quarta-feira, 5 de março de 2025
A implosão da mentira
Mentiram-me.
Mentiram-me ontem e hoje mentem novamente.
Mentem de corpo e alma completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.
Mentem sobretudo impunemente.
Não mentem tristes,
alegremente mentem.
Mentem tão nacionalmente
que acho que mentindo história a fora
vão enganar a morte eternamente.
Mentem, mentem e calam
mas nas frases falam e desfilam de tal modo nuas
que mesmo o cego pode ver a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil e para alguns é cara e escura,
mas não se chega à verdade pela mentira
nem à democracia pela ditadura.
Evidentemente crer que uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo permanentemente.
Mentem, mentem caricaturalmente,
mentem como a careca mente ao pente,
mentem como a dentadura mente ao dente
mentem como a carroça à besta em frente,
mentem como a doença ao doente,
mentem como o espelho transparente
mentem deslavadamente como nenhuma lavadeira mente ao ver a
nódoa sobre o rio
mentem com a cara limpa e na mão o sangue quente,
mentem ardentemente como doente nos seus instantes de febre,
mentem fabulosamente como o caçador que quer passar gato por
lebre
e nessa pilha de mentiras a caça é que caça o caçador
e assim cada qual mente indubitavelmente.
Mentem partidariamente,
mentem incrivelmente,
mentem tropicalmente,
mentem hereditariamente,
mentem, mentem e de tanto mentir tão bravamente
constroem um país de mentiras diariamente.
Mentiram-me ontem e hoje mentem novamente.
Mentem de corpo e alma completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.
Mentem sobretudo impunemente.
Não mentem tristes,
alegremente mentem.
Mentem tão nacionalmente
que acho que mentindo história a fora
vão enganar a morte eternamente.
Mentem, mentem e calam
mas nas frases falam e desfilam de tal modo nuas
que mesmo o cego pode ver a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil e para alguns é cara e escura,
mas não se chega à verdade pela mentira
nem à democracia pela ditadura.
Evidentemente crer que uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo permanentemente.
Mentem, mentem caricaturalmente,
mentem como a careca mente ao pente,
mentem como a dentadura mente ao dente
mentem como a carroça à besta em frente,
mentem como a doença ao doente,
mentem como o espelho transparente
mentem deslavadamente como nenhuma lavadeira mente ao ver a
nódoa sobre o rio
mentem com a cara limpa e na mão o sangue quente,
mentem ardentemente como doente nos seus instantes de febre,
mentem fabulosamente como o caçador que quer passar gato por
lebre
e nessa pilha de mentiras a caça é que caça o caçador
e assim cada qual mente indubitavelmente.
Mentem partidariamente,
mentem incrivelmente,
mentem tropicalmente,
mentem hereditariamente,
mentem, mentem e de tanto mentir tão bravamente
constroem um país de mentiras diariamente.
Affonso Romano de Sant’Anna
O sueco
Os problemas do Brasil, as mesquinharias de nossa vida pública, a miséria fundamental de nosso povo, todas essas coisas de repente cansam e desanimam uma pessoa sensível. Evandro Pequeno encontrou uma solução: “Eu sou um sueco em trânsito.”
Não saber de nada, não entender uma palavra do que estão dizendo e escrevendo por aí, não ter nada a ver com nada, não se sentir responsável por nada (muito menos pela famosa dívida externa), não ter vergonha de nada: ser um sueco em trânsito.
E, se possível, como Evandro fazia, tocar fagote.
Rubem Braga, "Recado de primavera"
Não saber de nada, não entender uma palavra do que estão dizendo e escrevendo por aí, não ter nada a ver com nada, não se sentir responsável por nada (muito menos pela famosa dívida externa), não ter vergonha de nada: ser um sueco em trânsito.
E, se possível, como Evandro fazia, tocar fagote.
Rubem Braga, "Recado de primavera"
O que Orwell pensaria da briga de Trump e Zelenski?
Quem leu "1984", de George Orwell, lembra-se do ambiente de permanente vigilância e opressão, do medo e da lavagem cerebral, da novilíngua e do Grande Irmão. Mas em geral esquece a lição de geopolítica que o romance encerra.
Em "1984" há três blocos. O primeiro, dominado pelos Estados Unidos da América, é a Oceânia, e inclui todas as Américas mas também as Ilhas Britânicas. O segundo bloco é a Eurásia, dominado pela União Soviética e que vai, como o ex-presidente Dmitri Medvedev gosta tanto de dizer ainda hoje, de Lisboa a Vladivostok. O terceiro é a Lestásia, e é dominado pela China, incluindo o Extremo Oriente e parte do Sudeste Asiático.
