segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Imagem do Dia


Direita volver, esquerda volver

Parece inacreditável que ainda exista em nosso país essa discussão inútil a respeito de esquerda ou direita, como se vê na disputa entre os candidatos presidenciais Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. Os dois termos parecem ter-se originado durante a Primeira República Francesa, quando, no verão de 1789, a Assembleia Nacional se reuniu em Paris e dela participaram conservadores, opostos a qualquer mudança e a qualquer diminuição dos privilégios da nobreza; liberais, favoráveis a um governo representativo; e radicais, que preconizavam igualdade e liberdade.


O anfiteatro tinha a forma de ferradura, não por refletir a burrice de alguns, mas porque acomodaria melhor os conservadores, à direita do presidente, os radicais à esquerda e os liberais ao centro. Naquele momento mágico da Revolução Francesa, que influiu de forma perene no mundo ocidental, ganhou expressão a malcheirosa palavra ideologia, com a divisão entre nós e eles, esquerda e direita.

Hoje os direitistas proclamam, talvez com alguma razão, que nunca se viu um governo de esquerda dar certo, prosperar e melhorar economicamente a vida das pessoas, “porque a esquerda não sabe governar”. E argumentam que a própria China só deu certo e cresceu a partir do momento em que volveu à direita e adotou a economia de mercado, passando a pagar melhor ao funcionário que produzisse mais.

Já os esquerdistas parecem ter ficado escravos da pregação marxista, que chegou a convencer e a empolgar milhões de pessoas. Marx, aquele filósofo sonhador, fora seriamente contaminado pelas ideias de Engels, para quem o Estado tenderia a desaparecer e acabaria colocado num museu de antiguidades, ao lado da roda de fiar e do machado de bronze.

Marx sonhava e pregava que a violência na sociedade capitalista nasce da privação econômica e que, dando ao homem alimentos, roupas e abrigo suficientes, a necessidade de recorrer à força declinaria. Quando a sociedade sem classes tiver sido atingida, dizia aquele admirável sonhador, desapareceriam não apenas as diferenças de classe, mas também as diferenças nacionais. E finalmente o próprio Estado deixaria de existir. Assim como o capitalismo, as divergências criadas pela burguesia também desapareceriam, e todos os homens passariam a viver como irmãos.

Esses argumentos foram bastante sedutores, a ponto de no princípio do século passado convencerem milhões de pessoas, em quase todos os países, principalmente a elite intelectual. Entre nós, essa embriaguez política ganhou feição própria e em determinado momento, com a renúncia de Jânio Quadros, levou à luta a classe trabalhadora, menos privilegiada. Operários e soldados, cabos e sargentos, passaram a exigir reformas de base, defendidas pelo presidente João Goulart e Leonel Brizola, com o erro grave (e fatal) de pregar até mesmo o desrespeito à disciplina nas Forças Armadas.

Realmente, de forma ostensiva e desafiadora cabos e sargentos passaram a divergir publicamente de seus oficiais e isso difundiu o medo de que o País mergulhasse de cabeça numa ditadura de esquerda. As forças conservadoras, chamadas de “direita”, despertaram bem assustadas e começaram a sugerir, quase como exigência, a intervenção das Forças Armadas, o que acabou sendo feito sem nenhuma delicadeza (ao contrário, havia tanques e canhões nas ruas).

Daí vieram dias sombrios, às vezes chamados de tempos de chumbo, com atos terroristas de jovens inconformados, estimulados por políticos, e repressão nada piedosa das forças militares que dirigiam o País. Após alguns anos de turbulência, militares de feição liberal passaram a discutir uma forma de devolver o poder aos civis, mas, naquela altura, jovens inconformados e de índole violenta cometeram o equívoco de jogar uma bomba no quartel do II Exército, em São Paulo, fazendo em pedaços um recruta de 18 anos que no momento estava de sentinela. O soldado se chamava Mário Kozel Filho, católico praticante, que talvez nem soubesse o que vinha a ser esquerda e direita, muito menos reformas de base.

O incidente levou a cúpula militar a concluir que seria desastroso devolver o País “a esses loucos” e por isso o domínio das Forças Armadas permaneceu ainda por vários anos. Agora, com o aparecimento político de Jair Bolsonaro, disputando a Presidência da República, todo esse passado de confronto entre civis e militares passou a ser relembrado, como se isso representasse “a direita” ou “o fascismo”.

