sábado, 3 de julho de 2021

Pesadelo de cada dia

Nestes tempos o despertar do brasileiro é um pesadelo. Pode estar uma manhã de um esplendor de luz e cores, ou nascer o dia sob um chuvisco modorrento. O sentimento será o mesmo de brumas – tristeza, angústia, mesmo desespero, mas principalmente de morte. É de manhã que a Besta desperta com todo o furor para negar a vida. A mídia despeja em jorros a pestilência contra o ser humano gerada à noite pelos diabos. E a manhã é sempre um terror.

Varreu-se do dia a esperança e a alegria, que mesmo nos piores momentos desta pandemia outros países não perderam. A governança da maldade , entronada nos palácios governamentais dos Três Poderes, dispara seus festins contra o que consideram a populaça. Cada vez mais um tiro na generosidade, na amizade, no companheirismo, na cooperação, enfim na humanidade que todo povo deve prezar.


Mais de 522 mil mortos e milhões de desempregados depois, disparam nova cortina de fumaça para encobrir o descaso com que se tratou e se trata a maior crise sanitária mundial dos últimos 100 anos. E tome declarações bestiais, desfiles eleitoreiros, inaugurações do já inaugurado, injúrias e calúnias contra outros brasileiros, que até erraram, mas nunca assassinaram.

Entre choro e ranger de dentes, a Besta impera com suas legiões, até sob algum aplauso cúmplice da escória, que infelizmente não desperta o grito geral: “Vão todos pros quintos do inferno!” Com a devida reverência a tão ilustres insignificantes.

O país necessita de Vida para não ser apenas um ossuário de miséria, morte, desespero, e de todos os sentimentos que fazem da humanidade ser uma verdadeira criação, independente de religiosos e profetas de araque.

A continuidade da polarização entre governo e Brasil mata e destrói até não sobrar nem um nem outro. Apenas uma terra de ninguém, onde se enterrarão vítimas e algozes, pronta para receber vândalos e mercenários de todo o tipo.
Luiz Gadelha

A complicada geometria política

A arte da política é produzir consensos progressivos diante das divergências presentes. Líderes como Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, FHC, Petrônio Portela, Marco Maciel se esmeravam na construção de convergências. Foi assim na anistia, na eleição de Tancredo no colégio eleitoral, na Assembleia Nacional Constituinte eleita em 1986.

No cenário atual, não. Num ambiente de radicalização extremada, os populistas autoritários, os “engenheiros do caos”, não querem o diálogo. Dentro de sua lógica, a exacerbação, a obstrução do contraditório e a anulação da legitimidade dos adversários operam em favor da manutenção do quadro de polarização radical e fidelização de suas bases sociais.


Hoje, abordo o diálogo o ex-governador e senador Cristovam Buarque, ator político comprometido com o interesse público e portador de grande inquietação intelectual. Recentemente, ele, no artigo “O PT é Centro” introduziu uma saudável provocação, reivindicando que o PT deveria ter sido convidado para a reunião dos líderes dos partidos do chamado “centro democrático”, que buscam construir uma alternativa nas presidenciais de 2022. Depois de análise onde caracteriza o PT como um partido de centro, concluí: “Por sua força e por sua posição centrista, o PT deveria ter sido convidado. Salvo se aqueles que fizeram a reunião se considerarem de direita, onde realmente o PT não se situa”. Mas como disse a ele, nem uma coisa, nem outra. Nem o PT é centro, se situando no campo da esquerda brasileira, nem os partidos reunidos são de direita.

Fato é que a geometria política contemporânea é extremamente complexa. Os conceitos de centro, direita e esquerda estão embaralhados. O debate no século XX era polarizado entre reacionarismo, liberalismo, socialdemocracia e comunismo. O reacionarismo continua presente em algumas ditaduras e ameaças antidemocráticas. O liberalismo mostrou suas debilidades na crise global de 2008. A socialdemocracia tropeçou nos limites fiscais de expansão dos Estados de Bem Estrar europeus. E o comunismo veio abaixo com a queda do Muro de Berlim e a dissolução da URSS e do Leste Europeu.

Diante disto é preciso, mais do que nunca, desprender-se dos paradigmas clássicos e dos rótulos, e se concentrar na agenda de transformações necessárias. Quais são as questões que devem unir?

