quinta-feira, 30 de junho de 2022

Uma BIC na sala de tortura

Sou o poeta dos torturados/ dos desaparecidos/ dos atirados ao mar/ Sou os olhos atentos/sobre o crime
Pedro Tierra

Uma caneta BIC esquecida pelo torturador fez o preso torturado se animar no meio das maiores dores que sofrera em seus 24 anos de vida. Lentamente chegou até a BIC que brilhava na sala meio escura onde se sentia cheiro de suor e sangue, e logo escondeu-a, pois os torturadores voltariam. Quando foi levado a sua cela, dolorido com hematomas e sangrando aqui e ali, se sentia vitorioso com a caneta, era sua taça, seu troféu, e dias depois catava papel de cigarro, papel higiênico, para escrever. Foi assim que começou a nascer o poeta Pedro Tierra, que viveu cinco anos em várias prisões sendo interrogado, torturado, convivendo com mortes de companheiros. Decidiu viver para escrever poesias e homenagear tanto os amigos como os desconhecidos presos e torturados que não tiveram sua sorte de viver. Entrou no cárcere como Hamilton Pereira da Silva e ao sair era Pedro Tierra, o poeta que nasceu na prisão graças a uma BIC esquecida pelo torturador.

Nas poesias estão presentes os choques elétricos, cadeira do dragão, espancamentos e mais e muito mais poesias sobre suplícios, sangue, gritos, coragem, povo, liberdade. É um espanto tudo isso se transformar em poesia. Essa poesia silenciada mais aqui que no exterior começa a ser mais conhecida através de muitos, mas especialmente do professor e poeta Alberto Pucheu. Aliás, agradeço a ele a primazia de ler seu impactante ensaio que será publicado em livro, Pedro Tierra: esta obstinada vontade de resistir. As poesias de Pedro Tierra começaram a ser publicadas no exterior traduzidas primeiro ao espanhol por Dom Pedro Casaldáliga. Vencedor de muitos prêmios, Pedro Tierra se integrou nas lutas sociais ao sair da prisão, tendo sido um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Ocupou cargos no Ministério da Cultura, em Secretaria de Cultura, integrou o MST, teve a coragem de seguir sua vida na política mesmo após cinco anos de tortura e prisão. Nunca esqueceu seus amigos que morreram, e dedicou suas poesias aos que conheceu e aos que não conheceu. Nome e sobrenomes que precisam ser recordados e que Pucheu nomeia um a um no seu emocionante ensaio com quase oitenta laudas.

Impactante foi o encontro de Pedro Tierra com o imigrante judeu Mayer Kucinski que buscava Ana Rosa, sua filha desaparecida e integrante da ALN como o poeta. “Desejava, para seguir vivendo, ver o rosto de Ana Rosa. Varava meus olhos com o cravo dos seus e me pedia, patético – a mim, que àquela altura cumpria já o terceiro ano de prisão –, uma palavra, ainda que fosse a notícia de sua morte. Eu não tinha nenhuma palavra para lhe dar.” Não tinha palavras para dizer ao velho pai Mayer, pai também do escritor Bernardo Kucinski, que escreveu o romance “K” sobre a busca do pai pela sua irmã Ana Rosa. Minha irmã mais velha, a Bluma, conheceu a adolescente Ana Rosa num Movimento Juvenil Judaico na década de 50 do século passado, e isso me aproximou dessa tragédia.

Escolhi parte do “Poema-Prólogo”, no qual Pedro Tierra sintetiza sua missão:

Fui assassinado.
Morri cem vezes
e cem vezes renasci
sob os golpes do açoite.
Meus olhos em sangue
testemunharam
a dança dos algozes
em torno do meu cadáver.
Tornei-me a mineral
memória da dor.
Para sobreviver,
recolhi das chagas do corpo
a lua vermelha de minha crença,
no meu sangue amanhecendo.
Em cinco séculos
reconstruí minha esperança.
A faca do verso feriu-me a boca
e com ela entreguei-me à tarefa de renascer.
Fui poeta
do povo da noite.

Se tivesse a capacidade de fazer um filme sobre Pedro Tierra, começaria filmando a sala de interrogatório, os torturadores e a BIC que o torturador esqueceu. Esse foi o momento em que começou a nascer Pedro Tierra, que precisamos conhecer mais, como conhecer nosso Brasil invadido. Invadido por enlouquecidos em busca de lucros. Nesses dias traumáticos que o País vive, será preciso passar o inverno, muitos invernos num só, sabendo que a primavera vai chegar.