Sempre houve um parentesco bem próximo entre as doutrinas totalitárias, ou seja, comunismo, fascismo e nazismo se amoldam bem no mesmo rótulo. Nessas doutrinas, o domínio da maioria por uma elite minoritária parece inconcebível, mas tem-se verificado repetidamente.

Na pirâmide social, torna-se absurdo que uma minoria permaneça no topo e a maioria resulte esmagada na base, muito mais ampla. Nossos vizinhos venezuelanos, por exemplo, estão feridos na base, enquanto a minoria totalitária de Nicolás Maduro parece governar com ódio do povo e, a exemplo do que ocorre em Cuba, subjuga e deixa anestesiada a maioria, que o detesta.

Graças às instituições em pleno funcionamento, com imprensa livre e independente, não haverá lugar em nosso país para radicalismos de esquerda ou de direita, nem para que o Brasil se transforme numa Venezuela. A nossa vocação e a nossa predestinação são para uma República de verdade, com liberdade de expressão e respeito aos contrários.

Ademais, ainda que os nossos governantes não tenham demonstrado a eficiência necessária para melhorar a qualidade de vida dos mais pobres, forçoso é concluir que a vontade da maioria tem prevalecido e as escolhas têm sido realizadas com liberdade.

As prisões mentais

Lula está preso, meu caro. Repito a frase de Cid Gomes que ecoou na rede, suprimindo a palavra babaca. Não por correção política. A palavra iguala a estupidez à vagina. Apenas para lembrar, com humildade, como certos sentimentos estão arraigados em nossa cultura e emergem de nosso subconsciente.

A líder da direita francesa, Marine Le Pen, afirmou que algumas frases de Bolsonaro são inaceitáveis na França. Mas não o foram no Brasil.

Humildade aqui significa reconhecer que mudanças culturais levam tempo para se consumar. Não são como uma ponte destruída pela chuva que se reergue rapidamente. Nem mesmo uma nova capital que pôde ser construída no Planalto. Às vezes, atravessam gerações.

Lula está preso. É natural que o PT não aceite isso. Mas a forma de recusar foi chocar-se diretamente com a Justiça, tentar dobrá-la com manifestações, apoio externo e uma inesgotável guerra de recursos legais.

Compreendo que isso era visto como uma forma de acumulação de forças. Mas, na verdade, também acumulou rejeição.

Quando Haddad foi lançado, cresceu rapidamente exibindo a máscara de Lula. No segundo turno, a máscara envelheceu como o célebre retrato de Dorian Gray.

Mas o período que se abre agora será de tanto trabalho, que talvez não tenhamos mais tempo para nos patrulharmos. São tempos complexos, que demandam mais humildade ainda.

Num debate em São Paulo, depois do primeiro turno, confessei como o processo me surpreendeu. As pesquisas indicavam uma grande vontade de renovação. Quando os partidos se destinaram quase R$ 2 bilhões para a campanha, concluí que a renovação seria mínima.

Apesar de ter feito algumas campanhas no território digital, minha reflexão ainda se dava no quadro analógico. A renovação, cuja qualidade ainda é discutível, aconteceu. Com R$ 53 milhões, Meirelles teve menos votos do que o Cabo Daciolo, um exemplo de como os velhos parâmetros foram para o espaço.

As próprias pesquisas que tanto critiquei no passado porque achava que favoreciam Sérgio Cabral, hoje as vejo com nostalgia. Existe informação na pergunta clássica em quem você vai votar.

Mas, para detectar tendências, é preciso um oceano de dados e capacidade de análise. As pesquisas envelheceram, sem que muitos se dessem conta. Mas não apenas elas envelhecem, num mundo em que a inteligência artificial avança implacavelmente.

E é nesse mundo que teremos de navegar. A situação econômica internacional não é favorável como no passado. Nos artigos em que trato de alguns de seus aspectos, começo sempre com o paradoxo: os Estados Unidos, que lideraram uma ordem multilateral, decidiram abandoná-la. Será preciso mais do que nunca acertar os passos aqui dentro. Isso significa gastar menos, fazer reformas.

Quando estava na Rússia, os primeiros protestos contra a reforma da Previdência foram abafados pelo oba-oba da Copa do Mundo. Soube que agora a popularidade de Putin caiu 20 pontos precisamente por causa dela. Em outras palavras, a vida não é nada fácil para quem precisa reformar o Estado e fazer um ajuste fiscal.

Nesse futuro tão nebuloso que nos espera, a tese do quanto pior melhor é atraente, no entanto, pode ser também um novo erro de avaliação.

