sábado, 6 de janeiro de 2024
A ascensão global da extrema direita
“O espírito sou que sempre nega! / E com razão: pois tudo quanto nasce / De extermínio total somente é digno; / Pelo que, nada haver melhor seria”
Como devemos chamar os movimentos de extrema direita que não param de crescer em todo o mundo, tendo como mais nova vítima a Argentina?Goethe
Populismo, em si, é insuficiente. Fascismos são necessariamente populistas, embora a recíproca não seja verdadeira. Chamar a extrema direita apenas de “populista” é confortável para ela, que acaba por não ser combatida com a veemência que é preciso.
O fascismo não morreu em 1945 com o suicídio de Hitler, limitá-lo de forma hermética a um período histórico é negar que qualquer conceito e ideia se adapta e evolui através do tempo. Tanto mais: Benito Mussolini deu nome a essa fusão de populismo, reacionarismo, nacionalismo e autoritarismo, mas em que pese que o seu movimento fascista seja o mais famoso, outros semelhantes existiam na mesma época e inclusive o antecederam. Na própria Itália, Gabriele d’Annunzio mobilizou uma campanha nacionalista pela cidade fronteiriça de Fiume (na época, com a Iugoslávia) que pode, no mínimo, ser visto como predecessor do Fascismo.
Qualquer fascismo distinto do italiano será diferente, assim como o próprio fascismo mudou internamente durante o vintênio. O nazismo é o exemplo mais claro. Com frequência tomado como uma espécie de versão radicalizada do fascismo, sua pauta de purificação racial é estranha à sua contraparte italiana. Umberto Eco (2018, p. 43) lembra, por exemplo, que Ezra Pund colocava um anticapitalismo extremado, enquanto Julios Evola recriava o mito do Graal, elementos também estranhos ao fascismo de Mussolini. Para Roger Griffin (2015, p. 26), “O fascismo é um gênero de ideologia política cujo cerne mítico, em suas permutações, é uma forma palingenética de ultranacionalismo populista”.
Alguns pontos são essenciais e mantêm-se em todas as manifestações. O fascismo, por exemplo, é frequentemente confundido como uma espécie de movimento conservador. Basta ver como movimentos de extrema direita no contemporâneo são tratados pelo estranho prefixo “ultra”. Um ultraconservadorismo, na prática, trata-se de um fascismo, ou no mínimo de um reacionarismo. O conservadorismo pode – e, inclusive, o faz com frequência – aliar-se ao fascismo, mas não se confundem.
Trata-se mais de uma ligação por conveniência, do que uma associação orgânica. Por seu discurso de retorno a um passado visto como glorioso, de resgate de uma nação degenerada e pautada pelo messianismo (somente o Messias pode promover esse retorno), o fascismo é necessariamente reacionário, não conservador. Não é à toa que se pauta por um irracionalismo assumidamente anti-iluminista. A desumanização, paranoia e conspiracionismo sobre algum grupo específico também passam pelo mesmo caminho: o fascismo escolhe um alvo por ser visto como o responsável por essa suposta degeneração – no passado, antes “deles”, a nação era gloriosa. Não é uma conservação, mas uma reação.
Esses inimigos, não importa o quão frágeis sejam, são vistos como forças políticas e econômicas muito superiores. É uma inversão: o grupo fascista, muito mais forte, culpa e acusa um grupo minoritário de fazer exatamente o que eles próprios fazem. Quando há uma crise – econômica, política, social –, o fascismo se espalha para além de meia dúzia e encontra respaldo na população, que catalisa sua frustração em torno desse grupo desumanizado. É, portanto, um movimento que absorve diretamente crises e trabalha com um ressentimento melancólico.
