segunda-feira, 27 de junho de 2022
Caso Milton Ribeiro é expressão genuína do bolsonarismo
O bolsonarismo baseia sua legitimidade em narrativas que nada têm a ver com a realidade.
Há a alegação de que o bolsonarismo combate o comunismo. Qualquer pessoa com sentido político se questiona: que comunismo? Não há nenhum forte movimento comunista ou socialista no Brasil. O PT é um partido social-democrata, que não quer eliminar o capitalismo, mas restringir seus excessos negativos.
A segunda narrativa afirma que o bolsonarismo defende os valores cristãos. Aqui resta apenas a pergunta: a quais valores pregados por Cristo eles se referem? O direito ao porte de armas? O direito à tortura? O direito de ofender e ameaçar quem tem uma opinião diferente? Ou o direito de destruir o meio ambiente, ou seja, a criação de Deus?
O terceiro pilar do movimento foi, desde o início, a história de que eles estavam combatendo a corrupção. Bolsonaro e seus apologistas alegavam que não havia corrupção no seu governo. Essa era talvez a alegação mais atrevida, porque ela contradizia tão evidentemente a realidade. Já era possível se dar conta disso muito antes da prisão do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, que é investigado por suspeita de corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência.
Também não foi nenhuma surpresa Ribeiro ser um pastor evangélico e estar envolvido em negócios ilícitos do Ministério da Educação com outros pastores evangélicos. As grandes igrejas evangélicas – todas apoiadoras de Bolsonaro – são um refúgio de falsidade e manipulação. Elas apoiam Bolsonaro porque ele lhes garante privilégios como isenção de impostos, por exemplo. Não surpreende o fato de terem sido registradas dezenas de visitas dos pastores que foram presos agora ao Palácio do Planalto.
A prisão de Ribeiro é surpreendente apenas devido ao fato de a Polícia Federal (PF) não ter batido à porta de um ministro de Bolsonaro muito antes – do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, por exemplo. O general foi responsável pelo caos na crise da covid-19 e pelos escândalos de corrupção na compra de vacinas contra o coronavírus. Com Pazuello, a promessa de uma atuação técnica dos militares no governo foi de vitrine à vidraça. Ao menos sete militares que estavam no comando de cargos-chave da Saúde foram citados na CPI da Pandemia por suposto envolvimento em irregularidades.
Quando Bolsonaro fala de seu governo "livre de corrupção", ele parece sempre se esquecer de seus filhos, que cumprem tarefas dentro do governo. Os três mais velhos estavam e estão na mira do Ministério Público, e agora o mais novo também é investigado. Embora Bolsonaro enfatize que seus filhos devem responder por seus próprios erros, ele mandou trocar a Superintendência da PF no Rio de Janeiro devido às investigações contra eles.
Em agosto de 2021, o governo até decretou sigilo centenário de informações sobre o presidente e seus filhos após pedidos feitos pela imprensa. Essa medida se somava a outras ações adotadas por Bolsonaro para reduzir a transparência pública. Só faz isso um governo que tem algo a esconder, e não um que combate a corrupção.
A interferência de Bolsonaro na PF levou à renúncia do ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Até sua renúncia, os bolsonaristas consideravam Moro um herói na luta contra a corrupção. Desde então, ele passou a ser um "traidor". O bolsonarismo nunca foi sobre a luta contra a corrupção, mas um projeto nepotista de poder e de destruição do Estado. Uma pediatra bolsonarista me disse há pouco tempo que Moro tinha simplesmente muita ambição.
Com a mesma facilidade, bolsonaristas defendem o casamento com o Centrão – a personificação de corrupção, desvio de recursos públicos e, principalmente, estagnação política. Fica claro que o bolsonarismo é um movimento sem princípios. Quem proclama mudar o sistema político corrupto do Brasil, mas em seguida abraça Fernando Collor e deixa passar um monte de emendas secretas para garantir a reeleição de deputados do Centrão, trai os próprios eleitores.