Quando ficamos muito concentrados nos problemas internos, perdemos um pouco de vista nossa inserção internacional. A imagem do Brasil lá fora mudou. O próprio Bolsonaro começará seu mandato como um dos presidentes mais rejeitados pela imprensa planetária. Ele terá de moderar sua retórica. E quem faz oposição precisa tomar consciência da situação delicada em que o país entra.

A sobrevivência da democracia não está ameaçada. Mas algumas escoriações podem empurrá-la para o viés autoritário que hoje cresce no mundo.

As fake news, por exemplo, sempre existiram, mas hoje têm um peso maior, pelo alcance e velocidade. Utilizá-las sem escrúpulos e denunciá-las no adversário apenas confirma o pesadelo moderno da decadência da verdade.

É muito difícil chamar à razão a quem se considera o dono dela. Os intelectuais condenam as escolhas populares, mas, às vezes, não percebem a sede de sinceridade que há por baixo delas. Pena.

Missa de sétimo dia

Aqui, em agosto de 2016, escrevi o seguinte: “A Nova República apaga-se na bruma do passado —mas nenhum sistema político alternativo surgiu para substituí-la. Temer (...) é um gerente de ruínas.” Nessa, acertei: o velório da Nova República deu-se no primeiro turno das eleições. Mas errei, e feio, sobre a forma de que se revestiria o ato fúnebre: seis semanas atrás, escrevi que, “no turno final, a rejeição a Bolsonaro elege qualquer adversário”. De fato, pelo contrário, a descida do caixão até seu túmulo será acompanhada pelos acordes da vitória de Bolsonaro. Diante de nós, sobra a missa de sétimo dia: um esforço para desvendar como chegamos ao ponto de eleger o candidato que cultua o sistema anterior à Nova República —isto é, a ditadura militar.
Sem qualquer ordem hierárquica, sugiro algumas causas para o desfecho:

1) A implosão do PSDB. O sistema político da Nova República estabilizou-se ao redor da disputa entre PSDB e PT. Desde o fim do ciclo do Plano Real, os tucanos perderam a capacidade de formular uma plataforma popular — e foram batidos em quatro eleições consecutivas. O colapso terminal deu-se com a desmoralização de Aécio Neves, na “operação Joesley Batista”. Bolsonaro tornou-se o desaguadouro do voto antilulista que, antes, se inclinava para os tucanos. O PSDB, tal como o conhecemos, está morto.

2) A deslegitimação geral da elite política. Sob Lula, o “presidencialismo de coalizão” degenerou no “presidencialismo de cooptação” (apud FHC). A devassa da Lava-Jato esclareceu os mecanismos de corrupção sistêmica que envenenam o sistema político. Na sequência, uma “fase 2” da Lava-Jato, conduzida como projeto de poder corporativo por Janot e pela ala jacobina do Ministério Público, destruiu o que restava de credibilidade na prática da política. Bolsonaro encarnou, no plano imaginário, a antipolítica.

3) A pedagogia petista do “nós” contra “eles”. O lulismo converteu as disputas eleitorais em guerras de extermínio. O adversário deixou de ser um parceiro na divergência democrática para se transformar no “inimigo do povo”, no “fascista”, no quintacoluna a serviço do imperialismo. No ápice desse teorema, em 2014, Marina Silva foi pintada como agente dos banqueiros numa conspiração destinada a esvaziar o prato de comida dos pobres. Pelas mãos de Bolsonaro, o ácido corrosivo voltou-se contra o PT. A tempestade de insultos bolsonaristas, acompanhada de torrentes de fake news, encontra um eleitorado habituado à linguagem exterminista. Depois da missa, o Brasil precisará reaprender a conversar.

4) A configuração da eleição como plebiscito sobre Lula. A narrativa petista do “golpe parlamentar” e da “perseguição judicial” confluiu para a estratégia da candidatura de Lula. A máscara do ex-presidente sobre o rosto de Haddad completou o percurso, impondo aos eleitores um veredicto sobre o lulismo. Mas o lulismo nunca foi majoritário, como atestam as quatro eleições consecutivas, entre 2002 e 2014, que exigiram segundo turno. Bolsonaro aceitou, agradecido, o desafio de comprovar a existência de uma maioria disposta a rejeitar um quinto mandato lulista. O PT foi expulso do Centro-Sul do país. A tardia, confusa, tentativa do PT de girar para o centro após o primeiro turno não funcionou. Junto com os funerais da Nova República, encerra-se o ciclo lulista.