Conservadorismo e reacionarismo podem ter a mesma origem – oposição à Revolução Francesa – mas não se confundem. Burke não se coloca contra qualquer revolução, mas se posiciona contra o que enxerga como desrespeito às tradições do povo francês. Em outras palavras, se coloca contra uma ruptura baseada em abstracionismos, rejeita que a noção de liberdade seja absoluta para justificar uma revolução. Não nega as imperfeições do Antigo Regime, mas ressalta sua ordem e moral, e diz que a verdadeira liberdade advém da estabilidade: “Há dez anos, teria eu podido, em sã consciência, felicitar a França por possuir um governo (pois ela tinha um) […] Posso hoje felicitar esta nação pela sua liberdade?”.
Embora mais secularizado do que Joseph de Maistre, sua contraparte reacionária, não nega que a religião é um dos pilares de um bom governo, embora não exclua outros essenciais como o poder público, a disciplina, a boa distribuição de impostos, a moralidade, a prosperidade e a paz. A verdadeira liberdade vem da relação harmônica entre esses pilares, junto com o respeito pelas tradições e pelos antepassados. Sem eles, a liberdade é uma abstração irrelevante. É uma abordagem, portanto, racional e bastante distinta do fanatismo fascista.
O conservadorismo foca no presente, o reacionarismo e o fascismo no passado. O reacionário deseja um resgate deste passado idealizado, e o fascismo lança mão de uma base de massas para levar este reacionarismo ao limite. O conservadorismo rejeita que o presente deva ser sacrificado em função do futuro, mas não deseja um retorno, tampouco se opõe a mudanças lentas e graduais. Apenas entende que o presente é resultado de uma construção geracional que, mesmo imperfeito, não deve ser sacrificado. Em suma, não trocar o certo, com todos seus defeitos, pelo duvidoso.
Já De Maistre percebia o presente imerso em uma crise de valores morais, habitado por indivíduos frágeis e autodestrutivos, que haviam se afastado do divino. Vale ressaltar que o reacionarismo surgiu como resposta direta à Revolução Francesa e, em um âmbito mais amplo, ao movimento iluminista. O movimento contemporâneo autodenominado neoreacionarismo, não sem razão, também se autointitula “dark enlightenment” (iluminação obscura).
Mas o fascismo não é só reacionário. Há outro conceito que é tão ou mais inerente a ele: o autoritarismo. No entanto, o fascismo difere em muito de outras formas de autoritarismo, como a ditadura militar. Enquanto uma ditadura, em geral, se impõe de cima para baixo e se caracteriza por uma ruptura brusca, o fascismo perpassa todos os setores sociais e lança seus tentáculos do autoritarismo pouco a pouco, corroendo a democracia de dentro para fora até não restar mais do que uma casca oca. Resquícios de aparência democrática, que em nada servem.
Um exemplo claro é a Constituição de Weimar, que se manteve praticamente intacta durante o nazismo, conferindo uma fachada de normalidade democrática ao regime, mesmo com toda a sua violência. Conforme cresce em força, mecanismos autoritários clássicos como censura e ataque à imprensa, à academia (anti-intelectualismo), perseguição de grupos minoritários e rejeição da democracia agonística passam a ser empregados. Curiosamente, é frequente que os fascismos não digam que estão acabando com a democracia, mas afirmem estar reformulando-a, retirando suas supostas imperfeições.
Entretanto, todos esses elementos convergem para o pilar mais básico do fascismo: o mito da nação. Para essa corrente política, a grandeza nacional é o ideal supremo, equiparando-se à importância da liberdade e igualdade para o liberalismo e socialismo, respectivamente. Mussolini (2020) enfatizou: “Nosso ideal é a nação. Nosso ideal é a grandeza da nação, e tudo o mais se subordina a isso”.
O nacionalismo constitui o pilar fundamental, a partir do qual todos os outros conceitos se desdobram no fascismo. O reacionarismo surge como uma consequência do desejo de restaurar a grandeza da nação, e o autoritarismo, juntamente com o apoio massivo das massas, tornam-se os métodos para alcançar esse objetivo. Essa dinâmica ajuda a explicar por que o fascismo só emergiu no século XX. Não apenas o nacionalismo se intensificou com a Revolução Francesa, como destacado por Eric Hobsbawm (1990), mas também houve a necessidade de uma base de massa que buscasse uma alternativa tanto ao liberalismo quanto ao socialismo.
