sexta-feira, 28 de julho de 2023

Pensamento do Dia

Vasco Gargalo 

 

Descobrimento

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.
Mário de Andrade, "Antologia Poética"

Brasil, país das desigualdades

Já não somos campeões mundiais de futebol. Mas, em outros temas, somos imbatíveis e, ao que tudo indica, continuaremos assim sendo: nas desigualdades sociais; na injustiça tributária (pobres pagam mais impostos do que os ricos); nos privilégios concedidos a algumas verdadeiras castas de agentes públicos (os parlamentares, os juízes, os generais); na sonegação de impostos pelos ricos; e na exclusão do povo da democracia.

Recentemente, foi aprovada na Câmara dos Deputados uma reforma tributária, que dizem ser a primeira parte da reforma do governo Lula. Essa reforma objetivou apenas tornar o sistema mais eficiente e transparente, mas não mais justo e igualitário. Facilitará apenas o processo de cobrança de impostos indiretos, incidente sobre o consumo e na produção de bens e serviços.

No entanto, a criação do IVA, uma inovação necessária, deve ser comemorada com cautela, vez que ela contempla, sobretudo, os interesses de empresários. Além disso, a reforma criará três alíquotas: uma geral, uma reduzida e outra zero, destinada a itens como medicamentos e produtos da cesta básica.


Infelizmente, esta reforma em vias de aprovação pelo Congresso – vai ser agora discutida pelo Senado Federal – não enfrenta um dos maiores problemas de tributação que é a sonegação de impostos pelos mais ricos. De acordo com o placar Sonegômetro, criado pelo Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), o prejuízo do Brasil com a sonegação fiscal, em 2022, ultrapassou os R$ 626,8 bilhões. Os estudos indicam que a arrecadação brasileira poderia se expandir em 23% se a evasão tributária fosse interrompida no País.

Esta evasão poderia ser facilmente resolvida, caso os empresários e negociantes em geral fossem taxados de acordo com o padrão de vida que ostentam. É injustificável que um cidadão que reside em mansão, com vários carros na garagem, possa continuar declarando um pró-labore de um ou dois salários mínimos por mês para não pagar nada de imposto de renda. Enquanto isso, um empregado público ou privado com padrão semelhante paga mais de cem mil reais de imposto de renda por ano, já retido na fonte.

Por enquanto os ricos continuam ilesos. A criação de novas alíquotas do Imposto de Renda, a retomada da taxação sobre lucros e dividendos, a criação de um imposto sobre as grandes fortunas e uma maior taxação sobre o patrimônio foram convenientemente deixados para um segundo momento. É aí que se aloja, desde longo tempo, a grande injustiça tributária que se pratica no País.

Sem desconhecer algumas sinalizações positivas da atual reforma, a exemplo da isenção de impostos sobre os produtos da cesta básica, cujo rol de produtos ainda será definido, bem como o chamado cashback (devolução de impostos para os mais pobres), cujo mecanismo também ainda não está definido, ela não contemplou nenhum item que afete o bolso dos mais favorecidos.

O imposto sobre exportações, por exemplo, continuará a não ser cobrado. Essa medida é positiva para a sociedade no caso dos produtos industrializados, cuja elaboração gera empregos e renda internamente. Mas é injusta para atividades que exportam as chamadas commodities (matérias-primas), a exemplo dos minérios e dos produtos agropecuários, que geram poucos empregos e quase nenhuma renda para o País. Mas esses setores jamais serão taxados, vez que contam com poderosas bancadas parlamentares.

A votação expressiva, que essa reforma obteve na Câmara dos Deputados, foi positiva no sentido de demonstrar que o ex-presidente, o inelegível, não tem a liderança dos partidos de oposição como ele pensava.

Esqueceu-se ele, ou entende pouco da realidade, que o grupo de apoio ao seu desgoverno manteve-se ao seu lado por interesse, vez que são majoritariamente fisiológicos. Agora que a “chave do cofre” mudou de mão, grande parte dos seus integrantes já debandou para o lado do atual governo.

Como políticos fisiológicos, não sabem atuar na oposição. Querem sempre estar ao lado de quem tem condições de favorecê-los: liberação de emendas, indicação de apadrinhados para cargos, participação nos orçamentos de órgãos públicos etc.