5) Bolsonaro é inculto, como Lula — mas, como Lula, não lhe falta inteligência política. Nos EUA e na Europa, a direita nacionalista identificou nas senhas da imigração e do terrorismo os pulsos eficazes para ativar um eleitorado atemorizado diante do futuro. Bolsonaro traduziu os códigos para as circunstâncias da crise brasileira, apertando as teclas da violência urbana e da corrupção. Seu discurso eleitoral explode a gramática política da Nova República. Ninguém, no centro ou na esquerda, encontrou antídotos para as toxinas bolsonaristas.

Donald Trump ou Rodrigo Duterte, o populista que preside as Filipinas à frente de esquadrões da morte? Provavelmente, nem um nem outro. Mas isso só saberemos ao certo depois da missa.

Pensamento do Dia

Pawel Kuczynski

O fim do começo e um samba da Paulinho da Viola

O país vive mais um daqueles momentos que, supunha-se, teriam ficado nos livros de história, os quais, pelo jeito, pouca gente lê. Trata-se de mais um daqueles períodos de desacertos, governados pela insensatez e pela incapacidade de diálogo; estimulados por uma incompetência acelerada, uma histeria progressiva. Circunstâncias que denunciam a desigualdade e a dissintonia de informação, verdades e valores entre os indivíduos.

Mais um período difícil que, também, figurará nos livros de história do futuro que, insiste a esperança, as novas gerações lerão e aprenderão, tomando consciência e conhecimento da fragilidade dos pactos sociais, escapando desses ciclos de humores alternados que, ora enxergam em qualquer liberdade a anarquia; ora, na procura de toda ordem, o Santo Ofício — como demarcou, certo dia, Sérgio Buarque de Holanda.


Enfim, de acordo com as pesquisas, a eleição chega à sua última semana praticamente definida, com a vitória de Jair Bolsonaro. A distância do deputado para o petista Fernando Haddad gira em torno de 18 pontos percentuais e, ainda que o Brasil seja o “país dos fatos improváveis”, é, com efeito, pouco provável que não resulte na eleição do ex-capitão. A eleição chegará ao fim, mas o conflito talvez se encontre apenas no fim do começo.

O cenário de continuidade parece se armar: Fernando Haddad e seus partidários tentam ainda uma última reação, se abraçando à matéria publicada na Folha de S. Paulo, que dá conta de um esquema entre empresários aliados a Bolsonaro, que teriam financiado a difusão de Fake News, pelo WhatsApp, o que a lei eleitoral veda.

São movimentações de última hora que, independente de gravidade, tendem a influenciar pouco a maioria que parece já ter se definido por Jair Bolsonaro. Seus eleitores mostram-se, mais que tudo, contrariados com o PT e essa contrariedade é, hoje, a maior força política do país, o antipetismo. Provavelmente, apenas o PT não percebeu isso.

Jair Bolsonaro e seu grupo, evidentemente, negam envolvimento com o caso. E a Folha, para além da denúncia, ainda não apresentou provas mais contundentes que hipóteses baseadas no ditado italiano “se non é vero, é ben trovato”. É do conhecimento geral que milhões de Fake News, com efeito, inundaram o WhatsApp e há, nas redes, vídeos de diálogos de empresários admitindo o dispêndio de recursos com a campanha bolsonarista. Ainda assim, nada disso pode ser entendido como algo mais que indícios, e até aqui não compõem prova.

O caso seguiu para avaliação e manifestação do Tribunal Superior Eleitoral e para investigação da Polícia Federal. O mais provável é que não dê em nada, até o dia da eleição pelo menos. Mas, o certo é que ficará guardado como um peso sobre o novo presidente e será, inevitavelmente, explorado por sua oposição. É do jogo. E fossem os outros os perdedores, não fariam o contrário.

Todavia, fatos assim são de mau presságio. Mais uma vez, o derrotado tenderá a não aceitar o resultado do pleito, como foi o caso de Aécio Neves, em 2014. Configura-se uma situação que acalentará a continuidade da crise, o que prejudicará a necessária pacificação do país. Mais uma vez: o fim da eleição será apenas o começo de uma crise ainda maior?

Ações de um lado despertarão a reação do outro. Quando as instituições mostram-se incapazes de conter ânimos, a tentação pelo uso da força é quase irrefreável. Dá-se a esse processo político e social o nome de “escalada”. Num otimismo tanto forçado quanto necessário, espera-se que o país não chegue a esse ponto. Ainda assim, é preciso ter conhecimento do potencial do contexto.

