quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Fala, imperador

Seja o universo um aglomerado de átomos ou um sistema natural, preceituo:

I. sou membro do todo que é regido pela natureza;

II. estou intimamente ligado aos outros da mesma espécie.

Recordando-me disso, não me descontentarei com as porções do todo que me forem designadas, pois nada que favorece o todo prejudica a parte. O todo não compreende nada que não seja vantajoso para si. Todas as naturezas compartilham desse princípio, porém a do todo possui outro: não há força externa que poderia compeli-la para se prejudicar. Lembrando que participo dele, eu me contentarei com os incidentes.

Em virtude da minha relação íntima com os membros congêneres, não serei antissocial. Dirigirei meus esforços aos nossos interesses comuns e não ao contrário. Procedendo desse modo, a vida fluirá felizmente. Vive feliz quem mantém um curso de ação benéfico para seus concidadãos e se contenta com o que o estado o atribui.
Marco Aurélio, "Meditações"

Diante do mal, a síndrome do fascínio canibal

Muita gente se espanta com as reações de comemoração à chacina protagonizada pela PM de Claudio Castro, no Rio, em especial de pessoas cristãs, sejam católicas ou protestantes. A indignação vem baseada numa afirmação de que o cristianismo, como doutrina que prega o amor e a compaixão, não aprovaria tal ato.

Na semana passada, em uma igreja católica na Barra da Tijuca, o governador foi aplaudido e ainda chegou a cantar – afinal, é cantor religioso muito antes de se tornar chefe do Executivo estadual. Paralelamente, proliferam nas redes sociais pesquisas, algumas com metodologia duvidosa, apontando uma suposta ampla aprovação da ação policial nos complexos do Alemão e da Penha. Assim, constrói-se uma narrativa favorável à operação, que, do ponto de vista psicossocial, precisa ser analisada com cautela.

Suely Rolnik, psicanalista brasileira, em seu ensaio "Esferas da insurreição", nos ajuda a entender como, para amenizar o desconforto em relação aos acontecimentos de um mundo em ruínas, o modelo de subjetividade colonial se constrói, muitas vezes, por um suprimento por meio de narrativas midiáticas que encobrem estas ruínas. Estas narrativas se constituíram muito antes do que chamamos de mídias sociais, em formas muito bem delineadas ao longo da colonização das Américas.


Jack D. Forbes, um dos fundadores do movimento indígena estadunidense e professor da Universidade da Califórnia, em seu livro A world ruled by cannibals, traduzido ao espanhol como Colón y otros caníbales, desenvolve uma ideia bastante pertinente sobre esta transmissão de narrativas. Segundo sua análise, Colombo, canibal e campeão do genocídio, trouxe com ele a maior doença que a colonização poderia trazer: a psicose wétiko. Baseado em distintas cosmologias de povos indígenas norte-americanos, Forbes propõe que Colombo estava mentalmente enfermo, ele mesmo era um wétiko.

Esta psicose produz um modo de ser canibalista, que é muito distinto da antropofagia, já que o canibalismo de Colombo visa consumir a vida de outra pessoa em próprio benefício, apagando o ser canibalizado. Colombo foi, então, a grande liderança para o consumo dos povos originários de fora da Europa, por aniquilação ou escravização, tudo isso para o benefício da colonização. Esta é a nossa história, uma história de adoecimento mental, de psicotização de uma sociedade que vivia sob outros modos de vida, mais comunitários.

Wétiko tem tudo a ver com a crença cristã fundamentalista de que cristãos não são perfeitos, mas podem ser perdoados. Uma construção canibalística como esta justifica violências atrozes, assim como justificou, em todo o processo colonial, massacres e escravização. No mundo salvacionista ocidental-cristão, cabe, numa distorção da realidade, a defesa de uma chacina e até mesmo aplausos. Castro, o novo canibal, liderança colonial num estado que se outorga no direito de realizar a limpeza daquilo que se pré-julga como errado a partir de uma régua moral que serve a interesses próprios e não comunitários, pode sim ser ovacionado nas redes, no jornalismo e até na igreja.

Temos uma epidemia wétiko e, de algum modo, as populações, afetadas pelo modo canibalista de vida, sofre em alguma medida desta enfermidade, por isso também pode parecer natural ou a única possibilidade um massacre. Em meio ao desespero e ao medo do que os wétiko vem provocando ao longo de séculos, as soluções violentas propostas pela lógica wétiko parecem ser uma boa solução, daí podemos também compreender como estas narrativas nos subjetivam, se transformam em narrativas únicas sobre como entender o mundo. Todos os centros de poder coloniais, as igrejas, as escolas, as instituições que nos socializam com o mundo, reproduzem as lógicas enfermas.

De wétiko, seguindo o raciocínio de Forbes, decorre a síndrome mátchi, que é o fascínio pelo mal. Todo o moralismo em torno da existência de um mal a ser enfrentado (pecado, satanás, almas condenadas, cultos pagãos e tantos outros), por meio da ação dos wétiko, se transformam em uma ética que gera ações violentas. Para enfrentar o mal do crime organizado há que se tomar as rédeas e, portanto, só se enfrenta com estas ações: há que massacrar, submeter, torturar, formas fascinantes para os canibais, que não questionam corpos decapitados, tiros na nuca e nem falta de atenção aos corpos estirados.