Irregularidades por todos os lados
Casos de nepotismo e irregularidades pautam este governo. Um outro exemplo? O caso Queiroguinha. O filho do atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, atuou em processos destinados à liberação de recursos públicos do Ministério da Saúde. Queiroga agora pode ser investigado por suspeita de improbidade administrativa e infração à legislação eleitoral.
Há, além de tudo isso, o aumento dos gastos com o cartão corporativo do presidente às vésperas da eleição, que atingiram o valor de R$ 1,2 milhão por mês. Desde 2019, ano do início do governo Bolsonaro, as faturas mensais têm ficado cada vez mais altas. Isso parece um uso responsável do dinheiro dos contribuintes, ou já é peculato?
O bolsonarismo, cujo lema é lei e ordem, é um movimento que acredita estar acima da lei. Isso começa pelos garimpeiros e madeireiros ilegais na Amazônia, que justificam suas atividades literalmente afirmando que o presidente permitiu e, até mesmo, exigiu. (Bolsonaro mostrou a eles como se faz, quando em 2010 foi pego pescando em uma área de proteção e recebeu do Ibama uma multa de mais de R$ 10 mil. A reação do presidente foi exonerar o servidor que lhe tinha multado e nunca pagou a multa.)
A coisa toda continua com tipos como Daniel Silveira, que simplesmente ignora o STF e desrespeita a lei sem precisar realmente prestar contas por isso. E termina no gabinete e no clã Bolsonaro, que parece achar ser imune à Justiça por o presidente ter colocado em posições decisivas do aparelho de segurança pessoas de sua confiança.
Espera-se que o caso Milton Ribeiro mude essa postura. Senão há de fato que se temer que Bolsonaro e seu movimento não reconheçam sua derrota nas eleições em outubro. Eles simplesmente não se sentem sujeitos às regras.
Há a alegação de que o bolsonarismo combate o comunismo. Qualquer pessoa com sentido político se questiona: que comunismo? Não há nenhum forte movimento comunista ou socialista no Brasil. O PT é um partido social-democrata, que não quer eliminar o capitalismo, mas restringir seus excessos negativos.
A segunda narrativa afirma que o bolsonarismo defende os valores cristãos. Aqui resta apenas a pergunta: a quais valores pregados por Cristo eles se referem? O direito ao porte de armas? O direito à tortura? O direito de ofender e ameaçar quem tem uma opinião diferente? Ou o direito de destruir o meio ambiente, ou seja, a criação de Deus?
O terceiro pilar do movimento foi, desde o início, a história de que eles estavam combatendo a corrupção. Bolsonaro e seus apologistas alegavam que não havia corrupção no seu governo. Essa era talvez a alegação mais atrevida, porque ela contradizia tão evidentemente a realidade. Já era possível se dar conta disso muito antes da prisão do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, que é investigado por suspeita de corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência.
Também não foi nenhuma surpresa Ribeiro ser um pastor evangélico e estar envolvido em negócios ilícitos do Ministério da Educação com outros pastores evangélicos. As grandes igrejas evangélicas – todas apoiadoras de Bolsonaro – são um refúgio de falsidade e manipulação. Elas apoiam Bolsonaro porque ele lhes garante privilégios como isenção de impostos, por exemplo. Não surpreende o fato de terem sido registradas dezenas de visitas dos pastores que foram presos agora ao Palácio do Planalto.
A prisão de Ribeiro é surpreendente apenas devido ao fato de a Polícia Federal (PF) não ter batido à porta de um ministro de Bolsonaro muito antes – do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, por exemplo. O general foi responsável pelo caos na crise da covid-19 e pelos escândalos de corrupção na compra de vacinas contra o coronavírus. Com Pazuello, a promessa de uma atuação técnica dos militares no governo foi de vitrine à vidraça. Ao menos sete militares que estavam no comando de cargos-chave da Saúde foram citados na CPI da Pandemia por suposto envolvimento em irregularidades.
Quando Bolsonaro fala de seu governo "livre de corrupção", ele parece sempre se esquecer de seus filhos, que cumprem tarefas dentro do governo. Os três mais velhos estavam e estão na mira do Ministério Público, e agora o mais novo também é investigado. Embora Bolsonaro enfatize que seus filhos devem responder por seus próprios erros, ele mandou trocar a Superintendência da PF no Rio de Janeiro devido às investigações contra eles.