Acresce a isto que, no furacão da crise política, será muito mais difícil manter o foco na economia. A dispersão de energia dificulta a boa articulação e o andamento de reformas. E enquanto a questão econômica não for aplacada, a crise política não será mitigada. É um círculo vicioso. O mesmo “não ata nem desata” que envolve o país desde 2014 e que nos trouxe aqui.

O futuro governo, qualquer que seja, terá muitas dificuldades, pois os dois candidatos e as circunstâncias que os envolvem não parecem dados nem à humildade da derrota, nem à grandeza da vitória. O discurso de “unidade nacional” será palavras ao vento se não começarem a atuar políticos hábeis com capacidade de diálogo e negociação entre os campos políticos que se formaram.

O país precisará de bombeiros, que isolem focos e anulem incendiários. Espera-se que o discurso da vitória do eleito, no domingo, seja de bom senso, boa vontade e sabedoria, ouvindo o outro lado; compreendo a diversidade social e política do país como natural e legítima; que aceitos seus argumentos, “não altere o samba tanto assim”. Dos derrotados, que façam “como o velho marinheiro que durante o nevoeiro leva o barco devagar”.
Carlos Melo 

Uma campanha diferente

Em 2015, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional a doação de pessoas jurídicas para campanhas políticas, houve quem apregoasse que a decisão da Suprema Corte inviabilizaria a democracia. Segundo esses alarmistas, as campanhas eleitorais eram necessariamente muito caras, também por força das dimensões territoriais do Brasil. Sem o dinheiro das empresas, o sistema eleitoral simplesmente ruiria, num verdadeiro desastre democrático.


Agora, transcorrida a primeira eleição nacional sem o financiamento por pessoas jurídicas, ficou claro que tais prognósticos não tinham fundamento. Foi perfeitamente possível fazer campanha eleitoral sem dinheiro das empresas. Com isso, foi enterrado de vez o argumento de que as doações de pessoas jurídicas para partidos políticos seriam um mal necessário, como se o sistema eleitoral precisasse fechar os olhos para as distorções causadas pela interferência de empresas na política - as empresas não têm direitos políticos - a fim de assegurar condições econômicas para a realização das campanhas. As empresas não deram dinheiro e a campanha eleitoral transcorreu normalmente.

Trata-se de uma mudança saudável. O País conseguiu se livrar, sem maiores traumas, de uma interferência que gerava inúmeras distorções na representação popular e abria as portas para a corrupção. Mais do que uma doação de caráter filantrópico ou de promoção de determinados ideais políticos, os recursos econômicos que as empresas destinavam aos partidos políticos representavam um poderoso investimento para a consecução de seus interesses corporativos. A interferência econômica deturpava a política.

As eleições de 2018 revelaram também outro dado muito positivo. Não é apenas do dinheiro das empresas que a campanha eleitoral pode se ver livre. Ela também não precisa ser refém do dinheiro público. Reportagem do Estado mostrou que, na campanha eleitoral deste ano, mais da metade dos candidatos não usou recursos do Fundo Eleitoral. Por exemplo, houve 8.591 candidatos a deputado federal em todo o País. Desse total, 4.817 não receberam nenhum recurso do chamado “Fundo Especial de Financiamento de Campanha”, criado especialmente para destinar dinheiro público às campanhas. Em 2018, o valor do fundo foi de R$ 1,7 bilhão.

Os números do financiamento eleitoral deste ano desmontam a tese da suposta necessidade de dinheiro público para financiar os partidos políticos. Muitos candidatos foram eleitos sem usar dinheiro do contribuinte. Além disso, houve também quem tenha usado bastante dinheiro público na sua campanha e mesmo assim foi rejeitado pelas urnas. Dos recursos públicos que o PT recebeu, o partido destinou R$ 4 milhões à campanha da ex-presidente Dilma Rousseff para o Senado. Ela ficou em 4.º lugar na disputa em Minas Gerais. A candidata ao Senado pelo PSB em Goiás Lúcia Vânia recebeu R$ 3,5 milhões dos cofres públicos para a sua campanha e também não foi eleita.

Na Câmara dos Deputados, foi notório o fracasso de duas candidatas. Danielle Cunha, filha do deputado Eduardo Cunha, recebeu R$ 2 milhões do Fundo Eleitoral e mesmo assim não conseguiu se eleger. Cristiane Brasil, filha do presidente do PTB, Roberto Jefferson, recebeu R$ 1,85 milhão do Fundo, mas não obteve votos para a vaga de deputada federal.

