quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Brasil à beira de eleição

 


Bolsonaro perdeu a guerra porque contrariou o bom senso

No começo do século passado, por uma série de razões, houve uma grande revolta popular no Rio de Janeiro contra a vacinação da população. O episódio, porém, é um marco contra a ignorância e o negacionismo da ciência. Àquela época, a antiga capital era uma cidade insalubre, em péssimas condições de saúde pública, na qual proliferavam doenças contagiosas: tuberculose, peste bubônica, febre amarela, varíola, malária, tifo, cólera etc. O presidente Rodrigues Alves resolveu realizar uma série de reformas urbanas para melhorar as condições de vida da então capital, a cargo do engenheiro Pereira Passo, que alargou ruas e removeu cortiços, desalojando a população; o mais miserável. Diretor-geral de Saúde Pública desde 1903, o médico Oswaldo Cruz assumiu o cargo com a missão de implementar o saneamento público e erradicar a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, principalmente.

Com essa intenção, em 1904, o governo propôs a obrigatoriedade da vacinação, lei aprovada em 31 de outubro, apesar dos protestos, inclusive um abaixo-assinado com 18 mil assinaturas, muito para aquela época. A lei exigia comprovantes de vacinação para realizar matrículas nas escolas, assim como para obtenção de empregos, viagens, hospedagens e casamentos. Previa multas para quem não se vacinasse. O povo se revoltou, estimulado pelos políticos de oposição. A confusão começou no Largo do São Francisco e se espalhou de Copacabana ao Engenho Novo, com quebra-quebras, tiros, barricadas. O saldo foi de 945 pessoas na Ilha de Cobras, 30 mortos, 110 feridos e 461 deportações para o estado do Acre. Historiadores avaliam que a política higienista e a forma autoritária como foi imposta a vacinação causaram a revolta, além do fato de que a vacinação de mulheres era vista como uma ameaça à honra machista.


Quase 120 anos depois, a vacinação em massa no Brasil é uma política de saúde pública muito bem-sucedida. É resultado de muitas campanhas de vacinação, entre as quais se destacam: (1) a campanha contra a meningite na década de 1970, quando uma epidemia matou milhares de crianças e o então regime militar tentou escondê-la; e (2) a campanha contra a poliomielite, que praticamente erradicou a paralisia infantil, porém, na década de 1980, foi objeto de uma grande polêmica entre o general João Batista Figueiredo e o criador da vacina, Albert Sabin, por causa da subnotificação dos casos de poliomielite. Ontem, o DataFolha divulgou pesquisa de opinião amplamente favorável à vacinação contra a covid-19, inclusive das crianças. É uma vitória do Sistema Único de Saúde (SUS) e do nosso modelo federativo, que neutralizou a desastrada política do Ministério da Saúde, graças à atuação de governadores e prefeitos. Estão com vacinação completa 75% da população.

Os números também são acachapantes contra o negacionismo do presidente Jair Bolsonaro, que até hoje não se vacinou e não pretende imunizar a filha de 11 anos: 81% dos entrevistados são a favor da exigência do “passaporte de vacina” para que seja liberada a entrada em locais fechados como bares, restaurantes e órgãos públicos, entre outros. Apenas 18% são contra a exigência do comprovante, e 1% não soube responder. Os mais favoráveis ao passaporte são mulheres (87%), pessoas com mais de 60 anos (87%), com ensino fundamental completo (86%) e aqueles que ganham até dois salários mínimos por mês (85%). Os maiores grupos negacionistas estão estre os homens (24%), pessoas de 25 a 34 anos (22%) e aqueles que têm renda mensal de mais de 10 salários mínimos (28%). No Sudeste, 84% são favoráveis à medida; no Sul, 75%. As donas de casa (90%) são as mais entusiastas da vacinação; entre as empresárias, 60%.

Como a oposição a Rodrigues Alves e Oswaldo Cruz, Bolsonaro perdeu a guerra da vacina. Para 59% da população, sabotou a imunização. Esse resultado, obviamente, terá sérias consequências eleitorais, mesmo com a resiliência dos setores que apoiam tudo o que Bolsonaro propõe, inclusive quando afronta o “bom senso”. Nesse aspecto, a vacinação deve ser objeto de uma reflexão política mais ampla, que nos remete ao comportamento da maioria da população. De certo modo, na eleição de 2018, Bolsonaro explorou com muito êxito o “senso comum” da maioria dos eleitores em relação à crise ética que atingia em cheio o nosso sistema político, sobretudo os partidos.