Em agosto de 2021, o governo até decretou sigilo centenário de informações sobre o presidente e seus filhos após pedidos feitos pela imprensa. Essa medida se somava a outras ações adotadas por Bolsonaro para reduzir a transparência pública. Só faz isso um governo que tem algo a esconder, e não um que combate a corrupção.
A interferência de Bolsonaro na PF levou à renúncia do ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Até sua renúncia, os bolsonaristas consideravam Moro um herói na luta contra a corrupção. Desde então, ele passou a ser um "traidor". O bolsonarismo nunca foi sobre a luta contra a corrupção, mas um projeto nepotista de poder e de destruição do Estado. Uma pediatra bolsonarista me disse há pouco tempo que Moro tinha simplesmente muita ambição.
Com a mesma facilidade, bolsonaristas defendem o casamento com o Centrão – a personificação de corrupção, desvio de recursos públicos e, principalmente, estagnação política. Fica claro que o bolsonarismo é um movimento sem princípios. Quem proclama mudar o sistema político corrupto do Brasil, mas em seguida abraça Fernando Collor e deixa passar um monte de emendas secretas para garantir a reeleição de deputados do Centrão, trai os próprios eleitores.
Irregularidades por todos os lados
Casos de nepotismo e irregularidades pautam este governo. Um outro exemplo? O caso Queiroguinha. O filho do atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, atuou em processos destinados à liberação de recursos públicos do Ministério da Saúde. Queiroga agora pode ser investigado por suspeita de improbidade administrativa e infração à legislação eleitoral.
Há, além de tudo isso, o aumento dos gastos com o cartão corporativo do presidente às vésperas da eleição, que atingiram o valor de R$ 1,2 milhão por mês. Desde 2019, ano do início do governo Bolsonaro, as faturas mensais têm ficado cada vez mais altas. Isso parece um uso responsável do dinheiro dos contribuintes, ou já é peculato?
O bolsonarismo, cujo lema é lei e ordem, é um movimento que acredita estar acima da lei. Isso começa pelos garimpeiros e madeireiros ilegais na Amazônia, que justificam suas atividades literalmente afirmando que o presidente permitiu e, até mesmo, exigiu. (Bolsonaro mostrou a eles como se faz, quando em 2010 foi pego pescando em uma área de proteção e recebeu do Ibama uma multa de mais de R$ 10 mil. A reação do presidente foi exonerar o servidor que lhe tinha multado e nunca pagou a multa.)
A coisa toda continua com tipos como Daniel Silveira, que simplesmente ignora o STF e desrespeita a lei sem precisar realmente prestar contas por isso. E termina no gabinete e no clã Bolsonaro, que parece achar ser imune à Justiça por o presidente ter colocado em posições decisivas do aparelho de segurança pessoas de sua confiança.
Espera-se que o caso Milton Ribeiro mude essa postura. Senão há de fato que se temer que Bolsonaro e seu movimento não reconheçam sua derrota nas eleições em outubro. Eles simplesmente não se sentem sujeitos às regras.
Sobre palavras-charlatãs
Do jornalista e político Carlos Lacerda, dono de tiradas verbais desconcertantes, está na memória o debate parlamentar em que o interlocutor o provocava, dizendo que "suas palavras entram por um ouvido e logo saem por outro". A resposta, fulminante: "Impossível, o som não se propaga no vácuo".
Mas isso é reminiscência de um momento em que, à direita ou à esquerda, personalidades de temperamento e manifestações fortes como Lacerda demonstravam alguma elegância para com o discurso social. Até nas ofensas, como aquela dirigida a um deputado gaúcho: "Este centauro mitológico dos pampas, metade cavalo e a outra metade... cavalo também!".
É hoje muito evidente a crise do discurso civil nas tecnodemocracias ocidentais, mas ela é particularmente aguda no contexto brasileiro, onde palavras-charlatãs circulam sem qualquer ancoragem no real-histórico ou no senso comum e, ainda assim, produzem efeitos de comportamento.