Neste ano, ficou claro que a alegada imprescindibilidade dos recursos públicos para a campanha eleitoral é tão frágil quanto a argumentação a favor das doações de pessoas jurídicas. O sistema eleitoral subsiste muito bem sem essas duas interferências nefastas.

Em 2015, o País deu um grande passo ao proibir as doações de pessoas jurídicas. Cabe agora, com a comprovação empírica de que o dinheiro público não é essencial para a campanha eleitoral, também eliminar o financiamento público, que gera graves desequilíbrios. Os partidos políticos são entidades privadas, que não devem ser sustentadas com dinheiro público. Acabar com o dinheiro público na campanha não é uma utopia e tampouco uma loucura. É um passo plenamente possível, que fortalece o papel do cidadão no processo político.

WhatsApp é 'gópi'

Se você pensa que viver fantasiado de herói progressista é moleza, está enganado. A vida é dura. Pensa que é só inventar uma mentira charmosa, dessas que funcionam maravilhosamente no Facebook, no Baixo Gávea e na Vila Madalena, e viver disso para sempre? Negativo.

Você terá que ser mais e mais criativo, se superar a cada dia – até chegar às raias da genialidade ao propagar que o WhatsApp ameaça a democracia. Sim, você pode! Mas não pense que é fácil.

Tudo começou quando deu errado o truque de reabilitar os bandidos gente boa do PT lutando contra a ditadura do século passado. Até chegou-se ao milagre de levar ao segundo turno o partido que depenou o Brasil, mas aí o Ibope e o Datafolha – que vinham sendo super legais e parceiros – tiveram que desmontar aquele cenário da vitória final inevitável contra a caricatura da direita, tão bem alimentada por mais de um ano.

Deu ruim, e o jeito foi mostrar a real: Haddad morrendo na praia de novo.

Mas se você é um suposto gladiador da elite cultural, ideias não te faltam. Quem passou mais de ano espalhando fake news do Rodrigo Janot, transformando açougueiro biônico (laranja bilionário do Lula) em denunciante da corrupção generalizada, pode criar outras narrativas espertas.

Foi assim que a cruzada do petismo enrustido foi dar nos costados do WhatsApp. A mensagem é clara: só quem está autorizado a espalhar fake news é veículo de mídia tradicional aparelhado pela narrativa politicamente correta. Ou seja: você só pode veicular notícia falsa se ela tiver sido produzida genuinamente pela sua empresa. Como o WhatsApp não produz notícia, não tem a prerrogativa de espalhar mentira.

Fica combinado assim: Lula ia salvar a democracia de dentro da cadeia e foi impedido por um golpe de estado do WhatsApp. Quem achar a formulação complexa demais, peça ao companheiro Cid Gomes para resumir.

Decidido o novo script dos cafetões da bondade, todos se tranquilizaram e partiram para o bom e velho show de bravura cívica a 1,99. Surgiu inclusive um slogan “ditadura nunca mais”, com um complemento que acabou não circulando, mas nós publicamos a seguir:

Ditadura nunca mais, a não ser uma como a do Maduro, ou a do Ortega, ou a do Kadhafi, ou a do Ahmadinejad, ou a do Saddam, ou a de algum outro amigo do Lula que arranque o couro do povo sem perder a ternura e a simpatia do Roger Waters. O resto a gente não aceita.

E o show tem que continuar. Preocupado com a liberdade de expressão, o grupo de artistas e intelectuais decidido a garantir a qualidade do conteúdo nas mídias e no WhatsApp deveria criar logo uma junta de notáveis para tomar conta disso. Alguns nomes naturais, dado o histórico do movimento, seriam os dos pensadores Nicolás Maduro, Lindbergh Farias, Robert Mugabe e Renan Calheiros.

Para mostrar que quem ameaçar a democracia eles prendem e arrebentam, poderiam difundir com mais intensidade o vídeo do professor Haddad explicando por que Stalin era melhor que Hitler: porque, diferentemente do nazista alemão, ele lia os livros de suas vítimas antes de fuzilá-las. Não é lindo?

Vai ver é por isso que há editores de livros no manifesto democrático em defesa do poste iluminado do PT.

O importante é afirmar, em defesa do estado de direito e das liberdades individuais, que o WhatsApp é golpista – e nós podemos provar. Por exemplo: estava tudo correndo perfeitamente bem na democrática operação de abafar a notícia de que o PT, na sua metamorfose verde-amarela, apagou seu apoio à ditadura pacifista e sanguinária do companheiro Maduro.