Os eixos essenciais são: i. defesa radical da democracia e da liberdade, individual, política, coletiva, econômica; ii. Construção de um novo modelo econômico eficiente e inclusivo; iii. Ação contundente contra as iniquidades sociais, através da transferência direta de renda aos mais pobres e de políticas públicas sociais criativas; iv. Defesa da sustentabilidade ambiental e v. Construção do Estado socialmente necessário, enxuto, forte e moderno com intervenções calibradas coerentes com os demais objetivos.

Norberto Bobbio deu uma notável contribuição teórica a esta busca. O Partido Comunista Italiano produziu o “aggiornamento” que resultou em sua extinção e na criação do PD italiano. Biden, Merkel, Macron buscam construir alternativas às perspectivas extremadas.

Para além dos rótulos, na complexa geometria política, precisamos unir como bem resumiu o ex-governador e ministro Moreira Franco “a esquerda da direita e a direita da esquerda” em torno da agenda substantiva que realmente interessa ao futuro do Brasil.

À prova de blindagem

Nas últimas semanas, a CPI nos tem brindado com as sôfregas tentativas da tropa de choque de Jair Bolsonaro de blindá-lo da acusação de, em plena pandemia, ter feito do Ministério da Saúde um balcão de negócios assassinos. Se Millôr Fernandes estivesse entre nós, diria que, por enquanto, essa blindagem só resultou no rabo escondido, com o gato de fora. Ao ouvir isso, eu, com uma intimidade garantida por 40 anos de amizade, pediria a Millôr para não meter os gatos nessa história. Os animais que a povoam são de outra espécie —os ratos, de que o ratão-mor se cercou nos subterrâneos de seus palácios e do dito ministério.

O verbo blindar nos chegou do alemão “blenden”, através do francês “blinder”. Os ingleses o acolheram como “to blind”. Todos significam a mesma coisa: cegar, ofuscar, embaçar, desbotar. Como as línguas são vivas, blindar gerou também proteger, escudar, defender, revestir, couraçar, tapar. E, numa variante sinistra, tapear, enganar, iludir, ludibriar, entulhar —obstruir.


É no que estão se agarrando os esforçados senadores que defendem Bolsonaro, perdendo todas até agora. E como não perder? Deve ser difícil blindar alguém que, com incrível coerência, cercou-se —subitamente ficou claro— de empresários canastrões, militares suspeitos, juízes oportunistas, ministros das sombras, intermediários de mutretas e agentes de propina, sem falar nos valentões da internet e militantes do ódio, todos deixando suas digitais em tudo que tocam. Como blindar Bolsonaro se os discursos que proferem são desmentidos pelos vídeos e áudios mais comprometedores gravados pela turma do patrão?

A avalanche de suspeitas e denúncias de corrupção só começou. Em breve, não haverá blindagem que chegue, e os aliados de hoje cairão fora para salvar a vida.

Só será triste se, um dia, Bolsonaro for levado aos tribunais apenas como ladrão —não como genocida.

Pensamento do Dia

 


Você precisa definir, até a eleição do ano que vem, qual é o mal maior

O, por assim dizer, presidente Jair Bolsonaro voltou a ameaçar o país nesta quinta. Acusou um complô entre Lula e ministros do STF para fraudar eleições. Ou se aprova o voto impresso, ou ele anuncia que não vai reconhecer o resultado. E aí prevê “problemas”. O rato que ruge ameaça com a versão nativa da invasão do Capitólio. Mais um crime de responsabilidade. Depois foi à missa.

Escrevi na semana passada que tenho procurado, neste espaço, fugir às questões contingentes. Quando se tenta cobrar propina até de picareta que não tem vacina a vender, todas as musas silenciam à espera do próximo absurdo. Relatá-los e comentá-los tem sido nossa triste e necessária rotina. Tentemos avançar um pouco.

Se não há apelo à razão que possa fazer frutos nos bolsões da extrema direita, falo então àqueles que estão do lado de cá da delinquência, apesar e por causa de suas —ou das nossas— diferenças, que são imensas. Li, dia desses, um juízo torto, oriundo de quem está sinceramente interessado em que surja uma terceira via.


Confesso, diga-se, que minha utopia de curto prazo é ver Bolsonaro fora da disputa do segundo turno —ainda que eu não aconselhe ninguém a apostar a sua grana nisso. Assim, viva a terceira via, mas não escoltada pelo mau pensamento! E também não a qualquer preço.