Mas isso é reminiscência de um momento em que, à direita ou à esquerda, personalidades de temperamento e manifestações fortes como Lacerda demonstravam alguma elegância para com o discurso social. Até nas ofensas, como aquela dirigida a um deputado gaúcho: "Este centauro mitológico dos pampas, metade cavalo e a outra metade... cavalo também!".
É hoje muito evidente a crise do discurso civil nas tecnodemocracias ocidentais, mas ela é particularmente aguda no contexto brasileiro, onde palavras-charlatãs circulam sem qualquer ancoragem no real-histórico ou no senso comum e, ainda assim, produzem efeitos de comportamento.
Por exemplo, carecem de sentido muitos dos nomes das "igrejas" em expansão. Já nas redes digitais, bolhas protofascistas obtêm melhor desempenho do que as progressistas. Discursivamente, o meme abre portas ao fenômeno. Exemplo abstruso é a palavra "Ratanabá", que designa cidade inventada por um ufólogo bolsonarista, suposta "capital do mundo" localizada na Amazônia e com ouro suficiente para "tornar todos os brasileiros milionários". Transformada em meme, a palavra-charlatã adquire força viral na rede, por mais absurda que seja à cognição. E não é inócua: junto com ela são viralizadas ideias antiambientalistas e anti-indigenistas.
À consciência letrada tudo isso pode parecer remoto, mas esse é o real da boçalidade pública, que penetra na fadiga da institucionalidade cívica. Vale recordar o versículo: "Todas as palavras estão gastas (...) O que foi é o que será. O que aconteceu é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol" (Ecl. 1,9-9).
O texto bíblico abrange hoje as palavras que, destituídas de valor e de peso, embora carregadas de força emocional, apenas acentuam o vazio das vozes. Temia Nietzsche em 1882: "Mais um século de jornalismo e as palavras começarão a feder".
Não se trata, porém, de jornalismo, e sim do "vácuo" a que se referiu o polemista no debate, aquele onde o som não se propaga. Só que isso acontece agora como disfunção societária, isto é, como zeramento progressivo dos valores cívicos e morais, que fazem exigências internas e externas de obrigações coerentes por meio de falas lógicas. O "fedor" nietzscheano foi profético. Mas o mal-estar nauseante que contamina a sociabilidade nacional transparece na corrupção das palavras públicas. É hora de, em silêncio, trocá-las por ações mobilizadoras.
À consciência letrada tudo isso pode parecer remoto, mas esse é o real da boçalidade pública, que penetra na fadiga da institucionalidade cívica. Vale recordar o versículo: "Todas as palavras estão gastas (...) O que foi é o que será. O que aconteceu é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol" (Ecl. 1,9-9).
O texto bíblico abrange hoje as palavras que, destituídas de valor e de peso, embora carregadas de força emocional, apenas acentuam o vazio das vozes. Temia Nietzsche em 1882: "Mais um século de jornalismo e as palavras começarão a feder".
Não se trata, porém, de jornalismo, e sim do "vácuo" a que se referiu o polemista no debate, aquele onde o som não se propaga. Só que isso acontece agora como disfunção societária, isto é, como zeramento progressivo dos valores cívicos e morais, que fazem exigências internas e externas de obrigações coerentes por meio de falas lógicas. O "fedor" nietzscheano foi profético. Mas o mal-estar nauseante que contamina a sociabilidade nacional transparece na corrupção das palavras públicas. É hora de, em silêncio, trocá-las por ações mobilizadoras.
Sem a Amazônia, a vida não é possível
A resposta é o enunciado-síntese de Braz França, líder indígena Baré, do Alto Rio Negro: “A terra é a mãe”. A tradição, o conhecimento, a convivência do povo da floresta é proteção eficaz e fonte de sabedoria sobre a relação Homem/Natureza.
A primeira visão que tive da Amazônia foi um deslumbramento assustador. Um ser ínfimo, paralisado. O tamanho não se mede pelo sistema tradicional: envolve sentimentos. O sentimento de uma grandeza mítica; de uma sinfonia mística da biodiversidade, musicada pelo som dos ventos extraindo ritmo das árvores que crescem na direção do viver para renascer; do rumor das águas com o calor úmido que mata a sede e alimenta a Humanidade.
