segunda-feira, 15 de julho de 2019

O arroz da raposa

Julio Cortázar tem um conto que sai de um palíndromo – Satarsa. Um menino brinca de desarticular as palavras. No fundo, um escritor é um sujeito que pela vida afora continua a mexer com as palavras. Para diante delas, estranha esta, questiona aquela. O menino de Cortázar, que devia ser ele mesmo, virava a palavra pelo avesso e se encantava. Saber que a leitura pode ser feita de trás pra diante é uma aventura.

E às vezes dá certo. No conto Satarsa, a palavra éRoma. Lida ao contrário, também faz sentido. Deixa de ser Roma e vira amor. Para o leitor adulto e apressado, isto pode ser uma bobagem. Para o menino é uma descoberta fascinante. Olhos curiosos, o menino vê a partir daí que o mundo pode ser arrumado de várias maneiras. Não só o mundo das palavras. É a partir dessa possibilidade de mudar que o mundo se renova. E melhora.


Ou piora. Não teria graça se só melhorasse. O risco de piorar é fundamental na aventura humana. Mas estou me afastando da história do Cortázar. E sobretudo do que pretendo dizer. Ou pretendia No embalo das palavras, vou me deixando arrastar de brincadeira, que nem o menino do conto. Um dia ele encontrou esta frase: "Dábale arroz a la zorra el abad". Em português, significa: "O vigário dava arroz à raposa". Soa estranho isso, não soa?

Mesmo para um menino aberto ao que der e vier, a frase é bastante surrealista. Um vigário e uma raposa. Na fábula e na vida real, a raposa é espertíssima. Será que come arroz? Não importa. O que importa é que a oração em espanhol pode ser lida de trás pra diante. E fica igualzinha: "Dábale arroz a la zorra el abad". Pois este palíndromo não só encantou o menino Cortázar, como decidiu o seu destino de escritor. Isto sou eu quem digo.

Ele percebeu aí que as palavras podem se relacionar de maneira diferente. E mágica. Sem esta consciência, não há poeta, nem poesia. Como a criança, o poeta tem um olhar novo. Lê de trás pra diante. No castelhano, a brincadeira é o "vesre". Falar ao revés. Em vez de dizer "mujer", dizer "jermu". Cheguei até aqui e não disse o que queria. Digo então que tentei uma série de anagramas com o Brasil de hoje. Quem sabe virando pelo avesso a gente acha o sentido?
Otto Lara Resende

Zero 3 diz ter 'certo gabarito' para ser embaixador

Em vídeo divulgado neste sábado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) defendeu a indicação do seu nome para ocupar o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos. "Eu tenho um certo gabarito, e é isso que me dá respaldo para essa possibilidade de nomeação", declara no vídeo, esforçando-se para adensar as credenciais que exibira numa entrevista concedida na véspera. "Tenho uma vivência pelo mundo, já fiz intercâmbio, já fritei hambúrguer lá nos Estados Unidos" ele afirmara na sexta-feira, após encontrar-se com o chanceler Ernesto Araújo.

Ironicamente, a hipótese de conversão de Eduardo em embaixador, mencionada por Jair Bolsonaro na última quinta-feira, não empolgou nem os aliados. Guru da família Bolsonaro, o polemista Olavo de Carvalho também divulgou um vídeo para desaconselhar o gesto. Alegou que o filho Zero Três do presidente deveria dedicar-se à "missão histórica" de conduzir na Câmara uma CPI para investigar o Foro de São Paulo. A deputada estadual Janaína Paschoal aconselhou o correligionário a dizer "não" ao pai, recusando o convite.



Eduardo dá de ombros. Sustenta no vídeo que a possibilidade de virar embaixador "existe não pelo fato de eu ser um mero filho do presidente Jair Bolsonaro." Ele esmiúça o seu currículo: "Sou formado em Direito pela UFRJ, advogado concursado, passei na prova da OAB, escrivão da Polícia Federal, uma pós-graduação em Economia. Falo inglês, português e espanhol. Tenho uma vivência no mundo. Já tive oportunidade de viajar por boa parte dele. E já fiz várias idas aos Estados Unidos. Algumas a lazer, algumas também a trabalho."