Segundo aquele juízo torto, o maior mal que Bolsonaro fez ao Brasil foi ressuscitar um Lula elegível e hoje favorito para a disputa presidencial de 2022. Dizer o quê? Isso não está apenas historicamente errado, uma vez que despreza os fatos. Há também aí deformações morais e éticas, que precisam ser apontadas.

Mais: além de essa consideração não contribuir em nada para tornar viável um terceiro nome na disputa, traz um prejuízo adicional: normaliza uma eventual adesão a Bolsonaro no segundo turno de forças hoje a ele refratárias porque, então, o petista seria um mal oposto, mas, de algum modo, proporcional à aberração que aí está.

Deixo virtudes e defeitos de Lula para o exercício político de petistas e antipetistas. Debatam à vontade. Atribuo-me a tarefa de lembrar que o ex-presidente não ressuscitou porque nunca morreu.

Quando preso, liderava as pesquisas de opinião para a eleição de 2018. Foi condenado sem provas —isso, sustentamos eu e qualquer pessoa que tenha realmente lido a sentença— por um juiz que a mais alta corte do país considerou incompetente e suspeito.

Mantido na cadeia à revelia do que dispõe o inciso LVII do artigo 5º da Constituição,indicou um candidato, Fernando Haddad, que esteve muito longe da humilhação eleitoral. Chegou a figurar na frente ou em empate técnico com Bolsonaro em algumas pesquisas. Os fatos, não o Reinaldo Azevedo, desautorizam a tese da ressurreição.

O governo Bolsonaro não trouxe ninguém à vida. As políticas públicas e as pregações delinquentes na área de saúde mataram milhares de pessoas. Ou nos damos conta da enormidade que é estarmos na rota dos 600 mil mortos por Covid-19 ou, então, admitamos que somos também nós os degradados. Ou bem consideramos inaceitável a sua pregação golpista, ou nos tornemos servis às suas tentações autocráticas. Eis aí a combinação de dois “males maiores”.

“Ah, Reinaldo, não posso medir a eficiência de um governo só pelo número de mortos que ele produz ou por seu apreço à democracia”. Então eu nada tenho a lhe dizer. Perdeu seu tempo. Nem chegue ao fim do texto. Não quero ficar a seu lado na praia. Não trocaremos impressões dessa vida besta nem falaremos sobre ser sequestrado por serafins nos botecos da vida —cito Drummond. Não quero papo com você. “E quem disse que eu quero, articulista?” Não brigaremos por isso.

“Que intolerância! Tá vendo?” Sou intolerante com quem comete 33 crimes de responsabilidade em dois anos e meio de mandato. E tira máscara do rosto de criancinhas. Temos de nos perguntar qual é o nosso limite. Que barbaridade da ora meus colegas, repórteres diligentes, informarão na mesma edição
em que sai esta coluna?

Ah, sim: Bolsonaro comungou nesta quinta. O que tem com o “Corpo de Cristo” quem faz da ameaça e da administração da morte o seu modo de fazer política? Qual é o nosso limite?

Suspeitos de corrupção agora têm patente

O número de militares envolvidos neste episódio da corrupção na compra de vacinas chama atenção. São coronéis e tenentes- coronéis envolvidos nesta negociação suspeita. Militares levados por Pazuello para supostamente moralizar o Ministério da Saúde.

Elcio Franco, coronel e segundo no comando do Ministério da Saúde na época de Pazuello, foi citado por Luiz Paulo Dominguetti , que é cabo da PM, em seu depoimento à CPI. O tenente-coronel Marcelo Blanco, que também era do departamento de logística e participou do jantar em que se tratou da propina. Com outro coronel, ele era do Ministério, foi exonerado e abriu uma empresa de representação de medicamentos recentemente. Os fatos mostram que o coronel Blanco permanece com poderes no Ministério. O seu sócio, também coronel, deve ser o quarto elemento presente naquela mesa.

Mudaram os personagens: agora eles têm patente. E isso aumenta a mancha nas Forças Armadas, e nas corporações militares que a adesão ao Governo Bolsonaro está produzindo.

O mais importante no depoimento do cabo Dominguetti foi a confirmação da propina pedida pelo ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias. Isso confirma o depoimento do servidor Luis Ricardo Miranda, que apontou Dias como um dos supostos autores da pressão atípica que sofreu para assinar o contrato de vacina Covaxin.

A operação de sexta-feira foi claramente para tentar tirar a acusação do Palácio do Planalto, desmoralizando o deputado Luís Miranda com uma gravação. Mas não teve sucesso.