Pelo tamanho, parecia que estava diante do fim do mundo; pela grandeza, percebi que estava no começo do mundo. Sem Amazônia, distinto púbico, a vida não é possível.
Em agosto de 1995, o Presidente Fernando Henrique Cardoso foi a São Gabriel da Cachoeira (município do Estado do Amazonas, o único no Brasil que tem duas línguas indígenas oficiais, o Tukano e o Baniwa) para ouvir reivindicações e iniciar a execução do processo de demarcação de 10,6 milhões de hectares em terras indígenas no Alto Rio Negro.
Os processos estavam definidos no Plano de Proteção da Terras Indígenas na Amazônia Legal (PPTAL), no âmbito do Programa Piloto de Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras (PPG7) e foram realizados com ampla participação social ao lado do Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Justiça (Funai, sob a presidência de Marcio Santilli) a Federação Das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e o Instituto Socioambiental (ISA). No dia 15 de Abril de 1998, a demarcação foi formalmente concluída.
A viagem presidencial estendeu-se ao longínquo povoado de Iauaretê (mil quilômetros de Manaus, fronteira com a Colômbia), recepcionada pelo Tenente que comandava o pelotão. Ao demonstrar cabalmente a presença do Estado nos limites da Amazônia, FHC deixou a marca do seu peculiar humor ao ser fotografado lado de dois caciques de distintas etnias: “Aqui estão três chefes, ou melhor, dois e meio. Eu sou o meio”.
Na condição de Ministro do Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Amazônia Legal, sentia o pesado encargo de zelar por um bem que, solidária e universalmente, recorro ao poeta Thiago de Mello, “é um bem da vida”.
Mesmo sem lei e sem governo, a “boiada” não passará e o crime não destruirá a Amazônia, o começo de um mundo novo.
A primeira visão que tive da Amazônia foi um deslumbramento assustador. Um ser ínfimo, paralisado. O tamanho não se mede pelo sistema tradicional: envolve sentimentos. O sentimento de uma grandeza mítica; de uma sinfonia mística da biodiversidade, musicada pelo som dos ventos extraindo ritmo das árvores que crescem na direção do viver para renascer; do rumor das águas com o calor úmido que mata a sede e alimenta a Humanidade.
Pelo tamanho, parecia que estava diante do fim do mundo; pela grandeza, percebi que estava no começo do mundo. Sem Amazônia, distinto púbico, a vida não é possível.
Em agosto de 1995, o Presidente Fernando Henrique Cardoso foi a São Gabriel da Cachoeira (município do Estado do Amazonas, o único no Brasil que tem duas línguas indígenas oficiais, o Tukano e o Baniwa) para ouvir reivindicações e iniciar a execução do processo de demarcação de 10,6 milhões de hectares em terras indígenas no Alto Rio Negro.
Os processos estavam definidos no Plano de Proteção da Terras Indígenas na Amazônia Legal (PPTAL), no âmbito do Programa Piloto de Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras (PPG7) e foram realizados com ampla participação social ao lado do Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Justiça (Funai, sob a presidência de Marcio Santilli) a Federação Das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e o Instituto Socioambiental (ISA). No dia 15 de Abril de 1998, a demarcação foi formalmente concluída.
A viagem presidencial estendeu-se ao longínquo povoado de Iauaretê (mil quilômetros de Manaus, fronteira com a Colômbia), recepcionada pelo Tenente que comandava o pelotão. Ao demonstrar cabalmente a presença do Estado nos limites da Amazônia, FHC deixou a marca do seu peculiar humor ao ser fotografado lado de dois caciques de distintas etnias: “Aqui estão três chefes, ou melhor, dois e meio. Eu sou o meio”.
Na condição de Ministro do Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Amazônia Legal, sentia o pesado encargo de zelar por um bem que, solidária e universalmente, recorro ao poeta Thiago de Mello, “é um bem da vida”.
Mesmo sem lei e sem governo, a “boiada” não passará e o crime não destruirá a Amazônia, o começo de um mundo novo.