Brasil ocupa último lugar em educação, entre 63 países

Desde 1989 o International Institute for Management Development (IMD), sediado na Suíça, publica um ranking anual de competitividade. Para tal, o IMD World Competitiveness Center entrevista empresária/os, investidora/es e gerentes de 63 países sobre diversos critérios.

No relatório mais recente, a América Latina se saiu especialmente mal. Excetuado o Chile, todos os demais seis grandes Estados ocupam os últimos postos entre as economias examinadas. O Brasil está em 59º lugar; numa das rubricas – relativa à educação de crianças e adolescentes e à formação profissional – aparece até mesmo na última posição.

Isso é uma catástrofe que não se limita à miséria educacional sob Jair Bolsonaro. O governo do populista de direita não está interessado em melhorar o nível dos escolares e universitários brasileiros. Os sucessivos ministros da Educação – até agora quatro – são notórios principalmente por suas excentricidades e seu óbvio desconhecimento da área.


O ex-ministro Milton Ribeiro chegou a ser preso preventivamente por corrupção – e acabou solto no dia seguinte. Abraham Weintraub só se salvou do mesmo destino graças à transferência para o exterior, a serviço do Banco Mundial. Um ministro nomeado não pôde assumir por ter alegado ter um título de doutor que não possuía. O atual ministro, ninguém conhece.
Futuro sem capital humano

No entanto, as consequências da miséria educacional, que o IMD provou tão claramente agora, vão muito além da política insuficiente do governo no ensino: elas estão profundamente enraizadas na sociedade brasileira. Sejam ricos ou pobres, em todas as camadas do Brasil a educação é considerada secundária, algo mais ou menos supérfluo, que é nice to have.

Muitos pobres não entendem que a educação possa ser uma possibilidade de ascensão social, pois praticamente não conhecem ninguém que tenha conseguido. As escolas públicas são tão ruins que até mesmo os mais pobres, se podem, enviam seus filhos para as particulares. Mas os diplomas só valem no papel.

"No Brasil, a educação se resume a uma situação em que uns fingem que ensinam, outros fingem que aprendem, e tudo termina em diploma", disse recentemente o filósofo Eduardo Giannetti em entrevista ao jornal Valor Econômico.

Grande parte dos jovens de classe média não possui a qualificação em matemática e português atestada em seu certificado de ensino médio, como têm mostrado repetidamente os estudos Pisa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne os países industrializados desenvolvidos. Muitos são lançados como analfabetos funcionais e sem domínio das operações aritméticas básicas no mundo do trabalho, onde são proporcionalmente mal pagos.

Contudo, muitos brasileiros de classe média a alta também pensam que, ao colocar seus filhos em escolas caras, já fizeram o suficiente por sua formação. Não se ensina a pensar, mas a aprender de cor. Um indício é que no Brasil não se leem nem presenteiam livros. Também nas casas dos que poderiam comprá-los, livros são artigo raro. Onde há aula de música na escola? Que crianças ou adolescentes já foram a um museu ou exposição?

Para o Brasil, esse último lugar em relação ao nível educacional da população é um mau presságio, pois compromete seu futuro. Giannetti explica: "Porque a formação de capital humano é o que define a vida de um país. Nenhum local prospera, encontra o seu melhor, se não der a cada cidadão a capacidade de desenvolver o seu potencial humano. E o Brasil está muito longe de alcançar essa realidade."

A isso, não há nada mais a acrescentar.

Bolsonaro aguou o Bicentenário

O repórter Lauro Jardim deu uma pequena notícia ruim que reflete o tamanho do atraso em que o Brasil está metido. Os presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) estão tomando providências para proteger os dois prédios no dia 7 de setembro. O ministro Luiz Fux coordenou a formação de três anéis de proteção e, no dia do Bicentenário da Independência, isolará uma área de 1,5 quilômetro de raio. Ele teme a repetição das provocações do ano passado, quando caminhoneiros furaram o bloqueio da Esplanada dos Ministérios. Caravanas de ônibus levaram manifestantes que criticavam o tribunal e defendiam a cloroquina.

Na manhã do dia 7, Jair Bolsonaro discursou na Esplanada e ameaçou:

— Ou o chefe desse Poder enquadra o seu (ministro do STF) ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos.

À tarde, na Avenida Paulista, foi adiante:

— Tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos. (...) Sai, Alexandre de Moraes! Deixa de ser canalha, deixa de oprimir o povo brasileiro.

Há 200 anos, o 7 de Setembro é uma festa de todos. Não tem o clima festivo do 14 de Julho francês nem do 4 de Julho americano, mas nenhum governo fez do 7 de Setembro um dia de vulgar mobilização partidária e divisiva.

