sábado, 5 de maio de 2018

Brasil de sempre


Normalidade da gestão: Temer faz mal ao Brasil

Em qualquer parte do mundo, o anormal espanta e inspira providências. No Brasil de hoje, o que choca é a normalidade, não o escândalo. A investigação sobre propinas no setor portuário chegou à família de Michel Temer. E o presidente, que já acumula duas denúncias criminais, diz em entrevista que a hipótese de uma terceira denúncia é “campanha oposicionista”. Maristela, filha de Temer, é interrogada pela polícia sobre a suspeita de ter reformado sua casa com verbas de propinas. Indagado, Temer disse: “Registre o meu sorriso.” Do que ri o presidente?


Pense por um instante na rotina de Temer. Ele conversa diariamente com ministros denunciados por corrupção. Dois, Eliseu Padilha e Moreira Franco, são seus amigos e cúmplices. O ministro Blairo Maggi, da Agricultura, acaba de ser denunciado pela Procuradoria. De novo, corrupção. E Temer o manteve no cargo. O aliado Ciro Nogueira, já atolado na Lava Jato, teve a casa varejada pela Polícia Federal. Mas Temer faz questão de manter o partido dele, o PP, no comando de dois ministérios e da Caixa Econômica Federal.

O Brasil é presidido pela anormalidade. Mas o país vai se acostumando com o inaceitável. A economia reduz a marcha, o desemprego recrudesce e Temer finge ser candidato à reeleição. Mas o que se vê ao redor é um Congresso anestesiado, um Judiciário titubeante, uma sucessão com quase duas dúzias de candidatos a estorvo e uma sociedade à espera da Copa do Mundo. Essa normalidade irradiada pelo governo Temer faz mal ao país. O presidente ri do Brasil. Banalizou-se a perversão.

De que serve discutir ideologias?

Para compreendermos o homem e as suas necessidades, para o conhecermos naquilo que ele tem de essencial, não precisamos de pôr em confronto as evidências das nossas verdades. Sim, têm razão. Têm todos razão. A lógica demonstra tudo. Tem razão aquele que rejeita que todas as desgraças do mundo recaiam sobre os corcundas. Se declararmos guerra aos corcundas, aprenderemos rapidamente a exaltar-nos. Vingaremos os crimes dos corcundas. E, sem dúvida, também os corcundas cometem crimes.

A fim de tentarmos separar este essencial, é necessário esquecermos por um instante as divisões que, uma vez admitidas, implicam todo um Corão de verdades inabaláveis e o inerente fanatismo. Podemos classificar os homens em homens de direita e em homens de esquerda, em corcundas e não corcundas, em fascistas e em democratas, e estas distinções são incontestáveis.

Mas sabem que a verdade é aquilo que simplifica o mundo, e não aquilo que cria o caos. A verdade é a linguagem que desencadeia o universal.

Newton não «descobriu» uma lei há muito disfarçada de solução de enigma, Newton efetuou uma operação criativa. Instituiu uma linguagem de homem capaz de exprimir simultaneamente a queda da maçã num prado ou a ascensão do sol. A verdade não é o que se demonstra, mas o que se simplifica.

De que serve discutir as ideologias? Se todas se demonstram, também todas se opõem, e semelhantes discussões fazem duvidar da salvação do homem. Ainda que o homem, por todo o lado, à nossa volta, revele as mesmas necessidades.

Antoine de Saint-Exupéry, "Terra dos Homens"

Imagem do Dia

Bibury (Inglaterra)

A sobrevida do PT

O Partido dos Trabalhadores (PT) vem se destruindo por dentro, forçado pelas circunstâncias a servir de milícia para seu encalacrado líder máximo, Lula da Silva. O lulismo é hoje a única expressão autorizada do petismo, o que limita drasticamente o raio de atuação do partido. Somando-se ainda todas as vicissitudes petistas nos últimos anos – o impeachment da presidente Dilma Rousseff, os escândalos de corrupção, o legado trágico na economia e a desmoralização das instituições –, nada mais natural do que esperar um profundo desgaste do PT. E no entanto essa legenda surgiu como a detentora da maior bancada da Câmara dos Deputados depois do troca-troca partidário permitido até a primeira semana de abril. Ademais, recente pesquisa de opinião mostrou que o PT, mesmo depois da prisão de seu líder por corrupção e lavagem de dinheiro, continua a ter o maior porcentual de simpatizantes, muito à frente dos demais partidos.

Esse fenômeno pode ser explicado muito menos pelas imaginárias virtudes dos petistas e muito mais pela incapacidade de partidos programáticos, notadamente o PSDB, de ocupar o espaço político que a crise do PT começa a deixar.

O PSDB emprestou hesitante apoio ao governo do presidente Michel Temer no momento em que este mais precisava de suporte para aprovar as reformas de que o País necessitava, e ainda necessita. Além disso, quando Temer foi alvo de uma denúncia inepta da Procuradoria-Geral da República, metade da bancada tucana na Câmara votou contra o presidente. Tal comportamento revelou claramente que faltou aos tucanos naquele momento perspectiva histórica e demonstrou que muitos deles pareciam ter aderido às deletérias práticas do chamado “centrão”, o que decerto prejudicou seu patrimônio eleitoral.

