quinta-feira, 15 de maio de 2025

Dois apitos de cachorro do Brasil Colônia

Há frequências sonoras que só animais ouvem. Não temos aparelho auditivo tão potente quanto cachorros, por exemplo. Adestradores criaram apitos para treiná-los.

A comunicação política sacou essa boa metáfora para nomear técnica ilusionista: "apitos de cachorro" são códigos verbais, gestuais ou gráficos só entendidos por iniciados. Uma espécie de piscadela marota para a sua turma. Movimentos racistas e nazistas têm todo um repertório de apitos. Durante o governo de Jair Bolsonaro, aprendemos um pouco como funcionam.


Quando Roberto Alvim gravou vídeo que imitava a estética nazista, Filipe Martins mexeu na gravata por meio de sinal racista, Allan Santos e Jorge Seif beberam copo de leite diante da câmera, ou quando Bolsonaro falava em "urna auditável" e "viver sem oxigênio, mas jamais sem liberdade", havia mais no subtexto do que um cidadão qualquer podia captar. Só foi impossível decifrar os tuítes de Carlos Bolsonaro. Não se sabe se eram apitos de cachorro para a própria cabeça. Um autoapito.

Mas isso não foi invenção do extremismo político. O vocabulário das forças mais retrógradas da política brasileira possui duas palavras sedutoras que funcionam como apitos de cachorro. A sensibilidade colonial adora invocar "modernização" e "pacificação" para ventilar suas ideias regressivas.

Quando político ou ministro de corte superior diz almejar "modernizar" ou "pacificar" qualquer coisa, os novos coronéis, senhores de escravo e líderes do crime organizado sabem do que falam. Somos do país em que golpe militar se apresentou como "pacificação" e abolição da escravidão, sem programa de inclusão da população negra, como "modernização".

Há três grandes iniciativas de "modernização" e três fantásticos movimentos de "pacificação" em curso.

As "modernizações" costumam enfeitar o discurso de reforma. Mas boa reforma não é reforma qualquer. A primeira se vê em algumas propostas de "reforma administrativa". Lutam contra a burocracia moderna, técnica e independente, em favor de uma burocracia servil, burra, sem expertise e responsabilidade. A segunda está na "reforma trabalhista" que elimina o direito do trabalho e explode a "relação de emprego". A terceira na "reforma do Código Civil", um trator não debatido publicamente e vigiado por cães de guarda ciosos por sua autoria e lucratividade.

No roteiro da "pacificação", temos a anistia a torturadores militares por crimes contra a humanidade. Sancionar seria "revanchismo" (ADPF 320 dormita no STF há 10 anos). Temos a luta por anistia do plano de golpe de 8 de janeiro. "Vamos pacificar, zerar o jogo daqui pra frente", diz Jair. E a conciliação a fórceps dos direitos indígenas no STF, onde indígenas foram intimados a negociar. "Oportunidade de pacificação histórica", diz Gilmar.

Qual o placar do jogo entre Brasil Colônia e Brasil constitucional? Qual pacificação protege o mais fraco? Qual modernização contraria poder econômico?

Nada contra os valores modernos. Nada contra a tentativa de promover, honestamente, a paz. Pelo contrário. É que a empulhação jurídica carrega o seu contrário: um convite ao pré-moderno e pré-constitucional, onde se suprimem direitos e liberdades; um chamado à violência, a "paz" de cima para baixo.

Nosso pior passado ainda se mete no nosso futuro.

José Mujica, uma inspiração que nunca morre

Como já foi dito tantas vezes sobre vários líderes latino-americanos, José Mujica viveu como se fosse imortal. E todos nós, de alguma forma, passamos a acreditar nisso. Sua compreensão da vida em seus últimos anos era tão forte, alimentada acima de tudo por sua interação diária com a natureza, que esse sentimento de vazio não pode surpreender aqueles que realmente o conheceram. Hoje sentimos falta de alguém e sentimos isso na pele.

Entre amargura — às vezes ódio — e deificação, a figura de Mujica não deixa ninguém indiferente. Como era de se esperar, ainda hoje sua figura não gera unanimidade nem apoio de massa inconteste, embora a grande maioria, mesmo aqueles que eram seus inimigos, não consigam esconder o choque.

