sábado, 10 de fevereiro de 2024
O banimento dos idosos
Estudo recente, da Universidade Federal de Minas Gerais, mostrou que há no país quase 24 mil idosos vivendo nas ruas, quase 10% de todas as pessoas que estão nessa condição. O número delas, entre nós, aumentou sete vezes nos últimos dez anos. Estamos, portanto, em face de uma tendência na demografia etária dos brasileiros.
É compreensível que seja difícil explicar essa anomalia social. Em parte porque a busca das causas prováveis tende a ser a das mais simples, mais óbvias ainda que menos prováveis, não as invisíveis.
Chama atenção que diferentes estudos sobre moradores de rua tendam a identificar como causa de sua situação de abandono os chamados defeitos de caráter, como alcoolismo e droga. Ou seja, nessa perspectiva, a culpa é da vítima.
O que, na verdade, nada explica. É muito mais fácil culpar o frágil pelos problemas sociais que protagoniza do que buscar causas, e não culpas, na própria estrutura social e em suas disfunções, num país em que as irracionalidades da economia se expressam como anomia social.
As sociedades são relacionais, tramas de causas recíprocas, tanto no que dá certo quanto no que dá errado, tanto em relação ao rico quanto em relação ao pobre. No caso de São Paulo, na chamada cracolândia, a incidência da marginalização decorrente do uso de drogas sugere o protagonismo da classe média. Observei isso na cracolândia da rua Helvétia, há alguns anos.
Caso em que se pode levantar a hipótese legítima de que o viciado desses ajuntamentos é alguém que busca a sociabilidade coletiva da rua porque é ela não excludente.
Ela se dá fora dos mecanismos de controle social dos diferentes grupos sociais de pertencimento e de referência. Como a família e a vizinhança e outros grupos de orientação social comunitária e afetiva.
Pessoas repelidas e reprimidas pela sociabilidade individualista dos agrupamentos formais, societários, os do indivíduo e não os da pessoa. Os do sujeito da cultura da produção lucrativa e não os da cultura do afeto.
As dificuldades do morador de rua para permanecer na sociabilidade da família parecem provir do fato de que a família em boa parte se tornou complemento e instrumento do sistema produtivo e lucrativo, isto é, da racionalidade econômica e não mais exclusivamente da afetividade social.
Sociologicamente, efeitos socialmente desorganizadores da vida em família, em muitos casos, não contam com a reação afetiva, compensatória e reintegradora do grupo familiar. Em boa parte porque os laços de família estão significativamente mediados e abalados pelo primado de relações de interesse.
A afetividade familista permanece na estrutura familiar, especialmente dos mais velhos em relação aos mais novos. E só residualmente presente, porque no sentido oposto e negativo, antissocial, dos mais novos em relação aos mais velhos. Avós tendem a ser muito mais generosos no acolhimento e proteção a netos e filhos do que os mais novos em relação aos mais velhos.
Isso tem muito a ver com as cada vez mais limitadas condições de vida das famílias. Com o chamado arrocho salarial dos anos iniciais da ditadura militar, o salário de duas pessoas em cada família tornou-se necessário para cobrir o que antes um único salário cobria. Aqui, isso tornou-se estrutural. Essa dificuldade desenvolveu um egoísmo peculiar nas gerações mais jovens, em começo de vida adulta, mesmo na família.
Mas não só nem principalmente isso. O sistema econômico, cada vez mais, tem transformado o trabalhador em matéria-prima da produção ao privá-lo dos meios de sua própria reprodução social, ao consumi-lo. E nele negar o meio de realização do capital. É um equívoco político supor que, na teoria das classes sociais, o trabalhador se explica apenas pela produção e não, também, pelo consumo de bens e serviços, condição da reprodução do capital.
É significativo que em São Paulo, o estado mais rico, estejam 40% dos idosos moradores de rua do Brasil. Entre as anomalias e contradições do sistema econômico brasileiro está a do banimento de seres humanos para os espaços de deterioração social, como os define Lewis Mumford.
O idoso de rua é o ser humano que chegou ao limite da procura de reintegração no mercado de trabalho. Da crescente dificuldade para conseguir emprego, o tempo cada vez maior de desemprego entre um emprego e outro define o ritmo da dessocialização do idoso no grupo familiar e na sociabilidade do trabalho, os vínculos sociais cotidianos mutilados pelo desemprego.
