sábado, 16 de março de 2019

Brasil da alegria


O colapso da moderação

O STF é a última cidadela de um establishment político-institucional que, embora moralmente arruinado, luta para sobreviver – mais que isso, manter seu status quo e as regras que o sustentam.

Esse establishment, sem a exceção de nenhum dos poderes, foi gradualmente desmascarado pela operação Lava Jato, que levou à cadeia figurões da política e do meio empresarial. Os maiorais.

Expôs as relações incestuosas entre o público e o privado e a transgressão contínua, quase rotineira, a uma cláusula pétrea constitucional segundo a qual “todos são iguais perante a lei”.

Millôr Fernandes, décadas atrás, dizia que alguns são mais iguais. 

Atualizando-o, pode-se dizer que lutam – e o STF é a trincheira final – para que essa igualdade desigual seja preservada.

A Lava Jato expôs as vísceras desse sistema e, ao fazê-lo, despertou o ânimo da população, que se insurgiu em sucessivas manifestações de rua – as maiores da história – denunciando sua índole corrupta e subversiva, clamando por sua remoção.

O impeachment de Dilma Roussef foi a consequência inicial e a eleição de Bolsonaro a continuidade desse processo (que não cessou). A população, em sua maioria, viu nele o candidato que melhor expressava o sentimento anti-establishment.


A hostilidade da mídia e do coronelato cultural a seu nome, que precede a posse e acompanha cada um de seus atos, apenas os inclui, na percepção do público, entre os que resistem às mudanças, merecedores, eles sim, do estigmatizado rótulo de reacionários.

Nada simboliza mais essa degradação institucional que o encarceramento, a partir de juízes de primeira instância, de um ex-presidente da República, Lula, ao lado de ex-governadores (quatro do Rio de Janeiro e um do Paraná), ex-deputados (inclusive um ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha), ex-senadores, ex-ministros.

Ao lado deles, os donos das maiores empreiteiras do país, algumas ostentando o rótulo de multinacionais, com tentáculos estendidos a outras nações e continentes. E a fila não acabou.

Aguardam nela, em face dos mesmos delitos, outros figurões, entre os quais, dois ex-presidentes – Dilma Roussef e Michel Temer -, parlamentares com mandato, banqueiros e… juízes.

O ex-governador Sérgio Cabral, condenado (até aqui) a mais de um século de cadeia (o que o obrigará a retornar a Bangu na próxima encarnação), resolveu abrir o bico e chegar ao pessoal da toga.

No Senado, prepara-se uma CPI para investigar o Judiciário e acaba de ser impetrado mais um pedido de impeachment contra Gilmar Mendes (há outros, contra Dias Toffolli, Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski). No Congresso, há ainda um pacote anticrime, do ministro Sérgio Moro, que, entre outras coisas, fortalece o combate à corrupção nos altos escalões do Estado.

Diante disso, não surpreende a decisão do STF de remeter ao TSE os crimes de corrupção que possam, de algum modo, apresentar um viés eleitoral. Nocaute à Lava Jato: quase todos os enquadrados por ela alegam caixa dois para justificar propinas e superfaturamento de obras. Reduz-se assim (ou mesmo elimina-se) a fila dos réus e viabiliza-se a liberação dos já encarcerados, a começar por Lula.

Achou ruim? Cuidado: o presidente do STF, Dias Toffolli, anunciou que irá punir os que, inconformados, protestem contra esses atos. Em gesto inédito (quase tudo neste momento é inédito), o STF julgará em causa própria os que achar que o ofenderam.

Eis que o autointitulado Poder Moderador da República perdeu de vez a moderação.
Ruy Fabiano

País em guerra

No país dos Pinóquios, onde a mentira se torna oficial e a sinceridade se esconde envergonhada, as pessoas devem tomar cuidado, ou haverá um incrível duelo de narizes afiados e mortais
Lya Luft, "Em outras palavras"

Sangue latino

Minha vida, meus mortos
Meus caminhos tortos


México, Argentina, Brasil, Equador. Separadamente, a Venezuela. A América Latina atravessa momento econômico — e político — bastante complicado. O risco sistêmico na região é, sem exageros, o mais elevado desde os anos 80. Não digo com isso que estamos prestes a testemunhar quebradeiras em série como naquela época, mas que a elevada vulnerabilidade de diferentes países resultante de caminhos tortos perseguidos no passado e no presente assusta.