A tentativa de fazer de Domingueti um cavalo de tróia não deu certo e a bomba continua na sala do presidente. Isto porque há muita ligação com Dias, principal investigado da corrupção. Ele foi indicado pelo presidente para cargo na Anvisa e impediram que ele fosse exonerado.

Mesmo assim, em sua live de quinta-feira, Bolsonaro acusou Luís Miranda falando do áudio. O presidente só não mostrou o recuo do PM, dizendo que foi induzido ao erro.

Se eles quisessem fazer algo sério, quando aparecesse um intermediário para vender Astrazeneca, teriam que chamar a Fiocruz para participar desta reunião. A Fiocruz é a fabricante no Brasil da vacina e, em fevereiro, estava com dificuldade de ter insumos, mas já tinha um acordo, inclusive de transferência de tecnologia. Essa história é muito estranha e é importante que a CPI continue investigando e esclareça.

A CPI, contudo, não pode abandonar as outras trilhas de investigação. Ontem circulou um vídeo de Ricardo Barros admitindo com todas as letras que o presidente apostava na tese da imunidade de rebanho. Esta estratégia de como tratar a política pública de saúde é criminosa e levou a muitas mortes a mais. A comissão tem que apurar a corrupção e deixar claro que o presidente da república optou por uma estratégia como gestor e governante que levou ao aumento das mortes no Brasil.

Na lixeira, só podridão


De todos os lixos conhecidos, o da História é o que mais fede
Joel Silveira, "Guerrilha noturna"

A máquina do extremismo

O bolsonarismo montou uma máquina para disseminar o discurso de ódio, atacar as instituições e pregar um golpe contra a democracia. A engrenagem foi exposta em relatório da Polícia Federal. Ontem o Supremo abriu um novo inquérito para investigar os extremistas.

Na decisão, o ministro Alexandre de Moraes descreve a existência de uma “verdadeira organização criminosa” destinada a implodir o estado de direito. Ele afirma que o objetivo da tropa é a “imposição de uma ditadura”, eliminando “qualquer possibilidade de controle ou fiscalização” do poder presidencial.

As investigações começaram em abril de 2020, quando Jair Bolsonaro participou de um comício em frente ao Quartel-General do Exército. Os manifestantes tentaram incitar os militares a fechar o Congresso e decretar um novo AI-5.

“Nós não queremos negociar nada”, bradou o capitão, na caçamba de uma caminhonete. “Acabou a época da patifaria. Agora é o povo no poder”, arrematou, diante de uma plateia que o chamava de “Mito” e urrava contra a democracia.


O presidente não é investigado, mas seus filhos Flávio, Carlos e Eduardo são citados no relatório da PF. O inquérito aberto no ano passado também mira deputados bolsonaristas e assessores do governo. Parte deles integra o “gabinete do ódio” instalado no terceiro andar do Planalto.

A polícia ainda identificou empresários que financiam a extrema direita desde a campanha de Bolsonaro. Com a vitória do capitão, o grupo ganhou acesso aos cofres públicos. A Secom passou a liberar verbas para portais que divulgam notícias falsas e pregam ideias golpistas.

As investigações mostram como o bolsonarismo se infiltrou nas instituições para sabotá-las. Deputados eleitos pelo voto conspiram abertamente pelo fechamento do Congresso. Uma das líderes da tropa, a deputada Bia Kicis, está no comando da principal comissão da Câmara.

O aparelhamento também chegou aos órgãos de investigação. Para proteger o governo, o procurador Augusto Aras menosprezou o relatório da PF e pediu o arquivamento do caso. Moraes precisou abrir um novo inquérito para evitar que as provas fossem parar no lixo.
Bernardo Mello Franco

O fio da meada

A CPI da Covid-19 puxou o fio de uma meada cujo trajeto pode levar a um esquema de corrupção na contratação de fornecedores que nada fica a dever ao escândalo da Petrobras desvendado pela Operação Lava-Jato. Com a agravante de que, desta vez, a mercadoria posta no balcão de negócios foi (e é) a vida de milhares de brasileiros.

A coisa toda talvez não resulte na abertura de processo de impeachment de Jair Bolsonaro, mas já o enredou numa trama da qual não tem sido capaz de se desvencilhar. E, a julgar pelas tentativas mal-ajambradas de explicar as anomalias no contrato de compra da vacina Covaxin e a entrada em cena do fator propina, o presidente dificilmente conseguirá sair ileso dessa confusão que está apenas começando. De um impeachment poderia sair inocentado, mas da opinião pública não escapa.