Donald Trump não leu "1984". Mas o mundo de que ele gosta é quase igual ao do romance. Há três potências que têm supersoberania: ele, Vladimir Putin e Xi Jinping. Os outros que se adaptem. As redes sociais, os algoritmos e a inteligência artificial tratam da hipervigilância. E a democracia dissolve-se num permanente espetáculo narcísico.
Esse ensaio tinha por título "Sobre a Unidade Europeia" e desenhava a proposta de uma federação continental, com um forte viés socialista democrático, uma sociedade pluralista e de bem-estar que assegurava a sua independência por meio da integração de países médios e pequenos. A construção da unidade europeia era a forma de evitar o esmagamento do continente entre o imperialismo do Kremlin e o da Casa Branca, que acabaram por dividir a Europa a meio.
Pergunto-me como teria Orwell visto aquele vergonhoso momento de agressão verbal de Trump e seu vice, J. D. Vance, a Volodimir Zelenski, no Salão Oval, na semana passada. Por um lado, creio que não teria ficado surpreendido, ele que uma vez escreveu que "se quereis uma visão do futuro, basta imaginar a imagem de uma bota a pisar um rosto humano, para sempre".
Ele entenderia que a brutalidade para o novo fascismo do século 21, tal como para o original do século 20, é uma parte essencial da natureza política do movimento, não apenas um subproduto.
Por outro lado, Orwell ficaria ainda mais assustado, porque o que está em cima da mesa agora não é Trump e Putin dividirem a Europa a meio, mas partilharem-na entre si. E ficaria ainda mais preocupado porque os instrumentos tecnológicos de vigilância que existem hoje são ainda mais perigosos do que aqueles que ele imaginou para o seu romance.
Perante isso, o que fazer? O episódio do Salão Oval teve ao menos a vantagem de deixar claro perante os europeus que a sua unidade não é apenas uma ideia bonita, mas uma necessidade prática.
Os desafios atuais transcendem as fronteiras da Europa. Faz sentido hoje reinventar o mundo livre, e incluir todas as democracias que ainda não soçobraram, para reformar as Nações Unidas e refazer a globalização. Para grandes males, grandes remédios.
Em "1984" há três blocos. O primeiro, dominado pelos Estados Unidos da América, é a Oceânia, e inclui todas as Américas mas também as Ilhas Britânicas. O segundo bloco é a Eurásia, dominado pela União Soviética e que vai, como o ex-presidente Dmitri Medvedev gosta tanto de dizer ainda hoje, de Lisboa a Vladivostok. O terceiro é a Lestásia, e é dominado pela China, incluindo o Extremo Oriente e parte do Sudeste Asiático.
Donald Trump não leu "1984". Mas o mundo de que ele gosta é quase igual ao do romance. Há três potências que têm supersoberania: ele, Vladimir Putin e Xi Jinping. Os outros que se adaptem. As redes sociais, os algoritmos e a inteligência artificial tratam da hipervigilância. E a democracia dissolve-se num permanente espetáculo narcísico.
Foi em 1948 que George Orwell escreveu "1984" (o título é uma mera inversão do ano em que estava). O romance foi o seu diagnóstico de pesadelo para o mundo que antevia antes de morrer, no ano seguinte. Mas também em 1948 Orwell escreveu um ensaio político, que quase ninguém leu, no qual expunha o seu otimismo da vontade em relação à alternativa política ao mundo que temia.
Esse ensaio tinha por título "Sobre a Unidade Europeia" e desenhava a proposta de uma federação continental, com um forte viés socialista democrático, uma sociedade pluralista e de bem-estar que assegurava a sua independência por meio da integração de países médios e pequenos. A construção da unidade europeia era a forma de evitar o esmagamento do continente entre o imperialismo do Kremlin e o da Casa Branca, que acabaram por dividir a Europa a meio.
Pergunto-me como teria Orwell visto aquele vergonhoso momento de agressão verbal de Trump e seu vice, J. D. Vance, a Volodimir Zelenski, no Salão Oval, na semana passada. Por um lado, creio que não teria ficado surpreendido, ele que uma vez escreveu que "se quereis uma visão do futuro, basta imaginar a imagem de uma bota a pisar um rosto humano, para sempre".
Ele entenderia que a brutalidade para o novo fascismo do século 21, tal como para o original do século 20, é uma parte essencial da natureza política do movimento, não apenas um subproduto.
Por outro lado, Orwell ficaria ainda mais assustado, porque o que está em cima da mesa agora não é Trump e Putin dividirem a Europa a meio, mas partilharem-na entre si. E ficaria ainda mais preocupado porque os instrumentos tecnológicos de vigilância que existem hoje são ainda mais perigosos do que aqueles que ele imaginou para o seu romance.