Em relação à sua liderança, sempre soubemos que Mujica não gostava de comandar, muito menos de gerenciar. Esse certamente não era seu ponto forte. Ele tinha dificuldade em controlar suas emoções, odiava cálculos e sua verbosidade diária muitas vezes o fazia esquecer aquele sábio ditado que diz que um governante também governa quando fala. No entanto, ele era muito pragmático, sabia negociar e “tinha a capacidade de recuar”, como ele mesmo tantas vezes reiterou. Com uma ligação ímpar com os setores populares e a coragem de suas convicções, “gênio e personalidade até a morte”, ele foi capaz de apoiar e até mesmo liderar propostas que inicialmente não só não compartilhava como nem sequer estavam em seu roteiro. Um exemplo disso é a agenda de novos direitos (regulamentação da maconha, descriminalização do aborto, igualdade no casamento, etc.), cuja liderança intelectual e ideológica lhe é erroneamente atribuída de fora de suas fronteiras. Ele geralmente era descuidado na condução dos assuntos e quase nunca seguia um plano. Contudo, ele às vezes sabia descobrir opções e atores capazes de sustentar empreendimentos históricos. Sua principal convicção tinha a ver com a sabedoria suprema do povo, a necessidade imperativa do trabalho coletivo, a autoria plural e os processos longos.

Ele frequentemente explicava sua compreensão de governo da seguinte maneira: “governar é criar as condições para o governo”. Ele fez isso? Em certos aspectos essenciais, sim: ele tinha um diálogo muito bom com empresários e trabalhadores; Mesmo com altos e baixos, ele tinha um bom relacionamento com seus adversários; Obteve amplo apoio popular para medidas ousadas (como o combate frontal ao narcotráfico ou a continuidade e até aprofundamento de políticas sociais inclusivas); Ele quebrou muitos esquemas estabelecidos na esquerda mais dogmática; Tornou-se um símbolo de uma visão alternativa de desenvolvimento e consumismo em nível global, com sua estranha capacidade de comunicação. Ele odiava o protocolo e adorava minar aquelas solenidades nada republicanas que cercam os presidentes e que muitos confundem com a força das instituições.

Com seu modo de viver, coerente com o que dizia e fazia, mesmo com opções particularmente polêmicas, ele revitalizou a legitimidade da política, não só no Uruguai, mas também por meio de seu inesperado impacto internacional. Ele provou amplamente que é muito saudável para um presidente não se considerar um “monarca eleito” e viver como a maioria do seu povo. Ele foi capaz de personalizar uma visão republicana que combinava realismo com propostas simples, mas profundas, como sua condenação ao consumismo ou sua defesa de um uso mais sensato da liberdade e do tempo. Com sua história inusitada e estilo inimitável, ele provou uma das máximas mais exigentes com as quais o Uruguai gosta de se identificar: “ninguém é mais que ninguém”. Ele soube manter a convicção de ser ele mesmo, no erro ou no acerto, em circunstâncias e cenários completamente diferentes, desde longas conversas em sua fazenda ou nas praças, até suas aparições nas Nações Unidas ou na Rio+20. Seus índices de popularidade sempre foram maiores do que seus índices de aprovação da gestão, mais no exterior do que em casa. Talvez aí esteja a chave do seu legado: o de um político com luzes e sombras que soube priorizar como ninguém a sua ligação com os setores populares, vivendo como eles por livre escolha, não por imposição religiosa ou ideológica, sem precisar fingir nada.

Mas a história continua, e Mujica já disse que não vai embora, mas sim “está chegando”. Durante vários anos, especialmente após sua presidência (2010-2015), sem nunca deixar de ser uma figura de liderança e ativa na política nacional, Mujica tem se concentrado cada vez mais em questões regionais e internacionais. Essa era uma das suas principais preocupações desde a juventude. Mas sua proeminência na guerrilha, sua longa e terrível prisão e a construção de sua liderança nacional — tudo isso fez com que suas ideias sobre assuntos internacionais fossem de certa forma ofuscadas e marginalizadas. Desde sua presidência, sua imagem adquiriu popularidade viral inesperadamente nas redes sociais ao redor do mundo, algo que nunca deixa de surpreender alguém como ele, que nunca teve um endereço de e-mail.