Comecemos pelo México, onde a situação é fascinante e dramática em igual medida. Andrés Manuel López Obrador, ou AMLO, como é conhecido, anda colocando em prática vários truques do populismo de esquerda que sempre foi característico da região em diferentes épocas. Transformou o palácio presidencial em museu e foi morar em um apartamento modesto. Vendeu o avião presidencial e viaja de econômica em voos comerciais. Circula em automóvel modesto apenas com seu motorista e um guarda-costas. De segunda a sexta-feira se apresenta, das 7 até às 8 horas da manhã, para entrevistas coletivas com a imprensa, durante as quais estabelece o assunto da conversa e fala de forma simples para o povo que ele diz representar — não tuíta muito. O povo, por enquanto, está gostando: AMLO foi eleito com 54% dos votos, mas as últimas pesquisas de opinião mostram que ele tem índice de 80% de aprovação. Ou seja, quem não votou em AMLO está satisfeito com o que tem visto. Enquanto isso, o mercado anda preocupado. A Pemex, empresa estatal de petróleo, foi recentemente rebaixada pelas principais agências de risco internacionais em razão das políticas de AMLO para a empresa e para o setor. O presidente insiste em construir refinarias que muitos julgam custosas e ineficientes e prometeu durante a campanha desfazer as reformas de seu antecessor responsáveis pela abertura do setor de óleo e gás. A Pemex é, hoje, a empresa de petróleo mais endividada do planeta, posição já ocupada pela Petrobras. Após o rebaixamento da nota de risco da Pemex e dos alertas das agências sobre a nota de risco do México, AMLO decidiu atacar as mensageiras em vez de reverter as políticas, em clara atitude populista.

Em clara atitude populista, AMLO também prometeu expandir programas de assistência social cujos retornos são baixos e cujos custos para o Orçamento são elevados, contrariando parte de sua equipe econômica. Caso leve esses planos adiante, porá em risco a situação fiscal do México, que poderá vir a ser agravada por rebaixamentos adicionais da Pemex ou da nota soberana. Caminhos tortos.

A Argentina assumiu os pecados de Cristina e tenta desesperadamente correr contra o tempo, a recessão, a inflação. O programa de reformas apoiado pelo FMI está sendo implantado, mas até agora tem tido pouco efeito na contenção das altas de preços — a inflação anualizada na Argentina já supera os 30%. Embora o pacote do FMI seja suficiente para cobrir as necessidades de financiamento externo do país em 2019, o mesmo não pode ser dito de 2020. As eleições de outubro permanecem encobertas por incertezas, embora o campo kirchnerista do peronismo ainda esteja desestruturado, o que tem ajudado Macri a manter seu nível de aprovação na faixa dos 40%, apesar da recessão e das pressões inflacionárias. O que importa, por ora, é não estar vencido.

O Brasil, o que dizer do Brasil e de seu ciclo deplorável de notícias envolvendo o presidente da República e seu círculo íntimo?

Como acreditar que exista milagre que separe a política do Congresso da política dos escândalos em série que circundam a Presidência? Bolsonaro, alvo de críticas tanto do campo progressista quanto do campo conservador — não do campo ultraconservador —, está cada vez com mais cara de que jurou mentiras e de que seguirá sozinho.

O Brasil que rompe tratados e trai os ritos. Que quebra a lança e lança no espaço. Sempre o mesmo grito, sempre o mesmo desabafo.

Monica De Bolle

Paisagem brasileira (de outrora)

Baia de Guanabara (séc. XIX), Insley Pacheco (1830 – 1912)

Deseja-se apagar a Lava Jato para acender o forno

Ao longo dos seus cinco anos de existência, a Lava Jato provocou diferentes sensações. Quando realizou suas primeiras prisões, a operação causou um estranhamento no país. Quando obteve as primeiras delações, ateou um receio em Brasília. Quando começou a encarcerar empreiteiros, produziu pânico no PIB e nos subterrâneos do Poder. Quando obteve condenações em série de figurões da oligarquia político-empresarial, a Lava Jato acendeu uma euforia nas ruas.

O impeachment de Dilma e a prisão de Lula deram a Sergio Moro e aos rapazes da força-tarefa de Curitiba uma sensação de invulnerabilidade. Ferida, a aliança que saqueou os cofres públicos impunemente desde a chegada das caravelas passou a se guiar por uma lei que, em Brasília, é conhecida como Lei de Murici, que estabelece no seu artigo primeiro: "Cada um cuida de si".



Desde então, os alvos da Lava Jato e seus aliados jogavam com o tempo. Esperavam pelo dia em que a faxina, por rotineira, virasse um assunto chato. Os adversários da Lava Jato avaliam que a hora do troco chegou. Ironicamente, um tropeço da força-tarefa de Curitiba anima a reação.

A ideia de abrir uma fundação privada anticorrupção com R$ 2,5 bilhões provenientes de uma punição aplicada pelo governo dos Estados Unidos contra a Petrobras revelou-se um disparo de míssil contra o pé dos 13 procuradores que celebraram o acordo. Na administração pública, nada do que precisa ser muito explicado cai bem.