Sobram-lhe a necessidade de ressocialização para um modo de vida, um cotidiano marginal e não integrativo, na referência social dos grupos de rua a do viver de restos, ele próprio reduzido a resto da condição humana.
É compreensível que seja difícil explicar essa anomalia social. Em parte porque a busca das causas prováveis tende a ser a das mais simples, mais óbvias ainda que menos prováveis, não as invisíveis.
Chama atenção que diferentes estudos sobre moradores de rua tendam a identificar como causa de sua situação de abandono os chamados defeitos de caráter, como alcoolismo e droga. Ou seja, nessa perspectiva, a culpa é da vítima.
O que, na verdade, nada explica. É muito mais fácil culpar o frágil pelos problemas sociais que protagoniza do que buscar causas, e não culpas, na própria estrutura social e em suas disfunções, num país em que as irracionalidades da economia se expressam como anomia social.
As sociedades são relacionais, tramas de causas recíprocas, tanto no que dá certo quanto no que dá errado, tanto em relação ao rico quanto em relação ao pobre. No caso de São Paulo, na chamada cracolândia, a incidência da marginalização decorrente do uso de drogas sugere o protagonismo da classe média. Observei isso na cracolândia da rua Helvétia, há alguns anos.
Caso em que se pode levantar a hipótese legítima de que o viciado desses ajuntamentos é alguém que busca a sociabilidade coletiva da rua porque é ela não excludente.
Ela se dá fora dos mecanismos de controle social dos diferentes grupos sociais de pertencimento e de referência. Como a família e a vizinhança e outros grupos de orientação social comunitária e afetiva.
Pessoas repelidas e reprimidas pela sociabilidade individualista dos agrupamentos formais, societários, os do indivíduo e não os da pessoa. Os do sujeito da cultura da produção lucrativa e não os da cultura do afeto.
As dificuldades do morador de rua para permanecer na sociabilidade da família parecem provir do fato de que a família em boa parte se tornou complemento e instrumento do sistema produtivo e lucrativo, isto é, da racionalidade econômica e não mais exclusivamente da afetividade social.
Sociologicamente, efeitos socialmente desorganizadores da vida em família, em muitos casos, não contam com a reação afetiva, compensatória e reintegradora do grupo familiar. Em boa parte porque os laços de família estão significativamente mediados e abalados pelo primado de relações de interesse.
A afetividade familista permanece na estrutura familiar, especialmente dos mais velhos em relação aos mais novos. E só residualmente presente, porque no sentido oposto e negativo, antissocial, dos mais novos em relação aos mais velhos. Avós tendem a ser muito mais generosos no acolhimento e proteção a netos e filhos do que os mais novos em relação aos mais velhos.
Isso tem muito a ver com as cada vez mais limitadas condições de vida das famílias. Com o chamado arrocho salarial dos anos iniciais da ditadura militar, o salário de duas pessoas em cada família tornou-se necessário para cobrir o que antes um único salário cobria. Aqui, isso tornou-se estrutural. Essa dificuldade desenvolveu um egoísmo peculiar nas gerações mais jovens, em começo de vida adulta, mesmo na família.
Mas não só nem principalmente isso. O sistema econômico, cada vez mais, tem transformado o trabalhador em matéria-prima da produção ao privá-lo dos meios de sua própria reprodução social, ao consumi-lo. E nele negar o meio de realização do capital. É um equívoco político supor que, na teoria das classes sociais, o trabalhador se explica apenas pela produção e não, também, pelo consumo de bens e serviços, condição da reprodução do capital.
É significativo que em São Paulo, o estado mais rico, estejam 40% dos idosos moradores de rua do Brasil. Entre as anomalias e contradições do sistema econômico brasileiro está a do banimento de seres humanos para os espaços de deterioração social, como os define Lewis Mumford.
O idoso de rua é o ser humano que chegou ao limite da procura de reintegração no mercado de trabalho. Da crescente dificuldade para conseguir emprego, o tempo cada vez maior de desemprego entre um emprego e outro define o ritmo da dessocialização do idoso no grupo familiar e na sociabilidade do trabalho, os vínculos sociais cotidianos mutilados pelo desemprego.
Sobram-lhe a necessidade de ressocialização para um modo de vida, um cotidiano marginal e não integrativo, na referência social dos grupos de rua a do viver de restos, ele próprio reduzido a resto da condição humana.