Umberto Eco (2018) ressalta que o fascismo cria uma seita dentro da própria nação, onde a única característica excepcional dos indivíduos é o simples fato de terem nascido naquela região. A partir desse mito da nação, surgem características secundárias que permeiam o fascismo. A figura do Messias, o líder carismático capaz de restaurar a glória perdida, ganha destaque. Além disso, o belicismo e a desumanização de grupos minoritários, particularmente estrangeiros ou considerados “internos” – ou seja, grupos que fazem parte da região, mas não são assimilados pela cultura dominante – são uma consequência direta desse mito nacional.
A própria noção de nacionalismo é disputada e não é de simples entendimento. Prevalece a definição de Benedict Anderson (1993), alargada por Eric Hobsbawm (1990), do nacionalismo como uma “comunidade imaginada”, um amalgama identitário que mescla elementos como linguagem, região, cultura e religião. Identificação ancestral, mas intensificada e com novo significado após a Revolução Francesa. O nacionalismo, por extensão, é um sentimento de pertencimento e dedicação a esta comunidade imaginada, unindo os cidadãos em torno de valores e objetivos compartilhados.
Se antes até 1884 o Dicionário da Real Academia Espanhola definia nación como “o agregado de habitantes de uma província, de um país ou de um reino”, depois disso ampliou a definição para “um Estado ou corpo político que reconhece um centro supremo de governo comum” e “o território constituído por esse Estado e seus habitantes, considerados como um todo” (HOBSBAWM, 1990, p. 27). A maior complexidade sobre a noção de nação se reflete diretamente na centralidade dela para os fascismos.
Também não fica de fora o populismo. Já falamos do apelo às massas por meio de mecanismos como ressentimento e a construção do inimigo objetivo. Mas o fascismo necessita de uma base de massas. Esta é a sua maior diferença em relação ao autoritarismo tradicional: ele precisa que o poder se disperse de forma circular e penetre em todos os setores e segmentos sociais. Claro que se trata de um apoio paradoxal e localizado – receber apoio de parcela marginais da sociedade não o impede de ser elitista e hierarquizado, ao contrário.
No discurso, a massa é referida como mola propulsora à grandeza nacional. Na prática, os fascismos são hierarquizados e a massa não passa de um mecanismo para se legitimar. Para Paxton (2007, p. 76), “Os fascismos procuram em cada cultura nacional os temas mais capazes de mobilizar um movimento de massas de regeneração, unificação e pureza, dirigido contra o individualismo e constitucionalismo liberais e contra a luta de classes da esquerda”.
Por fim, trata-se de um movimento/regime/ideologia essencialmente autoritário. Embora se difira do autoritarismo por si por várias características, uma das diferenças fundamentais é que o fascismo surge da democracia para devorá-la por dentro. Não há, na história, fascismo que não tenha chegado ao poder pelas vias democráticas e legais, e isso envolve tanto a Alemanha de Hitler quanto a Itália de Mussolini. É apenas após conquistar o poder, que o movimento vai gradualmente minando o processo democrático e aparelhando as instituições, até que, enfim, dá um golpe.
Isso não significa afirmar que o fascismo é democrático, como uma leitura apressada pode assumir, mas apenas que tende a surgir em democracias de massa quando se aflora a sensação de crise e de antipolítica. No entanto, ele fere os princípios básicos de qualquer identidade democrática, como a possibilidade de dissenso, do conflito, e da divergência, pois, como lembra Umberto Eco (2018, p. 49), o consenso só pode existir no fascismo, autoritarismo ou totalitarismo.
Considerando que a democracia agonística se baseia no respeito pelo consenso superposto e, por conseguinte, na própria essência da democracia, o fascismo, inegavelmente, nunca pode ser considerado democrático. É antitético com a própria noção de democracia, dado a essencialidade que desloca para a desumanização de grupos específicos. O fascismo rejeita qualquer existência fora de sua seita, qualquer mínimo arranhão deve ser condenado e combatido.