Contestado pela própria procuradora-geral da República Raquel Dodge, o acordo sobre a fundação foi suspenso pelo ministro Alexandre Moraes, do Supremo. Foi a segunda paulada na Lava Jato em menos de 24 horas. Na véspera, o plenário da Suprema Corte havia transformado a Justiça Eleitoral no novo foro privilegiado dos políticos. Fez isso ao decidir, por 6 a 5, que processos em que a ladroagem estiver misturada ao caixa dois serão julgados pelo ramo eleitoral do Judiciário, onde vigora, em matéria penal, a impunidade.

Os corruptos esfregam as mãos, enquanto tramam contra o pacote anticorrupção de Sergio Moro. Está em curso um movimento para apagar a Lava Jato e acender o forno que assa pizzas.

Sem saída


O homem nasceu livre e por todos os lados se encontra acorrentado
Jean-Jacques Rousseau

Não podemos esperar

Começou em frente ao parlamento sueco em 27 de agosto, um dia de aula como outro qualquer. Greta sentou-se com o cartaz e os panfletos que havia feito em sua casa. Foi a primeira greve escolar. Desde então, as sextas-feiras deixaram de ser dias letivos normais. Os outros, muitos de nós, pegaram o bastão na Austrália, Alemanha, Bélgica e, logo, em todo o mundo. Sabíamos que havia uma crise climática. Não apenas porque as florestas da Suécia ou dos Estados Unidos queimaram, ou por causa das bruscas mudanças entre inundações e secas na Alemanha e na Austrália. Sabíamos disso porque tudo o que líamos e víamos gritava que algo estava muito errado.
Voluntários limpam a baía de lixo de Lampung em Sumatra 
Aquele primeiro dia de se recusar a ir à escola foi um dia de solidão, mas desde então o movimento dos grevistas pelo clima varreu o planeta. Hoje, jovens de mais de 90 países deixam suas salas de aula para exigir medidas em face da maior ameaça que enfrentamos. Hoje fazemos greve de Londres a Kampala, de Varsóvia a Bangcoc, porque os políticos nos decepcionaram. Presenciamos anos de negociações, acordos lamentáveis sobre a mudança climática, empresas de combustíveis fósseis com carta branca para abrir e perfurar nossas terras e queimar nosso futuro em benefício próprio. Vimos que as fraturas hídricas, a perfuração em águas profundas e as extrações de carvão continuam. Os políticos sabem a verdade sobre a mudança climática e entregaram voluntariamente o nosso futuro a especuladores cuja ânsia por dinheiro rápido põe em perigo a nossa existência.

O Painel Intergovernamental da ONU sobre a Mudança Climática do ano passado deixou muito claro os enormes perigos caso o aquecimento global ultrapasse 1,5ºC. Se quisermos evitar isso, as emissões devem diminuir a toda velocidade, para que, quando tivermos entre 20 e 30 anos, possamos viver em um mundo transformado. Se aqueles que agora ocupam o poder não agirem, será a nossa geração que sofrerá as consequências. Aqueles de nós que têm menos de 20 anos hoje talvez estejam vivos em 2080, e teremos de enfrentar um mundo que aqueceu 4 graus. Os efeitos desse aquecimento seriam desastrosos.

Não se trata apenas de reduzir emissões, mas de justiça; o sistema atual não funciona, porque só beneficia os ricos. O luxo desfrutado por alguns poucos no norte do planeta depende do sofrimento das pessoas que vivem no sul. Vimos políticos hesitarem e se dedicarem a jogos políticos em vez de reconhecerem que as soluções de que necessitamos não podem ser encontradas no sistema atual. Não querem encarar os fatos: para tentar fazer algo diante da crise climática precisamos mudar o sistema.

Este movimento era inevitável, não tínhamos outra escolha. A imensa maioria dos que fazem greve hoje pelo clima ainda não pode votar. Apesar de ver a crise climática, apesar de conhecer a realidade, não estamos autorizados a escolher quem tomará as decisões a respeito. Faça a você mesmo esta pergunta: também não faria greve se pensasse que poderia ajudá-lo a garantir o seu futuro? É por isso que hoje vamos abandonar as salas de aula, esquecer as lições e sair às ruas para gritar “Basta!”. Os adultos não param de dizer: “Temos a obrigação de dar esperança aos jovens”. Mas nós não queremos a esperança deles. Não queremos que tenham esperança. Queremos que sintam pânico e façam algo.

Acreditamos que os adultos tomariam as decisões apropriadas para garantir o futuro da próxima geração. É claro que não temos todas as respostas. Mas o que sabemos é que precisamos manter os combustíveis fósseis no subsolo, eliminar gradualmente os subsídios à produção de energias sujas, investir seriamente nas renováveis e começar a fazer perguntas desconfortáveis sobre como estruturamos nossas economias, quem sai ganhando e quem sai perdendo.