Sempre tragédias
O sistema esvazia nossa memória, ou enche a nossa memória de lixo, e assim nos ensina a repetir a história em vez de fazê-la. As tragédias se repetem como farsas, anunciava a célebre profecia. Mas entre nós, é pior: as tragédias se repetem como tragédias.Eduardo Galeano
A trama da desatenção
‘Eu não sei dizer, nada por dizer, então eu escuto’ — diz a bonita letra musical. Podia ser frase de psicanalista à espera de um sinal do inconsciente, em meio ao jorro de falas do analisando. Mas também um canto retraído e perplexo do sujeito atual, diante dos absurdos que o cercam. Afinal, dizer o quê? Como se a palavra já tivesse morrido, tamanha sua inocuidade. E o escritor, enquanto nada articula, escuta sua alma discutir a função e a utilidade da escrita. O dilema paralisante pode ser injusto com os que precisam manter o espírito aceso por ideias que os ajudem a encontrar sentido para suas perplexidades.
Será o escritor capaz de atender à expectativa, emergir da banalidade e articular ideias instigantes, ressuscitando a palavra — como na arte que se afasta ou distorce a realidade para, em seguida, desvelar suas nuances? Pois bem. Uma conspiração mundial estaria em curso — anônima, inconsciente, coletiva. Mas, ao mesmo tempo, como se houvesse um desígnio subterrâneo, um projeto intencional, tão efetivo que se expressa em sua universalidade automática. Com a cumplicidade das vítimas. A estratégia é deixar todos os indivíduos desatentos. É uma conspiração da desatenção, de manter os seres entorpecidos — mesmo aqueles que, na superfície, parecem resistir e criticar.
Sabemos muito bem dos meios usados para esse fim, todos os desfrutamos diariamente — aliás, acertaram em cheio, nos oferecendo preencher a incurável falta que nos habita. Não temos consciência de que aspectos a trama nos impede de enxergar e pensar, e esse é um dos êxitos de sua ação. Ela se alia a nosso dispositivo inato de negação da realidade frustrante. As questões podem ser as mais íntimas do ser, familiares, ou também as mais próximas da sociedade, da política e do planeta. E tais questões se agravam à medida que aumenta a desatenção individual e coletiva. A grande esperteza da conspiração é nos convencer, enquanto isso, de que seus meios foram feitos para aumentar o entretenimento, o conhecimento, a democracia e a comunicação.
Enquanto acreditamos que tudo se resume a essa dimensão positiva, a boiada da pulsão inata destrutiva vai passando e carrega consigo a deterioração da civilização que se infiltra de forma sorrateira. Ela expande a barbárie das guerras, agrava os riscos climáticos, produz soluções políticas com líderes extremos, em meio a conflitos sociais e disparidade de renda cada vez maior. Entre os mais lúcidos, cresce de forma assustadora o sentimento de que não é possível fazer nada — muito menos escrever alguma coisa. A máquina do mundo roda guiada por mãos invisíveis, com engrenagens anônimas, desígnios sinistros autônomos que já escaparam do alcance voluntário, mesmo de seus criadores e das esferas de maior poder.
O sentimento de impotência substitui o idealismo, e um realismo conformista e utilitário ocupa o lugar que outrora era do romantismo. Salve-se quem puder nesta feira moderna. Aqui, o convite é sensual, e a distância já morreu — numa livre citação da profética música do saudoso Som Imaginário. E a curiosa contradição é que, numa sociedade cada vez mais dispersa e desatenta, que tudo esquece, os indivíduos ainda lutem, na esfera mundana — às vezes de forma desesperada —, por conquistar atenção e lembrança, mesmo que seja por aqueles 15 segundos fugidios de fama. Mas a cultura da desatenção, da ausência de foco e do esquecimento de tantas questões cruciais de uma sociedade provoca nos sujeitos desnorteados o sentimento de desamparo e orfandade. A História já mostrou qual é o risco político desse virtual cenário.
Será o escritor capaz de atender à expectativa, emergir da banalidade e articular ideias instigantes, ressuscitando a palavra — como na arte que se afasta ou distorce a realidade para, em seguida, desvelar suas nuances? Pois bem. Uma conspiração mundial estaria em curso — anônima, inconsciente, coletiva. Mas, ao mesmo tempo, como se houvesse um desígnio subterrâneo, um projeto intencional, tão efetivo que se expressa em sua universalidade automática. Com a cumplicidade das vítimas. A estratégia é deixar todos os indivíduos desatentos. É uma conspiração da desatenção, de manter os seres entorpecidos — mesmo aqueles que, na superfície, parecem resistir e criticar.