Surgem a todo momento novas notícias de ilícitos relacionados a vacinas, a testes para detecção do vírus e outros produtos associados à crise sanitária. São problemas que ligam a conduta do presidente na pandemia a suspeitas de corrupção e o põem numa situação que vai muito além de ações e omissões negacionistas pautadas por ideologia ou distorção de caráter.

Se os exercícios da negação e da boçalidade já provocaram revolta e aumento da avaliação negativa do presidente por terem estimulado a contaminação e contribuído para o número de mortes que poderiam ter sido evitadas, a coisa tende a ficar muito mais grave quando se entra no terreno da troca de vidas por dinheiro.

A ocorrência de crimes de prevaricação, de corrupção e/ou tráfico de influência com participação direta de Bolsonaro está sob investigação e ainda não se estabelece como fato incontestável. Se o chefe da nação agiu em benefício próprio ou com intuito de proteger alguém que tenha oferecido ou recebido promessa de vantagem indevida é o ponto a ser esclarecido e que o Planalto procura contornar ao tentar circunscrever o caso ao campo dos erros meramente formais.

Depois de dez dias de puro atordoamento, o governo entrou no modo redução de danos ao anunciar o reexame do contrato da Covaxin, coisa que o susto o impediu de fazer no primeiro momento. Só havia uma maneira de desmontar a denúncia que os irmãos Luís e Ricardo Miranda levaram ao presidente em 20 de março último: a apresentação de uma imediata, concisa e muito bem contada história. Ocorreu o contrário com a série de lorotas desmentidas, uma a uma, pelos fatos.

Da acusação de fraude documental lançada sobre os denunciantes às versões de que dois auxiliares demissionários — o ministro Eduardo Pazuello e o secretário-executivo da Saúde, Elcio Franco — haviam sido encarregados de investigar e nada encontraram de errado, o governo só fez se enrolar.

O presidente ainda tentou recorrer ao velho truque de dizer que não sabia de nada, mas não colou. Diferentemente do que aconteceu com o então presidente em 2005, que sob a mesma alegação conseguiu ficar de fora da denúncia do mensalão apresentada pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro não pôde contar com o benefício da dúvida. Um deputado de sua base de apoio apontou dia, hora e local em que levou a ele a denúncia e ainda acenou com a possibilidade de apresentar provas caso fosse desmentido.

Ante a hipótese de existir uma gravação, Jair Bolsonaro preferiu não pagar para ver se era blefe e retraiu-se. Diante da notícia-crime por prevaricação apresentada ao Supremo por três senadores e de pronto encaminhada pela ministra Rosa Weber para manifestação da PGR, foi ordenada a suspensão do contrato que originou a puxada do primeiro fio, “para análises mais profundas”. Isso três meses depois do aviso de que havia gato naquela tuba.

Não foi acionada a Polícia Federal, conforme prometido inicialmente aos denunciantes nem se negou que por ocasião da visita deles ao Palácio da Alvorada o presidente apontara o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, como contumaz autor de “rolos”. O contrato da Covaxin acabará por ser cancelado e o líder, devagar, afastado à francesa, provavelmente por iniciativa própria em encenado gesto de desprendimento.

Mas, ainda que não ocorra o impeachment — o que nos bastidores o mundo político todo rejeita —, o presidente Jair Bolsonaro continuará na vitrine na desconfortável e eleitoralmente periclitante condição de vidraça.

As maiores águias do mundo estão morrendo de fome por causa do desmatamento na Amazônia

As maiores águias do mundo estão em perigo. O desmatamento na Amazônia brasileira fez com que as harpias [ave mais conhecida no Brasil pelo nome de gavião-real], que podem pesar mais de sete quilos e medir até um metro de comprimento e dois de envergadura (distância entre as extremidades das asas), não tenham presas suficientes para manterem-se saudáveis e para alimentar seus filhotes, segundo revelou uma nova pesquisa publicada na quarta-feira na Nature.


Everton Miranda, professor da Escola de Ciências da Vida da Universidade de KwaZulu-Natal, na África do Sul, e primeiro autor do trabalho, conta que quando o desmatamento do habitat destas aves ultrapassa 50%, os filhotes começam a morrer de fome. “Durante o estudo, vimos filhotes de harpia que só recebiam comida a cada 15 dias durante meses antes de morrer”, diz Miranda.