Essas são apenas algumas das características mais proeminentes e discerníveis do que podemos entender como fascismo, baseado principalmente na interpretação de Paxton. É crucial ressaltar que, à medida que o fascismo se difunde, ele absorve idiossincrasias específicas. Da mesma forma, é importante destacar que esses conceitos existem de maneira independente e sua manifestação simultânea, mesmo quando ocorre em conformidade com mais de um conceito, não implica necessariamente a presença do fascismo. No entanto, à medida que mais características e conceitos dessa lista se apresentam, maiores são as chances de estarmos diante de um fenômeno fascista.
Mesmo que Anatomia do fascismo, de Paxton, tenha sido escrita há quase 20 anos, permanece essencial na compreensão deste fenômeno tão atual. Mais do que nunca, precisamos chamar e classificar o bacilo da extrema direita por seu nome verdadeiro: fascismo.
Parada do Velho Novo
Eu estava sobre uma colina e vi o Velho se aproximando, mas ele vinha como se fosse o Novo.
Ele se arrastava em novas muletas, que ninguém antes havia visto, e exalava novos odores de putrefação, que ninguém antes havia cheirado.
A pedra passou rolando como a mais nova invenção, e os gritos dos gorilas batendo no peito deveriam ser as novas composições.
Em toda parte viam-se túmulos abertos vazios, enquanto o Novo movia-se em direção à capital.
Assim marchou o Velho, travestido de Novo, mas em cortejo triunfal levava consigo o Novo e o exibia como Velho.
O Novo ia preso em ferros e coberto de trapos; estes permitiam ver o vigor de seus membros.
E o cortejo movia-se na noite, mas o que viram como a luz da aurora era a luz de fogos no céu. E o grito: Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós! seria ainda audível, não tivesse o trovão das armas sobrepujado tudo.
Ele se arrastava em novas muletas, que ninguém antes havia visto, e exalava novos odores de putrefação, que ninguém antes havia cheirado.
A pedra passou rolando como a mais nova invenção, e os gritos dos gorilas batendo no peito deveriam ser as novas composições.
Em toda parte viam-se túmulos abertos vazios, enquanto o Novo movia-se em direção à capital.
E em torno estavam aqueles que instilavam horror e gritavam: Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós! E quem escutava ouvia apenas os seus gritos, mas quem olhava, via pessoas que não gritavam.
O Novo ia preso em ferros e coberto de trapos; estes permitiam ver o vigor de seus membros.
E o cortejo movia-se na noite, mas o que viram como a luz da aurora era a luz de fogos no céu. E o grito: Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós! seria ainda audível, não tivesse o trovão das armas sobrepujado tudo.
Bertolt Brecht
O 8 de Janeiro: prenúncio de um desmoronamento
Há cerca de um ano, apoiadores fanáticos do presidente derrotado nas eleições de 2022, Jair Bolsonaro, atacaram as instituições da jovem democracia brasileira. A turba provocou incêndios, quebrou janelas, destruiu obras de arte, defecou em móveis históricos e quebrou aparelhos eletrônicos. A destruição estava por todos os lados no Congresso Nacional, no Supremo Tribunal Federal e no Palácio do Planalto, e os danos materiais chegaram à casa dos milhões de reais.
O que inicialmente parecia uma revolta espontânea de alguns milhares de fanáticos que conseguiram entrar nos edifícios devido a falhas das forças de segurança acabou se revelando uma ação organizada: financiada por empresários, fomentada através das redes sociais e tornada possível pela inação das forças de segurança, ela deveria instigar um golpe militar contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tomara posse uma semana antes. Os criminosos foram acompanhados por meios de comunicação, como a emissora Jovem Pan, uma porta-voz do bolsonarismo, que tentou apresentá-los como "cidadãos preocupados".
Hoje as consequências da destruição não são mais visíveis em Brasília, e os acontecimentos foram amplamente esclarecidos. Muitos dos responsáveis foram indiciados, muitos agressores estão atrás das grades, e a boa notícia é que a democracia do Brasil mostrou que sabe se defender. Suas instituições funcionam, especialmente o Judiciário.