Sabemos muito bem dos meios usados para esse fim, todos os desfrutamos diariamente — aliás, acertaram em cheio, nos oferecendo preencher a incurável falta que nos habita. Não temos consciência de que aspectos a trama nos impede de enxergar e pensar, e esse é um dos êxitos de sua ação. Ela se alia a nosso dispositivo inato de negação da realidade frustrante. As questões podem ser as mais íntimas do ser, familiares, ou também as mais próximas da sociedade, da política e do planeta. E tais questões se agravam à medida que aumenta a desatenção individual e coletiva. A grande esperteza da conspiração é nos convencer, enquanto isso, de que seus meios foram feitos para aumentar o entretenimento, o conhecimento, a democracia e a comunicação.
Enquanto acreditamos que tudo se resume a essa dimensão positiva, a boiada da pulsão inata destrutiva vai passando e carrega consigo a deterioração da civilização que se infiltra de forma sorrateira. Ela expande a barbárie das guerras, agrava os riscos climáticos, produz soluções políticas com líderes extremos, em meio a conflitos sociais e disparidade de renda cada vez maior. Entre os mais lúcidos, cresce de forma assustadora o sentimento de que não é possível fazer nada — muito menos escrever alguma coisa. A máquina do mundo roda guiada por mãos invisíveis, com engrenagens anônimas, desígnios sinistros autônomos que já escaparam do alcance voluntário, mesmo de seus criadores e das esferas de maior poder.
O sentimento de impotência substitui o idealismo, e um realismo conformista e utilitário ocupa o lugar que outrora era do romantismo. Salve-se quem puder nesta feira moderna. Aqui, o convite é sensual, e a distância já morreu — numa livre citação da profética música do saudoso Som Imaginário. E a curiosa contradição é que, numa sociedade cada vez mais dispersa e desatenta, que tudo esquece, os indivíduos ainda lutem, na esfera mundana — às vezes de forma desesperada —, por conquistar atenção e lembrança, mesmo que seja por aqueles 15 segundos fugidios de fama. Mas a cultura da desatenção, da ausência de foco e do esquecimento de tantas questões cruciais de uma sociedade provoca nos sujeitos desnorteados o sentimento de desamparo e orfandade. A História já mostrou qual é o risco político desse virtual cenário.
A polarização política e a polarização social
A polarização política que inquieta especialistas por sua persistência não é o mesmo fenômeno da polarização social. Faz diferença a dimensão afetiva, em que episódios de vida são mais reveladores do que conceitos. Assim, um indivíduo convicto do momento de "pacificação" decide aproximar-se do vizinho percebido como pacato, respeitoso, mas de quem se diz votar no lado violento. Na afabilidade da piscina condominial, aborda-o com tato, a resposta é tranquila: "Sim, sou bolsonarista, mas do bem". Acrescenta: "Isso existe".
O fato é real, recente, ao pé-da-letra. Vale cotejá-lo com um outro, relativo ao zap-grupo, também declaradamente bolsonarista, de uma mesma profissão pública. Um deles posta uma mensagem segundo a qual importante figura da República teria sido flagrada com cocaína. Ninguém acredita, porém. Não é verossímil para o perfil em questão. Depois de alguma ponderação, o autor admite ser fofoca. Arremata: "Mas daria uma excelente fake news".
Os episódios estão ligados por um grau peculiar de complexidade. O primeiro, benigno pela singeleza da confirmação, é ao mesmo tempo contundente pela admissão lógica de que trafega numa esfera oposta ao bem, mas com excepcional isenção própria. O segundo parte de autodeclarados liberais econômicos, respeitáveis em público, porém com inequívoca malignidade em seu caldeirão privado de veneno emocional: um bunker de linchadores virtuais.
É provável que o wokismo, transformado em terrorismo intelectual do politicamente correto, gere um ressentimento exasperado em frações de classe de leitura escassa, passageiras de ego-trips. Confundindo com política o avanço de um novo tipo de controle social por normatizações moralizadoras, abrem-se à fascistização das redes. Haverá quem possa se expressar em termos racionais. Mas o gozo vertiginoso da fake news consiste em surfar na onda irrefletida da ignorância e do falseamento.