Há uma grande diferença, porém, entre “senso comum” e “bom senso”. O primeiro é uma postura passiva e acomodada, que segue critérios, comportamentos e modos de agir tradicionais na sociedade. Bolsonaro soube usá-lo com maestria, principalmente nos temas relacionados à mudança de costumes e à defesa da família unicelular patriarcal. O “bom senso”, ao contrário, leva ao reposicionamento crítico, porque resulta de certa sabedoria popular e de uma compreensão da realidade tal como ela é, como o das donas de casa ouvidas na pesquisa. Não resulta de conclusões de caráter ideológico, por exemplo. Quando confrontou o bom senso da sociedade, Bolsonaro perdeu a guerra.

O animal humano

Não devemos esquecer que os humanos são animais.

A população de qualquer animal cresce enquanto houver recursos para alimento e espaço para dejetos. Esgotado um deles, a tribo migra ao encontro de novas fontes e sumidouros. Foi assim que deixamos as proximidades do Kalahari e nos espalhamos pelo mundo. Não encontrando novos recursos, a população declina, como na pandemia da Grande Peste. Então, um novo mundo foi descoberto. Depois, a energia extraída dos fósseis permitiu que a população da espécie continuasse a crescer.

Numa escala secular, alguns se adaptam. Outros juntam-se aos dinossauros. Numa escala geológica, mares se elevam ou contraem, montanhas idem, continentes se deslocam. Alguns animais se adaptam, transformando-se, outros não.


O animal humano é peculiar. Alguém já viu alguns chipanzés bilionários enquanto outros definham? Há notícia de uma ave escravizando e desprezando outra baseada na cor das penas?

Entre humanos a relação entre aumento populacional e ambiente é importante, mas ainda mais crucial é a questão do consumo, pois – grande novidade!!! – nós humanos não somos iguais no que consumimos; alguns extrapolam, outros minguam. Um difícil problema político é definir quem extrapola, mas é aceitável propor que quem definha é a maioria mais pobre, em especial os 50% abaixo da média! E pobreza, aqui, não se limita à falta de dinheiro; há que incluir outras carências. Como disse Arnaldo Antunes: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte. A gente quer comer e fazer amor”!

Quais políticas desenhar para dar aos que definham uma chance de superar suas carências, sem comprometer o habitat?

O caminho para preservar a nossa espécie exige concordar e agir conforme a frase célebre: “Há riqueza bastante no mundo para as necessidades do homem, mas não para a sua ambição”, dita por alguém que, pacificamente, conseguiu algo que a maioria julgava impossível sem violência: Gandhi.

Hoje, pode-se medir os impactos das muitas e diversas atividades humanas (viajar, trabalhar, vestir, comer, defecar…) sobre o meio ambiente e sobre a sua e outras espécies, assim como identificar quem causa o impacto: viagens intercontinentais, em jatos privados, superam em décadas a emissão anual média do animal humano; automóveis poluem mais que ônibus!

O maior desafio atual a nós humanos é reverter a degradação humana – sofrida pelos mais pobres – e a degradação ambiental, sendo que esta agrava a primeira!

O total de humanos que pode viver no planeta depende do impacto que cada um causa. Se aqui está cheio – mais em razão do diferencial de consumo do que da quantidade de indivíduos –, haverá outro planeta para onde ir? Quem poderá ir? Se houver, a recepção aos humanos imigrantes será similar à que sofrem os que se dirigirem à Europa e aos EUA?

É este o futuro que queremos?

No Brasil, o que cobrar dos candidatos, e de nós mesmos, para desenharmos e percorrermos outro caminho? Como nos adaptarmos para vencer o desafio do século e sobreviver?

País poderia ter um regime de metas para a pobreza, mas Bolsonaro vetou

O Congresso aprovou no final do ano a criação de um regime de metas para a pobreza no Brasil. Inspirado no regime de metas de inflação, previa que o País deveria mirar a queda das taxas de pobreza e de extrema pobreza. Caso as metas fossem descumpridas, o governo apresentaria ao Congresso as razões para o descumprimento e que medidas deveriam ser tomadas para ajustar a rota. Bolsonaro vetou.