Mas a pergunta fica: a democracia saiu realmente fortalecida ou aqueles acontecimentos são apenas o prenúncio de um desmoronamento que pode ser observado por todo o mundo. O ataque às instituições democráticas do Brasil não criou um consenso social de rejeição, mas ampliou ainda mais o isolamento do bolsonarismo. Hoje, mais do que nunca, os bolsonaristas acreditam que estão sendo perseguidos e oprimidos. É uma característica típica de todos os movimentos fanáticos.
Não há dúvida de que as democracias ocidentais são profundamente falhas. Nos EUA é preciso ser rico para ser eleito, e o sistema eleitoral não deixa espaço para vozes alternativas a democratas e republicanos, que já não são mais partidos políticos pulsantes de vivas ramificações sociais, mas representantes de poderosos interesses econômicos. Na Alemanha, ninguém chega ao topo se não tiver passado anos dentro de um aparato partidário que elimina todo o pensamento criativo e inusitado. No Brasil, o Congresso, composto predominantemente de homens ricos e brancos, não representa a população, mas os interesses das grandes empresas e da agricultura. Em todos esses três países, um Estado visto como elitista gasta grandes somas de dinheiro dos contribuintes. Mas especialmente no Brasil os cidadãos não recebem nada em troca de seus impostos.
É um dever histórico corrigir esses erros. Mas a chamada Nova Direita não quer reformar a democracia: quer destruir suas instituições e colocá-las a seu serviço. O perigo para a democracia vem de dentro. Do bolsonarismo no Brasil, do trumpismo nos EUA, da AfD na Alemanha. O novo presidente da Argentina, Javier Milei, até declara abertamente que quer colocar o país sob o estado de emergência para levar adiante seu programa de choque ultraliberal.
A ascensão desses homens e grupos tem muito a ver com a desierarquização da informação nas redes sociais. Hoje, qualquer pessoa pode alegar qualquer coisa e sempre vai achar alguém que acredite nela. Isso levou grandes setores da população a se desconectarem da realidade e serem levados pela manipulação – até porque muitos influenciadores nas redes sociais transformaram mentiras e provocações num modelo de negócio.
Um estudo publicado recentemente mostra que a maioria dos apoiadores de Bolsonaro continua vivendo numa bolha mais de um ano depois de ele ter perdido a eleição presidencial. Qualquer coisa que não corresponda à sua visão de mundo está errada. Os dados oficiais sobre o crescimento econômico, o declínio do desemprego e da inflação são desqualificados como propaganda porque não pode ser verdade que a economia esteja indo bem sob Lula.
Muitos brasileiros nunca aprenderam a questionar criticamente informações. Eles tanto mais acreditam em algo quanto mais fortemente isso reforçar uma determinada opinião ou sentimento já existentes. Não só no Brasil, mas especialmente no Brasil, os jovens não aprendem a interpretar criticamente um texto ou um filme: que eles criam uma imagem subjetiva da realidade, que perseguem uma intenção e utilizam diferentes meios retóricos e artísticos para consegui-la. A ausência dessa habilidade torna as pessoas extremamente manipuláveis, pois elas entendem tudo literalmente. A máquina de propaganda bolsonarista funciona sobre essa base, tal como a de Trump. Cada bobagem, cada meia verdade, cada mentira, cada difamação são celebradas.
Nenhuma democracia pode suportar isso por muito tempo, porque falta uma base comum para o debate. É impossível resolver problemas (tarefa primária da política) se não houver nem mesmo consenso de que existe um problema. Como é possível implementar medidas contra as alterações climáticas se um dos lados insiste que as alterações climáticas não existem? Historicamente, esse sempre foi o melhor caminho para o ocaso de qualquer sociedade.