Apesar do voto implícito, não é mesmo de política que se trata. Eleitoralismo é hoje a fibrose do corpo social, problema de saúde cívica. Não faz sentido ser bolsonarista, é como dizer "eu sou o que já era". Ou seja, jornal de ontem, agarrado a nome como a um balão murcho, resto de uma festa (da Selma?) que deu chabu. Senão, identidade de bolha, fixada num polo sem geografia humana. Daí uma comoção primitiva, pré-política, aparentemente inconsequente.
Mas cada indivíduo é um mínimo múltiplo comum: um é multi. O vizinho talvez acredite pertencer a outra espécie humana, aspirante a algo ausente no horizonte social. Afinal, o próprio governo acaba de anunciar um plano de industrialização com metas "aspiracionais", sabe-se lá o que seja isso. Já o zap-grupo, entubado na máquina da mentira, o que demanda mesmo é oxigenação cívico-cultural.
O fato é real, recente, ao pé-da-letra. Vale cotejá-lo com um outro, relativo ao zap-grupo, também declaradamente bolsonarista, de uma mesma profissão pública. Um deles posta uma mensagem segundo a qual importante figura da República teria sido flagrada com cocaína. Ninguém acredita, porém. Não é verossímil para o perfil em questão. Depois de alguma ponderação, o autor admite ser fofoca. Arremata: "Mas daria uma excelente fake news".
Os episódios estão ligados por um grau peculiar de complexidade. O primeiro, benigno pela singeleza da confirmação, é ao mesmo tempo contundente pela admissão lógica de que trafega numa esfera oposta ao bem, mas com excepcional isenção própria. O segundo parte de autodeclarados liberais econômicos, respeitáveis em público, porém com inequívoca malignidade em seu caldeirão privado de veneno emocional: um bunker de linchadores virtuais.
É provável que o wokismo, transformado em terrorismo intelectual do politicamente correto, gere um ressentimento exasperado em frações de classe de leitura escassa, passageiras de ego-trips. Confundindo com política o avanço de um novo tipo de controle social por normatizações moralizadoras, abrem-se à fascistização das redes. Haverá quem possa se expressar em termos racionais. Mas o gozo vertiginoso da fake news consiste em surfar na onda irrefletida da ignorância e do falseamento.
Apesar do voto implícito, não é mesmo de política que se trata. Eleitoralismo é hoje a fibrose do corpo social, problema de saúde cívica. Não faz sentido ser bolsonarista, é como dizer "eu sou o que já era". Ou seja, jornal de ontem, agarrado a nome como a um balão murcho, resto de uma festa (da Selma?) que deu chabu. Senão, identidade de bolha, fixada num polo sem geografia humana. Daí uma comoção primitiva, pré-política, aparentemente inconsequente.
Mas cada indivíduo é um mínimo múltiplo comum: um é multi. O vizinho talvez acredite pertencer a outra espécie humana, aspirante a algo ausente no horizonte social. Afinal, o próprio governo acaba de anunciar um plano de industrialização com metas "aspiracionais", sabe-se lá o que seja isso. Já o zap-grupo, entubado na máquina da mentira, o que demanda mesmo é oxigenação cívico-cultural.
Quem matou Karl Marx
Não seria exagero afirmar que a desigualdade social anda meio fora de moda nos últimos tempos. O assunto ganhou projeção principalmente a partir dos anos 1960, no auge do debate mundial pós-guerra sobre a independência das últimas colônias europeias do ‘terceiro mundo’ e fortalecido pela multiplicação de organismos multilaterais, ongs e estudos acadêmicos.
Enquanto isso, na América Latina o debate foi abafado durante a epidemia de ditaduras ao longo de três décadas, recobrando o fôlego nos anos 1980 com a redemocratização da maior parte dos governos da região.
Nessa época, mundo afora, pensadores progressistas deram destaque ao agravamento abissal da desigualdade de renda e concentração de riqueza, alavancado pela globalização financeira e produtiva da economia e turbinado por um consumismo insaciável.
As duas guerras mundiais embolaram o meio de campo dessa discussão, que ainda enfrentou resistências políticas expressivas durante a chamada guerra fria. Contudo, o debate da desigualdade social chegaria à virada do milênio de vento em popa. Exemplo disso, é a publicação do IDH Índice de Desenvolvimento Humano, idealizado pelo indiano Amartya Sen nos anos 1990.
O século XXI chegou repleto de esperança e novas ideias. O Fórum Social Mundial estava no auge, com suas edições em Porto Alegre atraindo palestrantes como o pensador Noam Chomsky e o recém-eleito presidente Lula. Autores como Boaventura Sousa Santos, Viviane Forrester, Naomi Klein e Paul Singer pregavam que outro mundo era possível. Manifestações como a batalha de Seattle e outras na Europa contra a OMC davam o tom o movimento antiglobalização.