Se acabamos de demonstrar que Stalin é um ser evoluído, é claro que está tudo certo com a prática de fazer informações sumirem do mapa e, também, com a consequente ocultação do expurgo.

Aí o que faz o WhatsApp? Espalha essa informação que tinha sido tão bem escondida. É ou não é golpista?

Outra notícia que estava fora das manchetes e esse aplicativo fascista mandou para todo mundo foi a da conclamação do companheiro Boulos à invasão da casa de Bolsonaro. É o tipo da informação irrelevante, considerando que Boulos é ex-companheiro de partido do homem que tentou matar o candidato com uma facada – portanto está todo mundo cansado de saber que o negócio deles é barbarizar geral, nenhuma novidade aí.

O Brasil não sabe o que será o provável governo Bolsonaro. Mas os progressistas de carnaval que cultivaram tão dedicadamente a polarização burra em que o país entrou já sabem o que farão: atiçarão sofregamente a boçalidade para tentar continuar vivendo (bem) como vítimas profissionais."

Brasil na margem de erro


Salvar Badajoz

Guernica
Para a história da aviação. Em Badajoz foi hoje dado nome a uma rua. O motivo, a causa, o pretexto, a razão, ou como se quiser chamar-lhes, já têm mais de cinquenta anos, e muito fortes terão sido para sobreviverem aos olvidos acumulados de duas gerações, justificados estes, em geral, pelo facto de as pessoas terem mais em que pensar. Não direi eu que os habitantes de Badajoz levaram este meio século e picos a transmitir uns aos outros o certificado de uma dívida que um dia teria de ser paga, o que digo é que algum badajoceño escrupuloso deve ter tido um rebate de consciência mais ou menos nestes termos: "Muitos dos que hoje vivem estariam mortos, outros não teriam chegado a nascer." Parecerá um enigma da Esfinge, e afinal é só uma história da aviação.

Há cinquenta e tantos anos, durante a guerra civil, um aviador republicano teve ordem de ir bombardear Badajoz. Foi lá, sobrevoou a cidade, olhou para baixo. E que viu quando olhou para baixo? Viu gente, viu pessoas. Que fez então o guerreiro? Desviou o avião e foi largar as bombas no campo. Quando regressou à base e deu conta do resultado da missão, comunicou que lhe parecia que tinha matado uma vaca. "Então, Badajoz?", perguntou o capitão. "Nada, havia lá gente", respondeu o piloto. "Pois", fez o superior, e, por impossível que pareça, o aviador não foi levado a conselho de guerra... Agora há em Badajoz uma rua com o nome de um homem que um dia teve pessoas na mira da sua bomba e pensou que essa era justamente uma boa razão para não a largar.
José Saramago, 9 de fevereiro de 1995

Governar não é brincadeira

Votações expressivas do eleitorado não legitimam investidas contra a ordem político-jurídica fundada no texto da Constituição! Sem que se respeitem a Constituição e as leis da República, a liberdade e os direitos básicos do cidadão restarão atingidos em sua essência pela opressão do arbítrio daqueles que insistem em transgredir os signos que consagram, em nosso sistema político, os princípios inerentes ao Estado democrático de Direito
Celso de Mello, ministro do STF

Falta aos Bolsonaro noção de institucionalidade

Não passa semana sem que Jair Bolsonaro, seus filhos ou seus auxiliares pendurem nas manchetes um cacho de declarações polêmicas. O grupo dá frases tóxicas como a bananeira dá bananas. A penúltima esquisitice veio na forma de um comentário do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). O filho do presidenciável favorito declarou que ''para fechar o STF basta um cabo e um soldado''. Disse também que se o STF impugnar a candidatura do seu pai “terá que pagar para ver o que acontece.” Indagou: “Será que eles vão ter essa força mesmo?'' Ai, ai, ai.

Feita em 9 de julho, a gravação é anterior ao primeiro turno da eleição. Eduardo Bolsonaro dava palestra na cidade paranaense de Cascavel, num curso preparatório para concurso da Polícia Federal. Um dos alunos perguntou se o Exército poderia agir caso o STF impugnasse eventual vitória de Jair Bolsonaro. Um expositor com dois neurônios diria que é impensável uma intervenção do Supremo num processo eleitoral submetido às normas constitucionais. Sobretudo considerando-se que as questões eleitorais estão afetas ao TSE, não ao STF.