A alimentação da harpia, o principal predador aéreo da Amazônia, se baseia exclusivamente em mamíferos que vivem nas copas das árvores, especialmente preguiças, macacos-prego marrons e macacos-lanudos cinzas. “Com o corte de árvores e a queima das matas tropicais da região de Mato Grosso, estas presas se vão e as harpias não encontram o que comer nem como alimentar os filhotes”, diz o pesquisador.

Os biólogos de todo o mundo sabem com certeza que os predadores ápice, que estão no topo da cadeia alimentar e não têm outros predadores, estão seriamente ameaçados e que suas extinções locais se devem frequentemente a falhas na aquisição de presas. No entanto, até agora nenhum estudo tinha examinado o impacto da perda de floresta na ecologia alimentar destas grandes aves.Miranda e seus colegas monitoraram com armadilhas fotográficas 16 ninhos de harpia ativos no meio de paisagens da Amazônia brasileira que sofreram de 0 a 85% de perda florestal.

Descobriram que apesar da redução de possíveis presas, estas águias não puderam mudar de dieta e continuaram buscando, sem sucesso, os mesmos mamíferos que antes viviam nas copas das árvores.

Só em 2020 a Amazônia brasileira perdeu 11.088 quilômetros quadrados de árvores, de acordo com o balanço anual divulgado pelas autoridades, um aumento de 9,5% em relação ao ano anterior. Carlos Peres, professor da Faculdade de Ciências Ambientais da Universidade de East Anglia, na Inglaterra, e coautor do trabalho, explica que as conclusões do estudo demonstram que estas águias necessitam de um habitat florestal de alta qualidade para se reproduzir. “A área total da floresta ao redor dos ninhos ativos deve ser suficientemente grande”, explica Peres.

O estudo também mostrou que as presas alternativas que existem em áreas desmatadas não são adequadas para alimentação dos filhotes. “As áreas com mais de 50% de desmatamento não são aptas para que as harpias criem seus filhotes com êxito”, se lê nas conclusões do estudo. Os autores estimam que desde 1985 o desmatamento possa ter causado uma diminuição substancial no número de casais reprodutores, aproximadamente de 3.256.

Peres diz que as harpias estão muito ameaçadas e são as menos conhecidas de todas as grandes águias existentes na Terra. “O desmatamento em seu bastião da Amazônia está destruindo grande parte do habitat dentro de sua área de distribuição geográfica. Como biólogos da conservação, estes se tornam temas urgentes para investigar”, diz o pesquisador brasileiro. Além do desmatamento, Peres afirma que outra ameaça a estas aves é a caça indiscriminada. “Trabalhei durante muito tempo no norte do Mato Grosso e sei que os agricultores mataram muitas harpias ao longo dos anos.”

Os dois cientistas, que há décadas estudam os efeitos do desmatamento sobre a biodiversidade da Amazônia, concordam que os primatas e as preguiças que ainda vivem nas florestas são muito poucos para atender às demandas alimentares da harpia: “Cada adulto consome 800 gramas de carne por dia”, diz Miranda. E acrescenta: “As taxas de alimentação diminuíram substancialmente com a perda de florestas e vimos três indivíduos mal alimentados morrer de fome”.

Miranda e Peres explicam que o desmatamento no estado de Mato Grosso chega a 35% dos 428.800 km2 de floresta que existiam antes da chegada do homem. “É um percentual altíssimo se considerarmos que só foi colonizado há 45 anos”, diz Miranda. Em apenas cinco décadas, o habitat dessa espécie foi reduzido em mais de um terço.

Outra descoberta do trabalho mostrou que nas partes da floresta onde o desmatamento ultrapassou 70% as águias nem sequer podiam fazer ninhos. Os autores concluem que, como as harpias reprodutoras dependem de alimentos específicos e raramente caçam em áreas desmatadas, sua sobrevivência depende da conservação da floresta.

Nesse sentido, os pesquisadores propõem uma ação decisiva de conservação florestal. É fundamental interromper o corte de árvores e assim tentar preservar a conectividade da floresta que ainda existe, levar as águias jovens para habitats com mais árvores e fornecer suplementos alimentares aos filhotes recém-nascidos. “As estratégias imediatas são o fornecimento controlado e responsável de alimentos complementares aos filhotes em ninhos em lugares com mais de 50% de perda de floresta”, diz Miranda, e conclui: “É urgente e necessário que o Governo reprima adequadamente o desmatamento ilegal”.