A força institucional de um partido está principalmente em sua capacidade de sustentar uma mensagem, um princípio. No caso do PSDB ou do MDB, não se sabe que mensagem é essa. O MDB, partido do presidente Michel Temer, por exemplo, foi um dos principais responsáveis pelas derrotas mais importantes sofridas pelo governo. Se há uma mensagem aí, é a de que o MDB não é um partido, mas uma federação de interesses privados de seus integrantes, e muitos destes não se sentiram na obrigação de defender Temer e de ajudá-lo a aprovar as reformas. Assim, hoje, o eleitor que escolhe alguma dessas legendas não é capaz de dizer o que espera delas.

Não faz diferença, portanto, votar nesses partidos ou no Partido Progressista (PP), expressão mais bem-sucedida do tal “centrão” fisiológico, e que, por esse motivo, emergiu da janela de infidelidade como o segundo maior partido da Câmara, empatado com o MDB.

Já o eleitor do PT sabe muito bem no que está a votar. A mensagem é direta e cristalina: vota-se hoje no PT para sustentar o lulismo, cuja essência é a promessa do paraíso do consumo de bens e serviços, a que os intelectuais petistas e seu demiurgo chamam, cinicamente, de “justiça social”. Está deliberadamente ausente do discurso lulopetista a necessidade de respeitar as instituições democráticas. Ao contrário: quando estas se interpõem no caminho do lulismo, tolhendo-lhe os movimentos, são imediatamente consideradas “golpistas”.

Ainda assim, a despeito de manter esse vigor militante e de formar a maior bancada da Câmara, o PT diminui a olhos vistos. Na eleição de 2016, o partido caiu de mais de 600 prefeituras para 250, e nenhuma delas é de uma grande cidade. No mesmo ano, foi defenestrado do governo federal. Com a substancial perda de capilaridade municipal e sem a máquina federal, o desempenho petista nas urnas em outubro dependerá basicamente da capacidade de seu chefão, Lula da Silva, de conseguir traduzir em votos o calvário que ora encena na cadeia em Curitiba.

Em condições normais, portanto, seria previsível mais uma acachapante derrota do PT, talvez a definitiva. Mas, em se tratando do atual cenário partidário, em que a mediocridade parece prevalecer, o PT, movido a lulismo, conserva força suficiente para continuar a causar problemas ao País.

Terrorista virtual

Sob a perspectiva do Estado, o cidadão se transformou em um terrorista virtual. Do contrário, não se explica o acúmulo de câmeras que nos vigiam em todas as partes. Somos tratados como criminosos virtuais. O cidadão é um suspeito, numerado, como em Auschwitz, onde cada deportado tinha seu número 
Giorgio Agamben

O caso do morto vivo

Em “Grande Sertão: Veredas”, Guimarães Rosa ensina: “O que assenta justo é cada um fugir do que bem não se pertence. Parar o bom longe do ruim, o frio longe do quente, o rico longe do pobre, o vivo longe do morto”. Peço que Rosa me ajude nessa crônica. E vou logo explicando a razão de começar assim. É que tudo, no caso agora relatado, lembra esse “vivo longe do morto”.

O advogado português Álvaro Dias, 56 anos, foi condenado por falsificar sentenças. Em 18/11/2016. Tendo ainda, nas costas, numerosos processos. Tantos que temia passar todos os seus anos restantes na prisão. Para piorar, depois daquela condenação e antes de ser preso, aconteceu-lhe algo muito desagradável. Ele morreu. Na luxuosa quinta que tinha em Benavente (Santarém), a Herdade da Mata do Duque. No dia de Natal! Esmagado por seu Rolls-Royce Silver Shadow III. O jornal regional O Mirante, reconstituindo o acidente, descreve que o carro “começou a descer em marcha-atrás”. Porque o “travão de mão não fora acionado”. Ao perceber que iria se chocar com as árvores, o condutor “tentou voltar a entrar no veículo para o travar, mas embateu numa árvore, depois de ter conseguido abrir a porta e acabou por ser atropelado”.

O velório reuniu poucos amigos na Capela Mortuária da Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes E tudo parecia nos conformes. Os laudos médicos indicaram que as impressões digitais eram do advogado. As lesões seriam compatíveis com o tipo de acidente. O rosto, no caixão, foi “tapado por haver sangramento”; mas as fotos, antes, revelavam semelhança física. O cadáver logo foi cremado. E, para sorte dele (e da família), todos os processos em que era réu acabaram encerrados.

Ocorre que “um enterro é a procissão algébrica das dúvidas” (Rosa, Os Chapéus Transentes). Dando-se que, pouco depois, uma denúncia anônima chegou ao juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal (Lisboa). A de que Álvaro Dias havia contratado um cadáver substituto.