A segunda etapa será, sem dúvida, bem mais difícil de ser aprovada, pois deverá contemplar alterações no imposto direto, que incide sobre o patrimônio e a renda (imposto de renda, heranças, grandes fortunas e patrimônio). Esta sim deverá incluir proposta para taxar, com mais ênfase, o andar de cima – os mais favorecidos. Por isso, não deverá ser tão celebrada como a atual, pois a maioria dos atuais parlamentares são ricos ou prepostos de ricos.

Faltou cuidado


Se o Brasil tivesse sido cuidado com mais cuidado, não se chegaria a esse monstro a que chegamos por quatro anos
Fernanda Montenegro

O bolsonarismo era apenas uma bolha de sabão

O chamado bolsonarismo não passou de uma miragem que está murchando como uma bolha de sabão. O Brasil precisa varrê-lo do mapa político porque foi mais uma farsa do que a criação de uma nova extrema-direita.

Acreditar que o capitão reformado Jair Bolsonaro, que passou por oito partidos no Congresso e não conseguiu aprovar uma única lei ao longo de sua carreira, pudesse aparecer como um novo político capaz de deixar sua marca é quase um escárnio.

O bolsonarismo deve desaparecer do mapa político porque considerar que Bolsonaro deveria ser visto como o criador de uma nova corrente política à la Mussolini, Hitler, Lenin ou Mao, seria patético.

Bolsonaro não inventou nada de novo. Simplesmente uniu na mesma lixeira o pior e o mais baixo da política, mas sem nenhuma originalidade, nem para o mal. O sociólogo Zé Celso, sob o título “A fuga do verme”, afirma no jornal Folha de São Paulo que “Bolsonaro sobrevive como uma comunidade noturna onde não há necessidade de abrir os olhos nem a consciência”. E acrescenta: “O que os analistas políticos chamam de “bolsonarismo” é apenas um conglomerado de clichês de extrema-direita. Nada mais”.

Agora, o capitão sem história que se alimentava da ilusão de que os militares iriam acompanhá-lo em seu desejo de liderar uma nova ditadura, carregando-os de privilégios tão bizarros quanto toneladas de Viagra e milhares de próteses penianas, não é mais nada. Ele também não pode se candidatar novamente nos próximos oito anos.

Diante desse isolamento do ex-presidente extremista que certamente não entrará para a história como um novo Napoleão, redobra a importância do novo governo de centro-esquerda de Lula, que tenta dialogar até mesmo com a extrema-direita não golpista.

Fica cada vez mais claro que Lula não poderá mais governar apenas com a esquerda e talvez nem mesmo com o centro. Vai precisar, como tenta, abrir um diálogo com todas as forças políticas, excluindo apenas a direita nazifascista.

Quem hoje critica Lula, a começar pelo seu partido, o PT, não entende que o astuto sindicalista percebeu que a velha esquerda sozinha dificilmente terá forças para governar um país tão complexo como o Brasil – um continente inteiro com mil facetas e no qual a pior extrema direita tenta se impor.

Se Lula, com efeito, está conseguindo governar e demolir o bolsonarismo, é porque, pela primeira vez em seu terceiro mandato, criou um governo não de esquerda pura, mas com elementos do centro e até da direita dita “civilizada”, mais econômica do que ideológica.

O Brasil voltará a ocupar o lugar que hoje lhe cabe no mundo devido ao seu tamanho e suas indiscutíveis riquezas, se todas as correntes políticas que não sejam fascistas ou nostálgicas de golpes militares, se unirem em um programa comum contra a injustiça, o racismo e as tentações extremistas de minorias que se alimentam mais de barulho do que de nozes.

Foi um período negro, fora da curva o dos últimos quatro anos, pelo que urge regressar aos trilhos da normalidade democrática capaz de dialogar sem se envergonhar e ser respeitado pelos países ditos “normais”, onde nem a esquerda quer dizer comunismo nem a direita nazismo ou fascismo.

Tudo isso com mais razão ainda porque o mundo, como um todo, está entrando em um momento de alta tensão transformadora, cheio de incógnitas e ansiedades que exigem não apenas maior responsabilidade global, mas também um grupo de novos estrategistas democráticos e esclarecidos, e de estadistas capazes de dar respostas democráticas aos perigos reais que nos espreitam.

Diante dessa realidade e da importância do Brasil e do continente americano nesse momento de quebra de paradigmas, continuar falando do bolsonarismo como algo novo e importante nascido na política, e mais global, soaria no mínimo infantil. Não, Bolsonaro nem é Trump. É um extremista sem originalidade que até os militares mais próximos a ele se recusaram a seguir, que acabaram por abandoná-lo e hoje dialogam abertamente com Lula.