segunda-feira, 27 de junho de 2022

Espiões, capitalistas ou etnólogos?

Dizem que “vivemos a vida”, mas, quando a vida nos vive, as frustrações assustam porque, sendo vividos pela vida, ela pouco liga para nossas reações.

Freud chama isso de “princípio de realidade”, porque o mundo não está em sincronia conosco. Daí o desapontamento que nos faz sofrer. E, no entanto, sem isso não teríamos história. Seríamos tão vazios quanto um balão. Pois a vida só se torna interessante quando se transforma numa singularidade — em alguma coisa que tem início, meio e fim. Ao sentir a dor das nossas feridas, escapamos da eternidade do nada.

Fui profissionalmente confundido algumas vezes. A profissão de etnólogo ou antropólogo social não tem uniforme ou emblema. Há apenas o sujeito estranho o suficiente para, numa comunidade diferente da sua, ser novidade ou causar suspeita.


Na minha experiência de antropólogo, iniciada aos 20 anos num Brasil dos anos 1960, não era fácil explicar essa vocação de “estudar costumes”. Porque ser etnólogo e viver em outras sociedades não é simples para quem realmente acredita em sistemas atrasados e adiantados. Entre os chamados “índios”, você é recebido como um bisbilhoteiro inocente ou indesejável.

Foi com tais desenganos que passei os meses de agosto, setembro, outubro e novembro de 1961 com os Gaviões, no sul do Pará. No meu primeiro trabalho, acompanhado de Julio Cezar Melatti e ao lado de Roque Laraia e do falecido Marcos Rubinger, companheiros do Museu Nacional, fizemos uma jornada-odisseia do Rio a Goiânia para Porto Nacional, Carolina, Tocantinópolis, Cristalândia e Pedro Afonso, até Marabá, onde nos instalamos na única pensão da cidade, com sua latrina apavorante.

Depois, Melatti e eu fomos até Itupiranga para chegar aos nativos. Fizemos uma marcha de 20 horas (com direito a dormida e medo em rede e mordidas de mosquitos). No fim da manhã, chegamos a quatro barracos cobertos de palha que formavam a aldeia dos gaviões, uns dos últimos falantes de língua jê virgens de estudo etnológico.

Em Marabá e Itupiranga, entrei no sistema local das deferências que definem as dobras entre superiores e inferiores no Brasil. Conhecemos o prefeito e outras autoridades em Marabá, o mesmo ocorrendo em Itupiranga, onde um anfitrião gentilmente nos recebeu em sua casa, ofereceu seu endereço e, quando estávamos isolados entre os “índios”, abriu sistematicamente todas as cartas que recebemos da família e do nosso professor do Museu Nacional.

A hierarquia fazia seu papel — éramos brancos, “ricos” e donos de estranhos aparelhos, praticávamos antropologia, essa alucinada profissão de “viver com caboclos”.

Se os “índios” daquela época (como hoje) eram obstáculo à conquista da fronteira da castanha e do ouro, viramos patrões ambíguos porque jogávamos do lado errado e competíamos com os pretensos donos de castanhais, que, de fato, eram dos nativos.

Como é que esses jovens “doutores” poderiam estar interessados nesses “índios brabos” que viviam como animais? Era claro que nosso alvo era fazer prospecção de metais preciosos ou minerais radioativos. Nossa “brancura” e equipamento revelavam que, no fundo, éramos espiões capitalistas ianques tentando roubar as riquezas do nosso amado Brasil. Foi essa dúvida que justificou a violação de nossa correspondência.

Vistos como loucos e tratados como suspeitos e espiões em Marabá, fomos recebidos na aldeia do Cocal como visitantes exagerados porque lá ficamos por meses, vivendo a mesma vida dos nativos e aturando sua curiosidade agressiva. Ademais, não eramos catequistas.

Fomos praticamente obrigados a dividir nossas provisões e aprendemos que aquela humanidade não se baseava em guardar, mas no distribuir e no dar para receber.

Passamos de doutores ricos, de espiões em busca de metais radioativos, a xeretas e sovinas...

Éramos multiclassificáveis (ou desclassificados), o que equivale a não ser em quase todos os lugares deste mundo. E define o antropólogo como um espião que, corre a lenda, no fundo é um bom sujeito.

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