Antigamente, conservadores e progressistas debatiam sobre a melhor forma de resolver problemas sociais. A nova e raivosa direita não está nem aí para resolver problemas. Ela quer é derrubar o sistema democrático, que afirma já não cumprir a vontade do povo, que ela representaria. Trump, Bolsonaro, Milei e a AfD não são conservadores ou direitistas clássicos que querem preservar alguma coisa. São revolucionários reacionários que querem destruir a estrutura social existente para erguer, sobre os escombros, uma nova, dentro da sua concepção.
É por isso que o 8 de Janeiro de 2022 não acabou, mas continua sendo uma ameaça.
O que inicialmente parecia uma revolta espontânea de alguns milhares de fanáticos que conseguiram entrar nos edifícios devido a falhas das forças de segurança acabou se revelando uma ação organizada: financiada por empresários, fomentada através das redes sociais e tornada possível pela inação das forças de segurança, ela deveria instigar um golpe militar contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tomara posse uma semana antes. Os criminosos foram acompanhados por meios de comunicação, como a emissora Jovem Pan, uma porta-voz do bolsonarismo, que tentou apresentá-los como "cidadãos preocupados".
Hoje as consequências da destruição não são mais visíveis em Brasília, e os acontecimentos foram amplamente esclarecidos. Muitos dos responsáveis foram indiciados, muitos agressores estão atrás das grades, e a boa notícia é que a democracia do Brasil mostrou que sabe se defender. Suas instituições funcionam, especialmente o Judiciário.
Mas a pergunta fica: a democracia saiu realmente fortalecida ou aqueles acontecimentos são apenas o prenúncio de um desmoronamento que pode ser observado por todo o mundo. O ataque às instituições democráticas do Brasil não criou um consenso social de rejeição, mas ampliou ainda mais o isolamento do bolsonarismo. Hoje, mais do que nunca, os bolsonaristas acreditam que estão sendo perseguidos e oprimidos. É uma característica típica de todos os movimentos fanáticos.
Não há dúvida de que as democracias ocidentais são profundamente falhas. Nos EUA é preciso ser rico para ser eleito, e o sistema eleitoral não deixa espaço para vozes alternativas a democratas e republicanos, que já não são mais partidos políticos pulsantes de vivas ramificações sociais, mas representantes de poderosos interesses econômicos. Na Alemanha, ninguém chega ao topo se não tiver passado anos dentro de um aparato partidário que elimina todo o pensamento criativo e inusitado. No Brasil, o Congresso, composto predominantemente de homens ricos e brancos, não representa a população, mas os interesses das grandes empresas e da agricultura. Em todos esses três países, um Estado visto como elitista gasta grandes somas de dinheiro dos contribuintes. Mas especialmente no Brasil os cidadãos não recebem nada em troca de seus impostos.
É um dever histórico corrigir esses erros. Mas a chamada Nova Direita não quer reformar a democracia: quer destruir suas instituições e colocá-las a seu serviço. O perigo para a democracia vem de dentro. Do bolsonarismo no Brasil, do trumpismo nos EUA, da AfD na Alemanha. O novo presidente da Argentina, Javier Milei, até declara abertamente que quer colocar o país sob o estado de emergência para levar adiante seu programa de choque ultraliberal.
A ascensão desses homens e grupos tem muito a ver com a desierarquização da informação nas redes sociais. Hoje, qualquer pessoa pode alegar qualquer coisa e sempre vai achar alguém que acredite nela. Isso levou grandes setores da população a se desconectarem da realidade e serem levados pela manipulação – até porque muitos influenciadores nas redes sociais transformaram mentiras e provocações num modelo de negócio.
Um estudo publicado recentemente mostra que a maioria dos apoiadores de Bolsonaro continua vivendo numa bolha mais de um ano depois de ele ter perdido a eleição presidencial. Qualquer coisa que não corresponda à sua visão de mundo está errada. Os dados oficiais sobre o crescimento econômico, o declínio do desemprego e da inflação são desqualificados como propaganda porque não pode ser verdade que a economia esteja indo bem sob Lula.
