quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Diante do mal, a síndrome do fascínio canibal

Muita gente se espanta com as reações de comemoração à chacina protagonizada pela PM de Claudio Castro, no Rio, em especial de pessoas cristãs, sejam católicas ou protestantes. A indignação vem baseada numa afirmação de que o cristianismo, como doutrina que prega o amor e a compaixão, não aprovaria tal ato.

Na semana passada, em uma igreja católica na Barra da Tijuca, o governador foi aplaudido e ainda chegou a cantar – afinal, é cantor religioso muito antes de se tornar chefe do Executivo estadual. Paralelamente, proliferam nas redes sociais pesquisas, algumas com metodologia duvidosa, apontando uma suposta ampla aprovação da ação policial nos complexos do Alemão e da Penha. Assim, constrói-se uma narrativa favorável à operação, que, do ponto de vista psicossocial, precisa ser analisada com cautela.

Suely Rolnik, psicanalista brasileira, em seu ensaio "Esferas da insurreição", nos ajuda a entender como, para amenizar o desconforto em relação aos acontecimentos de um mundo em ruínas, o modelo de subjetividade colonial se constrói, muitas vezes, por um suprimento por meio de narrativas midiáticas que encobrem estas ruínas. Estas narrativas se constituíram muito antes do que chamamos de mídias sociais, em formas muito bem delineadas ao longo da colonização das Américas.


Jack D. Forbes, um dos fundadores do movimento indígena estadunidense e professor da Universidade da Califórnia, em seu livro A world ruled by cannibals, traduzido ao espanhol como Colón y otros caníbales, desenvolve uma ideia bastante pertinente sobre esta transmissão de narrativas. Segundo sua análise, Colombo, canibal e campeão do genocídio, trouxe com ele a maior doença que a colonização poderia trazer: a psicose wétiko. Baseado em distintas cosmologias de povos indígenas norte-americanos, Forbes propõe que Colombo estava mentalmente enfermo, ele mesmo era um wétiko.

Esta psicose produz um modo de ser canibalista, que é muito distinto da antropofagia, já que o canibalismo de Colombo visa consumir a vida de outra pessoa em próprio benefício, apagando o ser canibalizado. Colombo foi, então, a grande liderança para o consumo dos povos originários de fora da Europa, por aniquilação ou escravização, tudo isso para o benefício da colonização. Esta é a nossa história, uma história de adoecimento mental, de psicotização de uma sociedade que vivia sob outros modos de vida, mais comunitários.

Wétiko tem tudo a ver com a crença cristã fundamentalista de que cristãos não são perfeitos, mas podem ser perdoados. Uma construção canibalística como esta justifica violências atrozes, assim como justificou, em todo o processo colonial, massacres e escravização. No mundo salvacionista ocidental-cristão, cabe, numa distorção da realidade, a defesa de uma chacina e até mesmo aplausos. Castro, o novo canibal, liderança colonial num estado que se outorga no direito de realizar a limpeza daquilo que se pré-julga como errado a partir de uma régua moral que serve a interesses próprios e não comunitários, pode sim ser ovacionado nas redes, no jornalismo e até na igreja.

Temos uma epidemia wétiko e, de algum modo, as populações, afetadas pelo modo canibalista de vida, sofre em alguma medida desta enfermidade, por isso também pode parecer natural ou a única possibilidade um massacre. Em meio ao desespero e ao medo do que os wétiko vem provocando ao longo de séculos, as soluções violentas propostas pela lógica wétiko parecem ser uma boa solução, daí podemos também compreender como estas narrativas nos subjetivam, se transformam em narrativas únicas sobre como entender o mundo. Todos os centros de poder coloniais, as igrejas, as escolas, as instituições que nos socializam com o mundo, reproduzem as lógicas enfermas.

De wétiko, seguindo o raciocínio de Forbes, decorre a síndrome mátchi, que é o fascínio pelo mal. Todo o moralismo em torno da existência de um mal a ser enfrentado (pecado, satanás, almas condenadas, cultos pagãos e tantos outros), por meio da ação dos wétiko, se transformam em uma ética que gera ações violentas. Para enfrentar o mal do crime organizado há que se tomar as rédeas e, portanto, só se enfrenta com estas ações: há que massacrar, submeter, torturar, formas fascinantes para os canibais, que não questionam corpos decapitados, tiros na nuca e nem falta de atenção aos corpos estirados.

São corpos estirados que precisavam ser exterminados, corpos em sua maioria negros. Na estrutura colonial, as imagens expressam todas as suas lógicas racistas que não são questionadas por quem aplaude a chacina, e por muita gente que é cristã. Daí poderíamos dizer que “foi na Barra da Tijuca”, mas as pesquisas dão conta de que não se trata só deste âmbito geográfico, dizem respeito à população fluminense: o instituto Datafolha indica 40% de aprovação do governo Castro enquanto a Genial Quaest indica 64% de apoio à operação.

Ao mesmo tempo, a população se sente numa guerra e não há sanidade mental coletiva em meio ao terror de não poder ir e vir. No nosso processo de colonização, esta perspectiva canibalista, que individualiza as experiências, trata da saúde mental com base em enfermidades de uma subjetividade encapsulada, entendendo as ações de saúde mental como intervenções individuais e não num entendimento coletivo do sofrimento, diferentemente da vida na aldeia ou no quilombo, nos quais as questões de saúde são sempre da coletividade.

Castro e a extrema-direita personificam o canibalismo. Para seus próprios benefícios, que são inquestionáveis, manipulam o fascínio do mal e remetem às mais atrozes estratégias de extermínio do que não é colonialista, produzem uma política de morte que opera também num sintoma mais grave de wétiko: a paranoia. O medo da perseguição e da perda da suposta individualidade gera uma espécie de aliança num mundo em ruínas, então é preciso encobri-las.

O aplauso ajuda a encobrir.

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