A lei que disciplina a escolha de embaixadores leva o número 11.440. É de 29 de dezembro de 2006. Determina que os "chefes de missões diplomáticas permanentes" devem ser escolhidos entre os ministros de primeira e de segunda classe do Itamaraty. Abre uma exceção no parágrafo único do artigo 41. Anota que, excepcionalmente, poderão ser indicados brasileiros de fora da carreira diplomática, desde que sejam maiores de 35 anos e ostentem "reconhecido mérito e relevantes serviços prestados ao país".

Eduardo Bolsonaro absteve-se de recordar em seu vídeo que completou 35 anos há quatro dias. Os críticos não enxergam nele nenhum mérito específico além de ser filho do presidente. Tampouco vislumbram em sua trajetória os relevantes serviços exigidos por lei. Comparado ao processo de seleção do Instituto Rio Branco, que forma os diplomatas, o concurso para escrivão da Polícia Federal é um asterisco.

A embaixada em Washington costuma ser chefiada por diplomatas que têm de carreira mais tempo do que o Zero Três tem de vida. Por exemplo: Sérgio Amaral, o último embaixador do Brasil em Washington, foi afastado por Jair Bolsonaro em abril. Antes de comandar a embaixada nos Estados Unidos, ele atuara como diplomata em Paris, Bonn, Genebra e na própria capital americana. E servira como embaixador em Londres e Paris.

A despeito de todas as circunstâncias que o rodeiam, o Zero Três não se dá por achado: "Se parar para reparar, se somar isso tudo [Direito na UFRJ, concurso para escrivão, pós em economia, o inglês, o espanhol), viagens internacionais que fiz com o presidente Bolsonaro, como presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, eu tenho um certo gabarito, e é isso que me dá respaldo para essa possibilidade de nomeação".

Eduardo Bolsonaro diz que, depois da eleição do seu pai, fez o que chamou de "rodada" de encontros com investidores americanos. Não cita nenhum. Mas assegura ter detectado em "todos" algo em comum: a "possibilidade de investir seu dinheiro no país". Lembra no vídeo episódio ocorrido na visita do seu pai à Casa Branca, quando seu "trabalho internacional" foi elogiado por Donald Trump.

Jair Bolsonaro também reproduziu no twitter vídeo com o elogio de Trump ao filho. O capitão indagou: "De 2003 para cá, você sabe quem foram nossos embaixadores em Washington?" Mais: "Nesse período como foram nossas relações com os Estados Unidos?"

Apologistas de Trump, o presidente e seu filho fingem desconhecer que a atribuição de um embaixador em Washington não se restringe a manter boas relações com a Casa Branca. Ele representa o país junto à sociedade americana. Isso inclui, por exemplo, organismos com os quais Trump vive às turras e personagens políticos e empresariais que o presidente americano abomina. Gente como as lideranças do Partido Democrata, por exemplo.

O filho do presidente foi enviado à Câmara pelos votos de mais de 1,8 milhão de eleitores de São Paulo. "O que pensam os quase dois milhões de eleitores do deputado?", indagou Janaína Paschoal no Twitter. Ela acrescentou: "Quem fez Eduardo Bolsonaro deputado federal foi o povo. Isso precisa ser respeitado. Crescer, muitas vezes, implica dizer não ao pai". Na opinião de Olavo de Carvalho, a ida para Washington levaria à "destruição da carreira" de Eduardo.

Imagem do Dia

 Ilha das Flores, no Lago Petén Itzá (Guatemala)

É claro que Bolsonaro não ouve os militares, apenas faz uso deles, quando precisa

O fato de representar o antiLula beneficia expressivamente Jair Bolsonaro. Apesar dos muitos erros cometidos, uma expressiva parcela do eleitorado ainda confia no atual governo apenas porque conseguiu tirar o PT do poder. Este é o principal argumento dos defensores do presidente, e somente agora alguns deles começam a cair na realidade.

Daqui para frente, as críticas vão se acirrar, porque o governo não deslancha, embora não tenha adversários, pois Lula da Silva continue preso e a oposição não represente qualquer ameaça. Ou seja, não há motivos para essa inércia no enfrentamento das graves questões nacionais.

Muitos eleitores de Bolsonaro já cansaram de esperar e começam a admitir que o governo possa se transformar num grande fracasso. São aqueles que, no segundo turno, votaram em Bolsonaro por exclusão, exclusivamente para se livrar do PT. É uma parcela formada por eleitores conscientes e formadores de opinião.