Muitos brasileiros nunca aprenderam a questionar criticamente informações. Eles tanto mais acreditam em algo quanto mais fortemente isso reforçar uma determinada opinião ou sentimento já existentes. Não só no Brasil, mas especialmente no Brasil, os jovens não aprendem a interpretar criticamente um texto ou um filme: que eles criam uma imagem subjetiva da realidade, que perseguem uma intenção e utilizam diferentes meios retóricos e artísticos para consegui-la. A ausência dessa habilidade torna as pessoas extremamente manipuláveis, pois elas entendem tudo literalmente. A máquina de propaganda bolsonarista funciona sobre essa base, tal como a de Trump. Cada bobagem, cada meia verdade, cada mentira, cada difamação são celebradas.
Nenhuma democracia pode suportar isso por muito tempo, porque falta uma base comum para o debate. É impossível resolver problemas (tarefa primária da política) se não houver nem mesmo consenso de que existe um problema. Como é possível implementar medidas contra as alterações climáticas se um dos lados insiste que as alterações climáticas não existem? Historicamente, esse sempre foi o melhor caminho para o ocaso de qualquer sociedade.
Antigamente, conservadores e progressistas debatiam sobre a melhor forma de resolver problemas sociais. A nova e raivosa direita não está nem aí para resolver problemas. Ela quer é derrubar o sistema democrático, que afirma já não cumprir a vontade do povo, que ela representaria. Trump, Bolsonaro, Milei e a AfD não são conservadores ou direitistas clássicos que querem preservar alguma coisa. São revolucionários reacionários que querem destruir a estrutura social existente para erguer, sobre os escombros, uma nova, dentro da sua concepção.
É por isso que o 8 de Janeiro de 2022 não acabou, mas continua sendo uma ameaça.
O mundo que se gasta
Cada arma que é feita, cada navio de guerra lançado, cada míssil disparado significa no sentido final, um roubo daqueles que têm fome e não são alimentados, daqueles que têm frio e não têm roupas. Este mundo em armas não gasta dinheiro sozinho. Ele gasta o suor dos seus trabalhadores, o génio dos seus cientistas, as esperanças das suas criançasDwight D. Eisenhower
Netanyahu e Eichmann
Em 1960, o estado hebreu, por agentes do Mosad, quebrou a soberania da Argentina e sequestrou, em Buenos Aires, um criminoso de guerra alemão foragido. Secretamente, levou-o para Israel e, num julgamento midiático e de resultado previamente decidido, condenou-o e o enforcou. A banalidade do mal, é a expressão que passou a caracterizar não só os crimes contra a humanidade cometidos por Eichmann, mas também comportamentos semelhantes.
Ainda hoje o estado de Israel continua a quebrar regras internacionais e ignorar decisões da ONU. Sob a desculpa de combater o Hamas, age ilegalmente e bombardeia locais cheios de crianças, buscando exterminar os palestinos. Não admite que este seja seu propósito, mas é o que suas ações confirmam. E, buscando escudar-se no falso argumento de que quem critica o estado judeu é antissemita, segue a cometer genocídio.
Os EUA, cuja política externa, hipocritamente, tem na seletiva defesa dos direitos humanos um dos seus pilares, não só apoia essa brutal violência que viola direitos humanos básicos, mas a incita, pois fornece dinheiro, armas, munição e suporte diplomático! Isso, embora 60% dos norte americanos reprovem a brutalidade daquelas ações. Os crimes cometidos por Eichman foram distintos daqueles que Netanyahu e seus apoiadores, inclusive os políticos locais e de fora que lhe dão sustentação, estão a cometer, mas estes são crimes igualmente bárbaros, inumanos e covardes, pois baseados na força bruta contra pessoas indefesas, que têm morrido em quantidade muito mais elevada que os integrantes do Hamas!
Em meados do século passado, “os judeus eram concentrados em guetos (onde) … as condições de vida terríveis – excesso de pessoas, más condições sanitárias e falta de comida tinham como resultado elevada taxa de mortalidade”. Hoje, em Gaza, além dessas mesmas carências, há repetidos bombardeios, falta de remédios, de água e até mesmo de ajuda humanitária, já que o estado de Israel proíbe sua entrada. É ou não criminoso tal comportamento genocida?