A proposta, originalmente do projeto de Lei de Responsabilidade Social, do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), foi incluída no projeto do Auxílio

Brasil pelo deputado Marcelo Aro (PP-MG). Previa ainda que o governo publicaria periodicamente um relatório sobre a evolução dessas taxas, as medidas que vem tomando, os riscos e o que poderia ser feito no âmbito do gasto público e do sistema tributário para melhorar.

Poderia ser um norte para as reformas e um escudo que o governo poderia usar contra variadas pressões sobre o Orçamento. Não previa nenhuma punição para os gestores nem qualquer aumento de gasto.

Mas Bolsonaro vetou. Disse que o novo regime “contraria o interesse público” e alega que aumentaria o gasto público total, simplesmente porque o governo teria de reduzir a pobreza (a um nível que ele próprio escolheria!).

O veto impressiona também porque quedas na pobreza são em boa parte causadas pelo crescimento econômico. O governo, assim, sinaliza não apenas não ter compromisso com a redução da pobreza (um objetivo expresso da Constituição) como não confiar no seu próprio taco em relação à evolução do PIB. Reforça, ademais, a imagem do Auxílio Brasil como um programa para outubro, não para o futuro.

Como se não bastante, o veto leva o padrão Pazuello de qualidade: a nova lei foi sancionada mencionando 3 vezes a existência do regime de metas, que foi vetado e então não existe.

Bolsonaro na verdade repete um feito da antecessora. Com outro sistema, metas para a pobreza já haviam sido aprovadas no Congresso em 2015. Do ex-senador Eduardo Suplicy (PT-SP), o projeto tramitou no Parlamento por 16 anos e foi vetado por Dilma.

Em diferentes formatos, metas para a redução da pobreza foram implementadas neste século por democracias desenvolvidas como a Nova Zelândia, o Canadá, o Reino Unido. No Brasil, metas existem para a inflação, para a Selic, para o nível de gastos (o teto), para a diferença entre o arrecadado e o despendido (o resultado primário). Por que não para as famílias que enfrentam privações materiais? Qual outro objetivo o Estado deve priorizar?

Bolsonaro nos debates

Como na fábula do menino pastor e o lobo, o dia chegou. Pressionado pela surra que está levando nas pesquisas, Bolsonaro disse que pretende comparecer a todos os debates da campanha presidencial. Nem a seita acreditou.

Ainda mais agora que ele arranjou uma desculpa perfeita para se ausentar: comer camarões sem mastigar, engolindo-os com cabeça e tudo, baixar no hospital e, deitado na cama, tirar aquela foto já clássica, exibindo a sonda nasogástrica.

Cada internação por dores na barriga ressuscita o atentado sofrido em 2018. Os bolsonaristas acreditam que o episódio, já virado pelo avesso do avesso pela Polícia Federal, ainda pode ter influência no eleitor de 2022. O chato da narrativa é a realidade: o candidato sobreviveu à facada e foi eleito, sendo obrigado a ocupar o cargo e a fingir que governa há mais de três anos.


As facadas que Bolsonaro desfechou no país —destruição institucional, sanitária, ambiental, econômica, educacional, cultural, moral, ética, estética— estão refletidas nele, são indissociáveis da sua imagem de hoje. Tirou a máscara o político que se vendia como outsider, revelando-se o pior presidente da história. Aquele que, com apoio de generais superalimentados, inventou um orçamento secreto para comprar o centrão.

Se participasse dos debates, o capitão não poderia impor regras. Tampouco mandar o oponente calar a boca, como faz com jornalistas. O que diria sobre os filhos, todos envolvidos em tenebrosas transações? E sobre a primeira-dama, cuja conta bancária recebe pagamentos jamais esclarecidos? Revelaria ele, diante das câmeras, os gastos do seu cartão corporativo?

A oposição nem precisaria se esforçar diante do adversário nas cordas. Bastaria apontar e dizer: o senhor é o presidente, portanto, o responsável. Longe do cercadinho, seria suficiente uma só questão —"Cite alguma coisa que deu certo no seu governo"— para o mito beijar a lona.