Dirigir um país problemático como o Brasil não é brincadeira. Muitos eleitores de Bolsonaro conheciam suas limitações, mas julgavam que ele fosse se apoiar nos militares. Achavam que, pela primeira vez, o Brasil teria um governo militar eleito democraticamente, algo verdadeiramente novo.


Quando o novo presidente montou a equipe, essa possibilidade ficou clara, em função do grande número de militares espalhados pelo dois principais escalões do governo. O que ninguém esperava é que Bolsonaro fosse desprezar o aconselhamento dos militares e preferisse seguir as sugestões de seus três filhos mais velhos, que obedecem à orientação do escritor Olavo de Carvalho, o pornográfico guru virginiano.

Os entrechoques entre a ala militar e a ala olavista eram inevitáveis. Primeiro, houve a campanha contra o general Hamilton Mourão, que só não deixou o governo porque foi eleito, é indemissível. Depois, os irmãos investiram contra o ministro Gustavo Bebianno, grande amigo e homem de confiança de Bolsonaro, e não pararam até ele ser injustamente demitido.
Com esse comportamento arrogante, pretensioso e errático, o governo Bolsonaro não poderá ir longe, tem o mesmo valor de uma nota de três dólares, com a foto de seu amigo Donald Trump (C.N.)
Em abril, o alvo passou a ser o general Santos Cruz e os ataques atingiram até o general Villa Bôas. A cúpula militar enfim protestou e Bolsonaro decidiu enquadrar Olavo de Carvalho e os filhos. O guru saiu de cena mesmo, mas o filho Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, deu um jeito de enredar o general Santos Cruz, e Bolsonaro demitiu o velho amigo, sem haver motivo concreto.

Mais recentemente, o alvo passou a ser o general Augusto Heleno, e Bolsonaro teve de intervir mais uma vez, para acalmar o Zero Dois, que contava com apoio declarado do Zero Três, o deputado Eduardo Bolsonaro.

Agora, com a decisão de nomear o filho Zero Três para embaixador nos EUA, a situação clareou de vez e os eleitores mais lúcidos de Bolsonaro caíram na real. Embora reconheça não estar preparado para governar, como admitiu ontem em “live” com o “apóstolo” Valdemiro, o presidente não consulta os militares, ele apenas os usa, quando é de sua conveniência.

É triste constatar essa realidade, porque não existe estadista solitário. Todos se sustentam em seus estafes. Até mesmo os chefes mafiosos têm seus “consiglieri” (conselheiros). Mas Bolsonaro pensa (?) que não precisa disso e prefere ouvir o guru virginiano e as peruadas de Zero Um, Zero Dois e Zero Três, que nada representam juntos ou separados, pois a soma dos três equivale a um Zero à Esquerda.
Carlos Newton

Crise de inteligência (lá e cá)

Há uma crise de Inteligência: como é possível que 40% dos americanos achem que Donald Trump vale a pena? Precisamos olhar a neurociência
Jeff Jarvis, professor da City University de Nova York

Os planos de saúde voltam a atacar

Está no forno de um consórcio das grandes operadoras de planos de saúde um projeto destinado a mudar as leis que desde 1998 regulamentam esse mercado. Chama-se “Mundo Novo”, tem 89 artigos e está trancado numa sala de um escritório de advocacia de São Paulo. O plano é levá-lo para o escurinho de Brasília, deixando-o com o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, e com o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia. Ambos ajudariam o debate se divulgassem o “Mundo Novo” no dia em que chegasse às suas mesas, destampando-lhe a origem.


É a peça dos sonhos das operadoras. O projeto facilita os reajustes por faixa etária, derruba os prazos máximos de espera, desidrata a Agência Nacional de Saúde Suplementar e passa muitas de suas atribuições para um colegiado político, o Conselho de Saúde Suplementar (Consu), composto por ministros e funcionários demissíveis ad nutum.

Irá para o Consu a prerrogativa de decidir os reajustes de planos individuais e familiares, baseando-se em notas técnicas das operadoras (artigos 85 e 46) e não nos critérios da ANS. Cria a girafa do reajuste extraordinário, quando as contas das operadoras estiverem desequilibradas. Uma festa.

A ANS perderá também o poder de definir o rol de procedimentos obrigatórios que as operadoras devem oferecer. Essa atribuição passa para o Consu, que não tem equipe técnica, mas pode ter amigos. Desossada, a ANS perderá também o poder de mediação entre os consumidores e as operadoras. (Tudo isso no artigo 85.)