O filho do capitão, entretanto, achou sensato injetar no impensável uma dose de inimaginável. Declarou o seguinte: “Aí já está encaminhando para um estado de exceção. O STF vai ter que pagar para ver. E aí, quando ele pagar para ver, vai ser ele contra nós. Você tá indo para um pensamento que muitas pessoas falam, e muito pouco pode ser dito. Mas se o STF quiser arguir qualquer coisa —recebeu uma doação ilegal de cem reais do José da Silva e, então, impugna a candidatura dele. Eu não acho isso improvável, não…”

Após informar que considera ''provável'' o impensável, Eduardo Bolsonaro engatou uma segunda e prosseguiu: ''Cara, se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo, não. O que é o STF? Tira o poder da caneta de um ministro do STF. Se prender um ministro do STF, você acha que vai ter uma manifestação popular a favor do ministro do STF, milhões na rua? 'Solta o Gilmar, solta o Gilmar'. Com todo respeito que tenho ao excelentíssimo ministro Gilmar Mendes, que deve gozar de imensa credibilidade junto aos senhores.''

O presidente da República representa um símbolo para a nação. Toca-se o hino nacional onde ele se apresenta, hasteia-se a bandeira. Cada ação sua é exposta ao público nas manchetes. Sua vida e a de sua família estão expostas a permanente escrutínio. Dele se espera que evite procedimentos e declarações vulgares. O mesmo vale para os filhos, um deputado e um senador. Na bica de virar chefe de Estado, Jair Bolsonaro ainda não deu demonstrações de que compreende a dimensão do cargo se dispõe a ocupar. Os filhos tampouco servem como referência dos valores que o presidenciável diz representar.

Falta aos Bolsonaro uma noção qualquer de institucionalidade. Ainda assim, recebem votos. Muitos votos. Depois de examinar o comportamento de políticos como eles, que, por serem representantes de parcela expressiva da população, representam o melhor da sociedade, uma dúvida se impõe: a oferta de candidatos é escassa ou o eleitor brasileiro parou de evoluir?

A despeito da existência de um vídeo que não deixa dúvidas quanto ao despautério dos comentários, até Jair Bolsonaro duvidou: ''Se alguém falou em fechar o STF, precisa consultar um psiquiatra.'' Mas o filho Eduardo viu-se compelido a confirmar o inegável: ''Acredito que o vídeo não é motivo para alarde, até porque eu mesmo o publiquei em minhas redes sociais há quase quatro meses. Trata-se de mais uma forçação de barra para atingir Jair Bolsonaro…”

Na campanha presidencial de 2018, se os resíduos psíquicos fossem concretos, não haveria rede de esgoto que bastasse.

Breve tratado dos chatos de eleição

Faltando pouco para o segundo turno, está à solta o chato eleitoral. É um personagem que tenta transformar qualquer conversa em discussão política para defender seu candidato. Assim como sempre haverá gente que enfia o dedo no nariz, não há como evitar que ele exista. Pode-se limitar o alcance de sua chateação cortando-se polidamente o assunto. O general Alfredo Malan tinha uma fórmula: “Política e jogo de cartas me dão sono”. (Não era verdade, mas funcionava.)

Há dois tipos de chatos eleitorais.

O primeiro, benigno, é o militante. Ele supõe que sua palavra iluminada pode conseguir um voto para seu candidato. Esse chato pode ser neutralizado com uma simples mudança de assunto. O melhor remédio é deixá-lo falar o tempo que quiser. Interrompê-lo será estimulá-lo.

O segundo chato eleitoral, maligno, quer vender seu candidato, mas há nele algum tipo de insegurança. Fez sua escolha mas busca apoio, cumplicidade.


Esse é o tipo mais desagradável e perigoso, porque precisa de uma discussão. Afinal, só assim poderá se convencer que fará o certo, pois mais gente decidiu como ele. Quanto mais corda recebe, mas enfático ou radical se torna. Nesse caso o culpado pela chateação será quem lhe deu corda. (Trocar ideias com um eleitor de Bolsonaro tem uma complicação exclusiva, pois o candidato não quer debater as suas.

Se nenhum recurso der certo, pode-se recorrer ao truque do deputado Temperani Pereira. Depois de ouvir uma exposição de um colega ele lhe disse: “Sua opinião me deixa incorrobúvel e imbafefe”.

Depois comentou: “Quero ver ele achar essas palavras no dicionário”.