Espiões, capitalistas ou etnólogos?
Dizem que “vivemos a vida”, mas, quando a vida nos vive, as frustrações assustam porque, sendo vividos pela vida, ela pouco liga para nossas reações.
Freud chama isso de “princípio de realidade”, porque o mundo não está em sincronia conosco. Daí o desapontamento que nos faz sofrer. E, no entanto, sem isso não teríamos história. Seríamos tão vazios quanto um balão. Pois a vida só se torna interessante quando se transforma numa singularidade — em alguma coisa que tem início, meio e fim. Ao sentir a dor das nossas feridas, escapamos da eternidade do nada.
Fui profissionalmente confundido algumas vezes. A profissão de etnólogo ou antropólogo social não tem uniforme ou emblema. Há apenas o sujeito estranho o suficiente para, numa comunidade diferente da sua, ser novidade ou causar suspeita.
Na minha experiência de antropólogo, iniciada aos 20 anos num Brasil dos anos 1960, não era fácil explicar essa vocação de “estudar costumes”. Porque ser etnólogo e viver em outras sociedades não é simples para quem realmente acredita em sistemas atrasados e adiantados. Entre os chamados “índios”, você é recebido como um bisbilhoteiro inocente ou indesejável.
Foi com tais desenganos que passei os meses de agosto, setembro, outubro e novembro de 1961 com os Gaviões, no sul do Pará. No meu primeiro trabalho, acompanhado de Julio Cezar Melatti e ao lado de Roque Laraia e do falecido Marcos Rubinger, companheiros do Museu Nacional, fizemos uma jornada-odisseia do Rio a Goiânia para Porto Nacional, Carolina, Tocantinópolis, Cristalândia e Pedro Afonso, até Marabá, onde nos instalamos na única pensão da cidade, com sua latrina apavorante.
Depois, Melatti e eu fomos até Itupiranga para chegar aos nativos. Fizemos uma marcha de 20 horas (com direito a dormida e medo em rede e mordidas de mosquitos). No fim da manhã, chegamos a quatro barracos cobertos de palha que formavam a aldeia dos gaviões, uns dos últimos falantes de língua jê virgens de estudo etnológico.
Em Marabá e Itupiranga, entrei no sistema local das deferências que definem as dobras entre superiores e inferiores no Brasil. Conhecemos o prefeito e outras autoridades em Marabá, o mesmo ocorrendo em Itupiranga, onde um anfitrião gentilmente nos recebeu em sua casa, ofereceu seu endereço e, quando estávamos isolados entre os “índios”, abriu sistematicamente todas as cartas que recebemos da família e do nosso professor do Museu Nacional.
A hierarquia fazia seu papel — éramos brancos, “ricos” e donos de estranhos aparelhos, praticávamos antropologia, essa alucinada profissão de “viver com caboclos”.
Se os “índios” daquela época (como hoje) eram obstáculo à conquista da fronteira da castanha e do ouro, viramos patrões ambíguos porque jogávamos do lado errado e competíamos com os pretensos donos de castanhais, que, de fato, eram dos nativos.
Como é que esses jovens “doutores” poderiam estar interessados nesses “índios brabos” que viviam como animais? Era claro que nosso alvo era fazer prospecção de metais preciosos ou minerais radioativos. Nossa “brancura” e equipamento revelavam que, no fundo, éramos espiões capitalistas ianques tentando roubar as riquezas do nosso amado Brasil. Foi essa dúvida que justificou a violação de nossa correspondência.
Vistos como loucos e tratados como suspeitos e espiões em Marabá, fomos recebidos na aldeia do Cocal como visitantes exagerados porque lá ficamos por meses, vivendo a mesma vida dos nativos e aturando sua curiosidade agressiva. Ademais, não eramos catequistas.
Fomos praticamente obrigados a dividir nossas provisões e aprendemos que aquela humanidade não se baseava em guardar, mas no distribuir e no dar para receber.
Passamos de doutores ricos, de espiões em busca de metais radioativos, a xeretas e sovinas...