É a banalidade do mal, praticada por estados que se dizem democráticos.
As evidências de que o comportamento do estado de Israel, assim como o dos EUA e aliados, apenas fará crescer mais ódios e novas guerras, são acachapantes. Ignorar tais evidências é sinal, indaga-se, de que somos governados pelo complexo industrial-militar-financeiro-propagandista-consumista, que mata e destrói as condições de sobrevivência em prol de lucros maiores?
Quando midiaticamente julgado em Jerusalém, Eichmann alegou não ser culpado, pois apenas obedecia a ordens. Netanyahu, quando, eventualmente julgado num tribunal internacional, fato infelizmente pouco provável, repetirá o argumento daquele que ajudou a matar milhões de judeus?
Embora primeiro-ministro, sabemos que os governantes, apesar de seus discursos, estão sempre a serviço de alguém, e só quem ganha – e o faz temporariamente, não por longo prazo – com a situação atual é exatamente aquele complexo, vale repetir, industrial-militar-financeiro-propagandista-consumista, cuja desarticulação é essencial à sobrevivência de todos nós!
Ainda hoje o estado de Israel continua a quebrar regras internacionais e ignorar decisões da ONU. Sob a desculpa de combater o Hamas, age ilegalmente e bombardeia locais cheios de crianças, buscando exterminar os palestinos. Não admite que este seja seu propósito, mas é o que suas ações confirmam. E, buscando escudar-se no falso argumento de que quem critica o estado judeu é antissemita, segue a cometer genocídio.
Os EUA, cuja política externa, hipocritamente, tem na seletiva defesa dos direitos humanos um dos seus pilares, não só apoia essa brutal violência que viola direitos humanos básicos, mas a incita, pois fornece dinheiro, armas, munição e suporte diplomático! Isso, embora 60% dos norte americanos reprovem a brutalidade daquelas ações. Os crimes cometidos por Eichman foram distintos daqueles que Netanyahu e seus apoiadores, inclusive os políticos locais e de fora que lhe dão sustentação, estão a cometer, mas estes são crimes igualmente bárbaros, inumanos e covardes, pois baseados na força bruta contra pessoas indefesas, que têm morrido em quantidade muito mais elevada que os integrantes do Hamas!
Em meados do século passado, “os judeus eram concentrados em guetos (onde) … as condições de vida terríveis – excesso de pessoas, más condições sanitárias e falta de comida tinham como resultado elevada taxa de mortalidade”. Hoje, em Gaza, além dessas mesmas carências, há repetidos bombardeios, falta de remédios, de água e até mesmo de ajuda humanitária, já que o estado de Israel proíbe sua entrada. É ou não criminoso tal comportamento genocida?
É a banalidade do mal, praticada por estados que se dizem democráticos.
As evidências de que o comportamento do estado de Israel, assim como o dos EUA e aliados, apenas fará crescer mais ódios e novas guerras, são acachapantes. Ignorar tais evidências é sinal, indaga-se, de que somos governados pelo complexo industrial-militar-financeiro-propagandista-consumista, que mata e destrói as condições de sobrevivência em prol de lucros maiores?
Quando midiaticamente julgado em Jerusalém, Eichmann alegou não ser culpado, pois apenas obedecia a ordens. Netanyahu, quando, eventualmente julgado num tribunal internacional, fato infelizmente pouco provável, repetirá o argumento daquele que ajudou a matar milhões de judeus?
Embora primeiro-ministro, sabemos que os governantes, apesar de seus discursos, estão sempre a serviço de alguém, e só quem ganha – e o faz temporariamente, não por longo prazo – com a situação atual é exatamente aquele complexo, vale repetir, industrial-militar-financeiro-propagandista-consumista, cuja desarticulação é essencial à sobrevivência de todos nós!
Assinar:
Postagens (Atom)