São corpos estirados que precisavam ser exterminados, corpos em sua maioria negros. Na estrutura colonial, as imagens expressam todas as suas lógicas racistas que não são questionadas por quem aplaude a chacina, e por muita gente que é cristã. Daí poderíamos dizer que “foi na Barra da Tijuca”, mas as pesquisas dão conta de que não se trata só deste âmbito geográfico, dizem respeito à população fluminense: o instituto Datafolha indica 40% de aprovação do governo Castro enquanto a Genial Quaest indica 64% de apoio à operação.

Ao mesmo tempo, a população se sente numa guerra e não há sanidade mental coletiva em meio ao terror de não poder ir e vir. No nosso processo de colonização, esta perspectiva canibalista, que individualiza as experiências, trata da saúde mental com base em enfermidades de uma subjetividade encapsulada, entendendo as ações de saúde mental como intervenções individuais e não num entendimento coletivo do sofrimento, diferentemente da vida na aldeia ou no quilombo, nos quais as questões de saúde são sempre da coletividade.

Castro e a extrema-direita personificam o canibalismo. Para seus próprios benefícios, que são inquestionáveis, manipulam o fascínio do mal e remetem às mais atrozes estratégias de extermínio do que não é colonialista, produzem uma política de morte que opera também num sintoma mais grave de wétiko: a paranoia. O medo da perseguição e da perda da suposta individualidade gera uma espécie de aliança num mundo em ruínas, então é preciso encobri-las.

O aplauso ajuda a encobrir.

Bolsonaro é rejeitado pelos que poderiam lhe dar abrigo

Onde Bolsonaro começará a cumprir a pena de 27 anos e três meses de prisão por golpe de Estado, abolição violenta da democracia, organização criminosa e danos ao patrimônio público e ao tombado? Só quem sabe é o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso no Supremo Tribunal Federal. Se é que sabe.

Moraes mandou vistoriar todos os lugares possíveis, mas deparou-se com um problema: ninguém quer dar abrigo a Bolsonaro. Ninguém. Bolsonaro virou um estorvo que até a direita refuga – desde, naturalmente, que ela possa herdar seus votos. Sem a benção de Bolsonaro, o desempenho da direita em 2026 será pífio.

Se for obrigado por Moraes a acolher Bolsonaro em um dos seus quartéis, o Exército o fará, porém, a contragosto. Bolsonaro é sinônimo de encrenca para os militares que o apoiaram em 2018, 2022, e que por pouco não apoiaram sua tentativa de golpe. Pularam uma fogueira de bom tamanho, embora chamuscados.

A Polícia Federal, que em Curitiba hospedou Lula durante 580 dias, não quer ouvir falar em fazer o mesmo com Bolsonaro. Lula foi um prisioneiro pacífico, brincalhão, que logo se tornou amigo dos carcereiros. Um deles faz hoje parte de sua equipe de governo. Quando presidente, Bolsonaro quis intervir na Polícia Federal.


Por que não mandar Bolsonaro cumprir pena na Papuda, presídio de máxima segurança a pouco distância de sua casa? Políticos célebres já passaram pela Papuda, entre eles Paulo Maluf, José Dirceu, José Genoino, Valdemar Costa Neto, Geddel Vieira Lima, Natan Donadon. Eles devem guardar boas lembranças de lá.

É o governador Ibaneis Rocha, do Distrito Federal, que não quer Bolsonaro na Papuda. Sequer na Papudinha, sede de um Batalhão da Polícia Militar que obedece às ordens de Ibaneis. No 8 de janeiro de 2023, a PM acompanhou os golpistas até a Praça dos Três Poderes. Ibaneis imaginou que seria um passeio no parque.

Ao Metrópoles, Ibaneis disse desconhecer o quadro de saúde de Bolsonaro, e que por isso não sabe se a Papuda tem condições de recebê-lo:

“Não sei como ele está, não o visito, não somos amigos. Não vou saber se ele tem condições de viver em presídio e com a alimentação que tem lá”.

Não são amigos? Até tu, Ibaneis?

Ibaneis transferiu a questão para Celina Leão, sua vice, que afirmou:

“A Papuda não tem condição de receber o Bolsonaro. Ele precisa de uma dieta especial, tem idade avançada, trata-se de um ex-presidente. Se for bem cuidado, vai ter uma vida prolongada”.

Ibaneis é do MDB, apoiou Bolsonaro antes de ele ser preso, e carece da ajuda dele para se eleger senador no próximo ano. Celina é do PP, apoiou Bolsonaro, e carece também do apoio dele para se eleger governadora. Ibaneis e Celina reservaram em sua chapa uma vaga ao Senado para ser ofertada a Michelle Bolsonaro.

Para Bolsonaro, a Papuda é um cálice de vinho amargo impossível de ser bebido por ele, além de representar a suprema humilhação. Agradece a compreensão de Ibaneis e Celina. Saberá retribuir na hora certa.