As ditaduras promoviam patriotas, sempre com algum conteúdo cívico. Há um século, o presidente Epitácio Pessoa trabalhou e comemorou o Centenário com uma grande exposição internacional, congressos e visitas ilustres. Em São Paulo, inaugurou-se o monumental Museu do Ipiranga, com seus jardins. Cinquenta anos depois, o presidente Emílio Médici passeou pelo país os restos mortais de Dom Pedro I e promoveu uma dezena de louváveis iniciativas culturais.

Em plena ditadura, Médici fez do 7 de Setembro um dia de congraçamento. Segundo o Ibope, 84% dos brasileiros diziam-se satisfeitos com a situação do país. O presidente cavalgava a própria popularidade, mas cortou as manobras que lhe permitiriam uma reeleição. No dia 6, proibiu-se a transcrição do decreto de Dom Pedro abolindo a censura.

(Durante o mês de setembro de 1972, no Araguaia, a ditadura matou pelo menos nove militantes do PCdoB, e os guerrilheiros mataram um sargento e um camponês. No Rio, foi morto um bancário durante um assalto a banco na Penha.)

A essência do 7 de Setembro divisivo de 2022 partiu do Planalto. Pena que este mesmo governo não tenha feito da data um momento de reflexão histórica. Salvo uns poucos eventos de abnegados, o Bicentenário da Independência será lembrado pela reinauguração do Museu do Ipiranga, obra de governos paulistas, com a ajuda de empresários, valorizada por João Doria.

Pelo menos nesse evento, os brasileiros estarão juntos, tendo o que festejar, pois o museu foi reerguido depois de décadas de decadência. Bolsonaro, seus ministros da Educação e secretários de Cultura reclamam da influência esquerdista nos currículos. A celebração de personagens e datas é uma das joias do pensamento conservador, e no Centenário a República Velha deu ao país o Museu do Ipiranga. Felizmente o museu será devolvido ao público.

Como ensinava Sérgio Buarque de Holanda, conservador é uma coisa, atrasado é outra.

Amazônia, uma colônia do Brasil

É curioso que na Amazônia (e outras florestas) se mantenha o modelo de governança colonial espoliativo que inaugurou o Novo Mundo no século XV. Ao que parece, a descolonização nessas áreas não se completou.

Há uns vinte anos vi algo parecido no México. Fui conhecer um projeto indígena que exportava café gourmet para consumidores solidários europeus. A região, infestada por grileiros, latifúndios e criminosos, lembrou a nossa Amazônia.

Subimos a selva montanhosa durante muitas horas em estrada intransitável, entre as regiões de Chiapas e Oaxaca. O clima na vila era tenso. O tráfego de jipes militares com suas Browning .50 era ostensivo.

Assim como no México, o enredo amazônico é secular. A degradação gradual do tecido legal e social segue uma ‘crônica de uma morte anunciada’.


Na Amazônia, como em outras florestas, o interesse privado juntou-se ao desinteresse público, para lucrar com a pobreza humana e a riqueza natural (nesses lugares, o abandono tornou-se a principal política pública).

Pude ver o mesmo na Colômbia, transbordando a violência da guerrilha e do tráfico nas florestas para cidades, como Medellín. A solução exigiu investimento vultoso e planejamento inovador.

Outro exemplo é o das selvas africanas, onde novos colonizadores estimulam o desvio de minerais valiosos, para produção de celulares e artefatos nucleares da China e Coreia do Norte (novas tecnologias, antigos métodos).

Por sua vez, o Brasil insiste no eufemismo do bandeirante herói, romantizado, que agia nos sertões sem lei até o século XVIII, subjugando índios, tomando terras, traficando ouro, diamantes e escravos, sob a leniência de Lisboa.

Ainda no século XVIII, o Marquês de Pombal oficializou a dilapidação da Amazônia, criando a Companhia Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão (também para vender escravos e raspar o tacho das riquezas locais).

Nessa toada, a floresta amazônica vive, ainda hoje, um prolongamento daquela ocupação, ora ilegal, ora ‘legalizada’, que fincava os marcos da soberania portuguesa, enquanto o governo não chegasse.

Porém, na Amazônia atual, não se justifica que permaneça a tolerância com os bandeirantes de hoje (grileiros, garimpeiros, madeireiros e outros). As fronteiras estão consolidadas e, bem ou mal, o Estado brasileiro em suas diferentes formas já está na Amazônia, apoiado pela Segurança Pública e a Defesa. Resta governá-la.

A esse cenário, adicione-se os agravantes da mudança climática em curso. É inadiável deixarmos de tratar a Amazônia como colônia do Brasil e integrá-la a um projeto de país, antes que a soberania escorra rio abaixo, como em outras florestas pelo mundo.