Há uma gracinha no artigo 43. Ele determina que os hospitais públicos comuniquem “imediatamente” às operadoras qualquer atendimento prestado a seus clientes para um eventual ressarcimento ao SUS. Exigir isso de uma rede pública que não atende os doentes de seus corredores é uma esperteza para não querer pagar à Viúva o que lhe é devido.

O melhor momento do projeto “Mundo Novo” está no artigo 71. Hoje, se uma pessoa quebrar a perna e não for atendida, a operadora é multada. Feita a mudança, só serão punidas “infrações de natureza coletiva”. Por exemplo, se a empresa tiver deixado de atender cem clientes com pernas quebradas. As operadoras finalmente realizarão seu sonho, criando um teto para a cobrança de multas. Elas nunca poderão passar de R$ 1,5 milhão. Com isso, estimula-se a delinquência.

No papelório do “Mundo Novo” não há um só artigo capaz de beneficiar os consumidores.

A ousadia de ir além das amarras ideológicas

Faço aqui, no espaço quinzenal que tenho nesta Folha, uma provocação que julgo saudável para a política e para os partidos, com o único intuito de contribuir para um debate que temos postergado, mas que a sociedade há muito demanda. É uma reflexão necessária diante do impacto provocado pelos oito deputados do PDT, dentre os quais me incluo, que votaram “sim” à reforma da Previdência, e os 11 do PSB, contrariando a orientação partidária.

Não estamos falando de dois ou três parlamentares, mas de praticamente um terço das bancadas de duas relevantes siglas que ocupam posição mais ao centro no espectro da esquerda. A expressividade dessa dissidência acendeu ao menos a luz amarela nas estruturas?


Sabemos que a extrema esquerda não admite flexibilidade alguma de posicionamento, pois está enclausurada em suas amarras. No entanto, uma parcela da centro-esquerda quer dialogar com o contexto e a sociedade e caminha para se modernizar. Nisso nos fiamos, nós que temos convicções sociais fortes, olhamos para o futuro do Brasil e enfrentamos o desafio urgente de termos crescimento sustentável, condição para a consolidação da justiça social.

Muitos partidos já não representam de fato a sociedade, mas somente alguns de seus nichos. Embora tenham em seus quadros um número cada vez maior de deputados com visão modernizante, as siglas ainda ostentam estruturas antigas de comando, e na maioria faz falta mais democracia interna.

Muitas vezes, consensos sobre pautas complexas não são construídos de baixo para cima, e cartilhas antigas se sobrepõem aos estudos e evidências. Quando algum membro decide tomar uma decisão que considere responsável e fiel ao que acredita ser importante para o país, há perseguição política. Ofensas, ataques à honra e outras tentativas de ferir a imagem tomam lugar do diálogo. Exatamente o que vivo agora.

A boa política não pode ser dogmática. Discordâncias são normais no cotidiano e o ajuste e as acomodações das diferentes visões vão se dando em questões menores, com as bancadas muitas vezes sendo liberadas para as votações. O que foge completamente a esse processo e demonstra o grau do conflito instalado é quando a “rebeldia”, como está sendo interpretado o voto de opinião, atinge um terço de bancadas expressivas.

Encaro esse debate como de fato a única tentativa da centro-esquerda de se renovar, mas os partidos estão virando as costas para essa realidade. É mais fácil lidar no plano da insubordinação. A construção de novas mentalidades não é processo fácil e exige coragem.

No fundo, são dois os temas que se sobrepõem nesse momento. A lógica de funcionamento dos partidos políticos no presidencialismo e o processo de renovação da política brasileira.

A combinação de presidencialismo e federalismo, como ocorre no país, favorece as chamadas “indisciplinas partidárias”. Busca-se reforçar o poder da liderança partidária punindo dissidentes pela máxima de que os partidos não podem passar sinais de fraqueza. Será preciso uma reforma muito profunda do nosso sistema político para produzir os incentivos necessários para “disciplinar” as siglas. Enquanto existir o presidencialismo, o multipartidarismo e a federação, as lideranças partidárias precisarão ouvir e negociar com suas bases, dissidentes ou não.

A ampla renovação política que está em curso e da qual faço parte agrava o quadro de conflitos internos dos partidos. É racional que as lideranças recorram a argumentos de ocasião para justificá-los. Mais racional, contudo, é pensarmos no Brasil.
Tabata Amaral