Éramos multiclassificáveis (ou desclassificados), o que equivale a não ser em quase todos os lugares deste mundo. E define o antropólogo como um espião que, corre a lenda, no fundo é um bom sujeito.
Freud chama isso de “princípio de realidade”, porque o mundo não está em sincronia conosco. Daí o desapontamento que nos faz sofrer. E, no entanto, sem isso não teríamos história. Seríamos tão vazios quanto um balão. Pois a vida só se torna interessante quando se transforma numa singularidade — em alguma coisa que tem início, meio e fim. Ao sentir a dor das nossas feridas, escapamos da eternidade do nada.
Fui profissionalmente confundido algumas vezes. A profissão de etnólogo ou antropólogo social não tem uniforme ou emblema. Há apenas o sujeito estranho o suficiente para, numa comunidade diferente da sua, ser novidade ou causar suspeita.
Na minha experiência de antropólogo, iniciada aos 20 anos num Brasil dos anos 1960, não era fácil explicar essa vocação de “estudar costumes”. Porque ser etnólogo e viver em outras sociedades não é simples para quem realmente acredita em sistemas atrasados e adiantados. Entre os chamados “índios”, você é recebido como um bisbilhoteiro inocente ou indesejável.
Foi com tais desenganos que passei os meses de agosto, setembro, outubro e novembro de 1961 com os Gaviões, no sul do Pará. No meu primeiro trabalho, acompanhado de Julio Cezar Melatti e ao lado de Roque Laraia e do falecido Marcos Rubinger, companheiros do Museu Nacional, fizemos uma jornada-odisseia do Rio a Goiânia para Porto Nacional, Carolina, Tocantinópolis, Cristalândia e Pedro Afonso, até Marabá, onde nos instalamos na única pensão da cidade, com sua latrina apavorante.
Depois, Melatti e eu fomos até Itupiranga para chegar aos nativos. Fizemos uma marcha de 20 horas (com direito a dormida e medo em rede e mordidas de mosquitos). No fim da manhã, chegamos a quatro barracos cobertos de palha que formavam a aldeia dos gaviões, uns dos últimos falantes de língua jê virgens de estudo etnológico.
Em Marabá e Itupiranga, entrei no sistema local das deferências que definem as dobras entre superiores e inferiores no Brasil. Conhecemos o prefeito e outras autoridades em Marabá, o mesmo ocorrendo em Itupiranga, onde um anfitrião gentilmente nos recebeu em sua casa, ofereceu seu endereço e, quando estávamos isolados entre os “índios”, abriu sistematicamente todas as cartas que recebemos da família e do nosso professor do Museu Nacional.
A hierarquia fazia seu papel — éramos brancos, “ricos” e donos de estranhos aparelhos, praticávamos antropologia, essa alucinada profissão de “viver com caboclos”.
Se os “índios” daquela época (como hoje) eram obstáculo à conquista da fronteira da castanha e do ouro, viramos patrões ambíguos porque jogávamos do lado errado e competíamos com os pretensos donos de castanhais, que, de fato, eram dos nativos.
Como é que esses jovens “doutores” poderiam estar interessados nesses “índios brabos” que viviam como animais? Era claro que nosso alvo era fazer prospecção de metais preciosos ou minerais radioativos. Nossa “brancura” e equipamento revelavam que, no fundo, éramos espiões capitalistas ianques tentando roubar as riquezas do nosso amado Brasil. Foi essa dúvida que justificou a violação de nossa correspondência.
Vistos como loucos e tratados como suspeitos e espiões em Marabá, fomos recebidos na aldeia do Cocal como visitantes exagerados porque lá ficamos por meses, vivendo a mesma vida dos nativos e aturando sua curiosidade agressiva. Ademais, não eramos catequistas.
Fomos praticamente obrigados a dividir nossas provisões e aprendemos que aquela humanidade não se baseava em guardar, mas no distribuir e no dar para receber.
Passamos de doutores ricos, de espiões em busca de metais radioativos, a xeretas e sovinas...
Éramos multiclassificáveis (ou desclassificados), o que equivale a não ser em quase todos os lugares deste mundo. E define o antropólogo como um espião que, corre a lenda, no fundo é um bom sujeito.
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