lott, depusesse dois presidentes numa só noite. Seis anos depois, como ministro, prendeu-o por ter defendido a posse de João Goulart.

Nessa anarquia, prevaleciam os generais silenciosos, aqueles de que ninguém lembra o nome.

Bolsonaro gosta de falar em “minhas Forças Armadas”. As tropas de chefes militares que comiam abelhas, como Floriano Peixoto, não tinham dono. Também não existiam PMs amotinadas, milicianos, nem generais da ativa em manifestações de motoqueiros paramentados. Cenas como as da ação da PM no Recife no último domingo são um aviso de que a anarquia pode vir de baixo. Os disparos de balas de borracha contra manifestantes foram uma clara provocação anárquica, porém deliberada.

Hoje esses personagens existem e são um fator relevante na desordem política e administrativa do país. A anarquia militar de Bolsonaro é nova — e pior.

O risco de “que a anarquia se instaure dentro das Forças” tornou-se visível com o general Pazuello subindo no carro de som de Bolsonaro, mas ele está aí desde 2018, quando o comandante do Exército sugeriu com seu famoso tuíte que o Supremo Tribunal Federal negasse o habeas corpus que impediria a prisão de Lula. Ele ecoava uma manifestação do comandante das tropas do Sul, general Jair Dantas Ribeiro, em 1962, forçando a realização de um plebiscito para enterrar o regime parlamentarista. João Goulart apostava na anarquia militar.

Elio Gaspari

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