É muito importante que façamos tudo isso já. As mudanças necessárias exigem que todo mundo esteja consciente de que isto é uma crise e se comprometa a fazer transformações radicais. Acreditamos firmemente que podemos salvar o planeta, mas temos de agir agora.

Não há zonas cinzentas quando a sobrevivência está em jogo. Não existe mal menor. É por isso que hoje os jovens fazem greve em todos os cantos do mundo, e é por isso que pedimos aos mais velhos que se juntem a nós nas ruas. Quando a nossa casa está em chamas, não podemos deixar que sejam as crianças que as apaguem; precisamos que os adultos se responsabilizem por terem acendido a faísca. Assim, por uma vez, peçamos aos adultos que sigam nosso exemplo: não podemos continuar esperando.

Mourão não énem grilo falante, nem ventríloquo de Bolsonaro

Desde que Jair Bolsonaro reproduziu em sua conta no Twitter um vídeo obsceno, insistiu-se muito na tese de que o presidente o fez de caso pensado. Estaria, com tal iniciativa, tentando desviar a atenção a respeito de notícias ruins lá dos lados do governo, como o PIB de 1,1% em 2018 (resultado sobre o qual ele não tem responsabilidade), aumento da taxa de desemprego, violência que não para de crescer, incapacidade de formar uma base no Congresso que lhe dê sustentabilidade e garantia de aprovação de reformas na economia. Por fim, o vídeo seria também uma resposta às críticas que recebeu de blocos carnavalescos Brasil afora.


Se foi uma estratégia de comunicação do presidente, foi uma estratégia ruim. A despeito de alguns seguidores de seita, que acham tudo o que Bolsonaro faz lindo e maravilhoso, o presidente abriu o flanco para, na mesma rede social, apanhar como nunca.

Sabe-se que houve reação do núcleo militar do governo. Logo, o Palácio do Planalto, ou seja, o próprio governo do qual Bolsonaro é o chefe, teve de divulgar uma nota para dizer que o presidente não criticara o carnaval como um todo, mas alguns blocos que se excederam em público.


Depois, o presidente fez um discurso de improviso numa cerimônia da Marinha e disse que democracia e liberdade só existem se as Forças Armadas assim o quiserem. Choveram críticas. Afinal, democracia e liberdade não são uma dádiva das Forças Armadas.

São conquistas da sociedade, da qual Aeronáutica, Exército e Marinha fazem parte e pelas quais, pela Constituição, jurada por Bolsonaro, essas mesmas Forças têm o dever de zelar.

De novo, mais explicações. Primeiro, por parte do vice-presidente, general Hamilton Mourão, que prontamente disse que as palavras de seu chefe haviam sido mal interpretadas, que Bolsonaro não quis dizer o que estavam dizendo que ele dissera.

Depois, numa transmissão pelo Facebook, com os generais Augusto Heleno (ministro do GSI) e Rêgo Barros (porta-voz) ao lado, Bolsonaro deu outras explicações. Diretamente a Heleno, perguntou: “General, o senhor achou o meu pronunciamento polêmico?” Para Heleno responder que não e discorrer sobre o papel constitucional das Forças Armadas.

Do ponto de vista da comunicação, um desastre atrás do outro. Em primeiro lugar, porque os dois casos exigiram explicações posteriores. O do vídeo, por uma nota oficial do Palácio do Planalto; o da liberdade e da democracia, com dois generais ao lado. Sendo que antes o vice já se encarregara de dar também a interpretação daquilo que Bolsonaro quisera dizer. Como escreveu o jornalista Eumano Silva, o general Mourão prometeu que não seria um vice decorativo. Não é mesmo. Tornou-se um vice corretivo.

De acordo com levantamento feito pelo Estado, desde a posse, em janeiro, o vice Mourão já divergiu ou teve de explicar falas de Bolsonaro por sete vezes.

Vê-se que, do ponto de vista da comunicação, nada do que foi feito funcionou. Se era para desviar a atenção das notícias ruins, não desviou. Produziu novas.

Quanto às esperadas reformas, como a da Previdência, os atos e as palavras do presidente não as ajudaram em nada. Pelo contrário. Deram mais munição para os partidos de oposição que, embora sejam minoria, têm acuado o governo em todas as sessões, sejam do Senado, sejam da Câmara. A ponto de o deputado Marco Feliciano (Podemos-SP) dirigir, também pelas redes sociais, ao presidente e aos filhos Carlos, vereador no Rio, e Eduardo, deputado federal, um alerta quanto à comunicação do governo. “A comunicação está péssima. Ou vocês criam um grupo político e intelectualmente preparado ou todos os dias irão sangrar.”