Um “Quixote disfarçado de Sancho Pança”, como o definiu o antropólogo uruguaio Daniel Vidart, era um homem muito culto, como se percebe pela intensidade de suas leituras. Seus carcereiros sabiam disso muito bem, pois entre as torturas que escolheram estava impedi-lo de ler, o que o levou à beira da loucura. Mas é preciso dizer que muitas de suas principais ideias surgiram de seu envolvimento direto e diário com a natureza como “agricultor”, algo que ele sempre manteve com especial orgulho. Ambas as dimensões lhe permitiram ser um observador altamente habilidoso e único, que falava com razão sobre os principais problemas do mundo em sua humilde fazenda nos arredores de Montevidéu, encontrando sinais e metáforas extraordinárias sobre o que estava acontecendo globalmente em sua leitura cuidadosa dos clássicos e em seu ponto de vista no topo de seu trator. De uma perspectiva popular, sua longa vida fez dele, em muitos aspectos, um homem sábio que também sabia falar; ele tinha o dom da palavra. “Um torrão de terra com pernas”, a partir daí ele pôde descobrir mais plenamente o que chamou de “o maravilhoso mistério da vida”. Assim, ele foi capaz de entender e explicar os perigos ambientais globais por meio de sua observação cuidadosa de como as éguas davam à luz, como os pássaros variavam em seus hábitos e o que acontecia com as árvores e plantas ao redor de seu rancho.

O outrora forte guerrilheiro finalmente encontrou o significado de lutar contra visões dogmáticas e confrontacionais por caminhos que ele desprezava antes de suas quatro penas de prisão, das quais escapou duas vezes. Ao contrário da opinião de muitos colegas, ele sempre dizia que havia se tornado presidente “não por ser um Tupamaro, mas apesar de ser um”. Foi assim que ele procurou compreender aqueles que pensavam de modo diferente, dos quais ele sabia aprender; Ele perdeu o medo de dizer o que pensava, mesmo que isso o tornasse um “inimigo do povo” ou um transgressor de todas as regras do politicamente correto. Tudo isso o fez se tornar “viral” naquele mundo digital que ele sabia que não era o seu. Quando perguntado sobre sua popularidade internacional, ele sempre afirmou que isso devia ser consequência de “quão ruim era a média global”. Talvez essa mesma franqueza tenha sido o que o tornou tão único e influente.

Mujica, mesmo não gostando, foi um exemplo de vida e superação. Mesmo apesar de si mesmo. É difícil encontrar alguém que amasse a vida mais do que ele. Ele insistia que não acreditava em Deus, mas quando falava da Natureza e dos seres que povoavam os campos de sua fazenda, não havia dúvida de que um forte senso de transcendência residia dentro dele. Ele costumava dizer que gostaria de morrer como um dos pequenos “touros” que viviam no campo, sem barulho ou cerimônia. Ele escolheu o local onde queria que suas cinzas fossem enterradas: em uma araucária perto de sua fazenda, ao lado do terreno onde enterrou Manuela, sua lendária cadela de três patas. Lá, ele certamente também será acompanhado pelos restos mortais de Lucía, sua companheira em uma viagem que se assemelha muito a uma viagem excepcional, quase homérica.

Ele sabia muito bem que estava levando uma vida difícil. Ele era filho de sua história e teimosamente não apagou seus rastros, mesmo que muitas lembranças pesassem sobre ele. Acredito que o Uruguai, sem dúvida, perderá muito com sua morte. Mas ele sempre disse que seu principal objetivo era que os jovens pegassem o bastão e continuassem lutando por causas diferentes das suas, principalmente sem cometer os seus erros, mas unidos pelo compromisso com os outros, com a obsessão de que “ninguém fica para trás”. Claro que há um futuro sem Mujica. É por isso que ele sempre lutou.
Geraldo Caetano