Nas investigações sobre a denúncia dessa morte que não houve foram encontrados, nas gavetas de seu escritório, “documentos falsos, em número de dezenas”. E muitos indícios suspeitosos: a “agência funerária sita em localidade muito distante dos locais de residência da vítima”; “ligação entre o médico-legista, outrora aluno do advogado e a vítima”; e a “invulgar celeridade na autópsia e na cremação”. As aspas são da Visão portuguesa. Novos exames apontaram 23 outras falhas na comprovação dessa morte. E nosso Álvaro Dias corre o risco de ter tido tanto trabalho pra nada. “Quem fala muito, dá bom dia a cavalo” (Rosa, Minha Gente). Que a polícia está indo à sua procura.

Mas afinal, dirão apressados leitores, que isso tem a ver com nosso Brasil? Duas coisas, meus senhores. Uma, o juiz do feito é o senhor doutor Carlos Alexandre. O Sérgio Moro de Portugal. Responsável por julgar, na Operação Marquês, o ex-primeiro ministro José Sócrates. Num processo do PT de Portugal que envolve Lula, José Dirceu e a Odebrecht. Todos muito conhecidos nossos. Em despacho, ele declarou que “a comprovar-se a veracidade das suspeitas, isso transporta as instituições portuguesas para o nível do absurdo”. Os olhos são, mesmo, “a porta do engano” (Rosa, O Espelho).

A outra razão é o lugar para onde teria fugido, e hoje viveria bem, o tal Álvaro Dias. Quem apostou no Brasil, ganhou fácil. Tanto lugar no mundo e tinha que vir logo para cá. Pobres de nós. Pensando bem, pobre dele. Na ilusão de que, por aqui, ainda se pode ter grandes fazendas, sítios, apartamentos e dinheiro em malas, com a esperança de não ir parar nunca na cadeia. Quando, considerando os últimos acontecimentos, não dá para ter tanta certeza assim.

José Paulo Cavalcanti Filho

Dimensão simbólica da terra

Valdsom Braga 
Durante uma pesquisa no Alto São Francisco, um lavrador octogenário discorria sobre seus problemas para produzir, contando que não aceitara o convite dos filhos para morar na cidade. Alegou: “Aqui eu planto e colho tudo que preciso; lá na rua, eu vou comer de sacola”.

Transpareceu, naquele momento, a dimensão simbólica da terra para quem vive e trabalha nela. Isso ultrapassa a esfera econômica, constituindo razão para resistir aos apelos do mundo urbano ou à sedução de empréstimos bancários, porque se exige a propriedade como garantia.

O agricultor tradicional manifesta, permanentemente, orgulho por seu terreno, que é a principal referência de sua vida. Há relação afetiva, porque ela proporciona alimentação farta e moradia permanente. Assim, não é apenas instrumento de produção. Ter a propriedade de uma área suficiente para a agricultura de subsistência representa a diferença entre ser cidadão e ser miserável, porque ela confere segurança, dignidade e autonomia. O dono nunca será um zé-ninguém, sempre escorraçado em espaços alheios.

Aquele senhor não iria integrar-se ao mercado, porque o ambiente urbano faz muitas exigências, incluindo qualificação profissional e uso constante da moeda. Preferiu, então, permanecer em sua fazendinha, que seria sempre uma barreira material e simbólica entre ele e a miséria.

Desde meados do século XX, houve intenso fluxo migratório para a cidade, em busca de escola, assistência médica, previdência e trabalho menos penoso. No entanto, a maioria não estava preparada para o espaço urbano, fixando-se em favelas e submetendo-se ao subemprego e à marginalização social.

Os lavradores que resistiram em seu torrão sabiam que não seriam automaticamente integrados ao contexto moderno e perderiam suas sólidas referências como gente do campo. Queriam continuar livres, sem aproximação de quem poderia humilhá-los. Rejeitavam também financiamento bancário, porque se lembravam de amigos que perderam sua terra e se tornaram boias-frias espoliados por “gatos” e pelo agronegócio, enquanto puderam trabalhar. Viraram, depois, mendigos em cidades grandes.

A diferença entre o agricultor tradicional e o empresário rural está não na dimensão da propriedade, mas em seus vínculos com ela. Quem tem, entre outros negócios, uma fazenda não cria afeição por ela, que é apenas um instrumento de produção para propiciar lucro. Enquanto isso, os que vivem em contato direto com a terra desenvolvem atitude diferente, porque perdê-la não é apenas um prejuízo. Trata-se da destruição de seu modo de vida com o rompimento da barreira que os protege da miséria.

Atualmente, os pequenos proprietários rurais têm sofrido ataques violentos de bandidos. Estão também expostos a diversas formas de manipulação política. Alguns agentes podem ensejar imenso potencial de conflito, abrindo caminho para a interferência de grupos extremistas nos dois polos, sem considerar seu futuro, sua dignidade e seu bem-estar.

Gilda de Castro