No entanto, numa direção oposta, o atendado de 11 de setembro contra as torres do WTC desencadeou a guerra ao terror, reeditando uma espécie de macarthismo (no estilo quem não estiver com o capitalismo está contra ele), muito bem representado pelas invasões do Iraque e do Afeganistão e as execuções de Bin Laden dentro do Paquistão e do general iraniano Soleimani em Bagdá.
O efeito foi como um balde de água fria nos movimentos, ativistas e organizações que atuavam no enfrentamento das desigualdades sociais, que tocavam na ferida aberta das diferenças sociopolíticas entre os países do norte e do sul do mundo, o que poderia ameaçar ainda mais a liderança geopolítica dos países ricos naquele período.
Nesse cenário, desencadeou-se uma fragmentação das causas sociais em temas diversos, como aquecimento global, opção de gênero, direito à cidade, raça e cor, segurança alimentar, justiça climática, entre outros.
Sem desconsiderar a importância desses enfoques para o desenvolvimento humano e a sustentabilidade da natureza, é preciso retomar o foco primordial sobre a questão política central de todos esses problemas da humanidade, seja como causa, seja como consequência: a desigualdade social.
Enquanto isso, na América Latina o debate foi abafado durante a epidemia de ditaduras ao longo de três décadas, recobrando o fôlego nos anos 1980 com a redemocratização da maior parte dos governos da região.
Nessa época, mundo afora, pensadores progressistas deram destaque ao agravamento abissal da desigualdade de renda e concentração de riqueza, alavancado pela globalização financeira e produtiva da economia e turbinado por um consumismo insaciável.
Na verdade, o assunto da pobreza como expressão da injustiça social já era debatido desde o final do século XVIII, associado principalmente às formas de exploração do trabalho e ao imperialismo internacional, que aqui e ali resultaram ora em revoltas sociais, ora na humanização do capitalismo liberal. Em 1912 o matemático italiano Conrado Gini anunciou seu Índice de Gini, que media a distância entre pobres e ricos.
As duas guerras mundiais embolaram o meio de campo dessa discussão, que ainda enfrentou resistências políticas expressivas durante a chamada guerra fria. Contudo, o debate da desigualdade social chegaria à virada do milênio de vento em popa. Exemplo disso, é a publicação do IDH Índice de Desenvolvimento Humano, idealizado pelo indiano Amartya Sen nos anos 1990.
O século XXI chegou repleto de esperança e novas ideias. O Fórum Social Mundial estava no auge, com suas edições em Porto Alegre atraindo palestrantes como o pensador Noam Chomsky e o recém-eleito presidente Lula. Autores como Boaventura Sousa Santos, Viviane Forrester, Naomi Klein e Paul Singer pregavam que outro mundo era possível. Manifestações como a batalha de Seattle e outras na Europa contra a OMC davam o tom o movimento antiglobalização.
No entanto, numa direção oposta, o atendado de 11 de setembro contra as torres do WTC desencadeou a guerra ao terror, reeditando uma espécie de macarthismo (no estilo quem não estiver com o capitalismo está contra ele), muito bem representado pelas invasões do Iraque e do Afeganistão e as execuções de Bin Laden dentro do Paquistão e do general iraniano Soleimani em Bagdá.
O efeito foi como um balde de água fria nos movimentos, ativistas e organizações que atuavam no enfrentamento das desigualdades sociais, que tocavam na ferida aberta das diferenças sociopolíticas entre os países do norte e do sul do mundo, o que poderia ameaçar ainda mais a liderança geopolítica dos países ricos naquele período.
Nesse cenário, desencadeou-se uma fragmentação das causas sociais em temas diversos, como aquecimento global, opção de gênero, direito à cidade, raça e cor, segurança alimentar, justiça climática, entre outros.
Sem desconsiderar a importância desses enfoques para o desenvolvimento humano e a sustentabilidade da natureza, é preciso retomar o foco primordial sobre a questão política central de todos esses problemas da humanidade, seja como causa, seja como consequência: a desigualdade social.
E agora, Jair?
E agora, Jair?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, Jair?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, Jair?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, Jair?
E agora, Jair?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
Jair, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, Jair!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, Jair!
Jair, para onde?
Ricardo Noblat
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