Guerras. Guerras, Guerras


Either man will abolish war, or war will abolish man

Bertrand Russell


A primeira guerra mundial (1914 – 1918) foi uma medonha carnificina, com a qual todos perderam, vinte milhões morreram, entre militares e civis, imensos ficaram mutilados, física e mentalmente, e alguns de boa vontade acharam que este açougue iria servir de vacina contra futuros holocaustos, porventura mais mortíferos. Outros, até, que tinham experimentado o odor fétido da podridão dos cadáveres, nesses esgotos, que eram as trincheiras, infectadas por ratos e piolhos (Barbusse, Vercel, Dorgelès, Remarque, Duhamel, este, como médico), escreveram assinaláveis e inesquecíveis livros, com o objectivo de imprimirem, com vigor, nos imaginários atormentados dos sobreviventes, a recordação do horror que convinha, para todo o sempre, evitar. Jean Giono, grande romancista francês, enorme prosador e destemido ser humano incapaz de matar, andou, contra toda a probabilidade, quatro anos daquela guerra, persistentemente vivo e de espingarda ao ombro, recusando-se a disparar um tiro fosse contra quem fosse. Da sua companhia, sobreviveu ele e o capitão da mesma. Dos seus admiráveis Écrits Pacifistes, extraio esta curta e impressiva passagem: “Eu não consigo esquecer a guerra. Gostaria de a esquecer. Passo, por vezes, dois dias ou três sem pensar nisso e, bruscamente, revejo-a, sinto-a, oiço-a, sofro-a mais uma vez. E tenho medo. Esta noite é o fim de um belo dia de Julho. A planície, lá em baixo, tornou-se completamente arruivada. Vamos cortar o trigo. O ar, o céu, a terra estão imóveis e calmos. Passaram-se vinte anos. E, vinte anos depois, apesar da vida, das dores e dos momentos de felicidade, não me sinto lavado da guerra. O horror desses quatro anos está sempre comigo. Trago comigo a marca deles. Todos os sobreviventes carregam essa marca.” A marca foi de tal fundura, que Giono jurou nunca mais participar em guerra nenhuma e cumpriu-o. E pagaria a factura pesada por ter recusado fazê-lo, por ocasião da segunda guerra mundial, não tendo esquecido os horrores da primeira: Refus dóbéissance!

Roger Martin du Gard que acabara de ter um respeitável mas modesto triunfo com a publicação do seu romance Jean Barois, no ano anterior, e viria a celebrizar-se com a sua admirável saga familiar, Les Thibault, fez a guerra no serviço de ambulâncias, isto é, recolhendo os feridos, estropiados e moribundos, sinistro corolário do pior que a aventura humana tem a oferecer: a guerra, como pífia e mortífera forma de solucionar conflitos de interesses. O contacto quotidiano com essa paisagem de um absurdo goyesco e sangrento, fá-lo-ia, como a Giono, considerar que a guerra era o mal absoluto, não a aceitando, em situação nenhuma, como solução de desentendimentos. E manteve esta resolução, mesmo durante os primeiros tempos da guerra contra Hitler. E só, quando informações fidedignas lhe chegaram ao conhecimento, sobre o que o nazismo significava, decidiu que este talvez viesse a provar ser um mal ainda superior à guerra.

Duhamel, médico e escritor e amigo de Martin du Gard, de asa também ferida, ao contacto com os mutilados e moribundos do conflito, escreveria páginas alucinantes sobre aquele horrível sorvedouro de sangue. A Europa terá, ali, perdido milhares de promissores talentos, pondo fim à sua supremacia no mundo. E terá perdido, até, alguns homens de génio, ainda em embrião. É que a guerra tem só uma virtude: é democrática, mata, por igual, imbecis e homens de valor. A guerra não é EXCLUSIVA, pelo contrário, é assombrosamente INCLUSIVA.

Seja como for, um punhado de homens, um pouco por toda a parte, tentaram dar ardente testemunho de todos aqueles horrores, para tentar que aquela guerra fosse a última das guerras. Porém, vinte anos depois, a humanidade estava envolvida noutra ainda mais mortífera. Será que o inferno não ensina a evitá-lo? Vivemos actualmente, com um sinistro magarefe aqui à porta, que a pretexto de históricos sonhos imperialistas e saudoso do tempo de um império assassino e cheio de boa consciência, encetou uma violação do direito internacional, invadindo um vizinho que o incomodava e dava jeito incorporar no seu seio ansioso por maior volume. Há quem, no Ocidente, use de uma filologia enviesada e assaz masoquista, para justificar todas as agressões, violações e genocídios de um agressor que é alegadamente “pessoa de bem”. Talvez valesse a pena reeditar e mantê-las no mercado, bem à vista, as obras de autores que souberam dar veemente notícia dos horrores da guerra.

 Eugénio Lisboa