Perante isso, o que fazer? O episódio do Salão Oval teve ao menos a vantagem de deixar claro perante os europeus que a sua unidade não é apenas uma ideia bonita, mas uma necessidade prática.
Os desafios atuais transcendem as fronteiras da Europa. Faz sentido hoje reinventar o mundo livre, e incluir todas as democracias que ainda não soçobraram, para reformar as Nações Unidas e refazer a globalização. Para grandes males, grandes remédios.
Trump abandonar Ucrânia evoca pacto de 1938 com nazistas
"Não posso deixar de me perguntar: já estivemos aqui antes? Tchecoslováquia, 1938. Temos um agressor às nossas portas, com a intenção de tomar território que não é dele. E os negociadores [...] já estão entregando suas fichas de barganha antes mesmo de as negociações começarem. Essa é uma tática desastrosa. E estamos caminhando a toda velocidade para o desastre."
Essas observações foram feitas em fevereiro por Kaja Kallas, ex-premiê da Estônia e atual alta representante da União Europeia para Exterior e Segurança, durante a Conferência de Segurança de Munique.
O local do discurso não poderia ser mais simbólico: a poucas centenas de metros do prédio no qual, há 86 anos, líderes da França e do Império Britânico assinaram o Acordo de Munique, que marcou o clímax da política de apaziguamento dos anos 1930, quando potências ocidentais concordaram em ceder a ambições territoriais da Alemanha nazista na esperança de que isso serviria para evitar um novo conflito mundial.
Como parte do acordo, em 1938, líderes franceses e britânicos decidiram abandonar aos nazistas a antiga Tchecoslováquia (hoje dividida entre República Tcheca e Eslováquia), permitindo que o regime de Adolf Hitler anexasse, sem luta, parte considerável do país da Europa Central. Em nenhum momento os tchecoslovacos foram ouvidos, enquanto as potências da época decidiam seu destino.
No entanto, longe de satisfazer os nazistas, o acordo foi rapidamente rasgado por Hitler, que, bastante reforçado pelo domínio do novo território, anexou o restante da Tchecoslováquia e depois voltou seus olhos para a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. Entre os tchecos, o acordo ficou conhecido como "A traição de Munique". E para vários líderes se tornou um paradigma de que a política de apaziguamento, quando aplicada a regimes expansionistas e agressivos, está fadada ao fracasso.
"Como historiador e político, a única coisa que posso dizer hoje é: Munique nunca mais”, disse o premiê polonês Donald Tusk, na mesma conferência em fevereiro de 2025, ecoando a visão da estoniana Kallas.
Os dois políticos do Leste Europeu não estavam apenas citando um acordo que é considerado um dos maiores desastres da história da diplomacia, mas também manifestando temor de que a história possa se repetir agora com a Ucrânia, há três anos está sob ataque da Rússia sob Vladimir Putin.
Tusk e Kallas evitaram mencionar nomes, mas entre os participantes da conferência estava claro que o temor era que os EUA, desde janeiro novamente sob o comando de Donald Trump, reencenassem o papel dos britânicos e franceses em 1938, abandonando os ucranianos frente aos russos.
E, ao longo de fevereiro, o temor entre os europeus apenas foi reforçado. Trump revelou que havia começado a conversar diretamente com Putin, e negociadores americanos e russos se reuniram na Arábia Saudita para falar sobre a guerra – os ucranianos e seus aliados na Europa não foram convidados.
Em seguida, Trump declarou que não achava "importante” que o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, participasse das negociações, e começou a condicionar a continuidade da ajuda militar e financeira dos EUA aos ucranianos à assinatura de um bilionário acordo de exploração mineral, classificado por alguns analistas como uma "extorsão”. Posteriormente, chamou o líder ucraniano de "ditador" e fez elogios a Putin.
A virada na posição americana ficou mais clara quando representantes do governo Trump começaram a falar abertamente em pressionar os ucranianos a fazerem concessões territoriais ao Kremlin para pôr fim ao conflito – atualmente, os russos ocupam 20% do território ucraniano.
"Esta guerra precisa acabar e isso exigirá concessões territoriais", pontificou Mike Waltz, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, nesta segunda-feira (03/03), horas antes de a Casa Branca suspender novos pacotes de ajuda aos ucranianos. Ao mesmo tempo, acrescentou que "isso exigirá concessões russas em termos de garantias de segurança".
No entanto, como lembram historiadores, Hitler também ofereceu em 1938 ao então premiê britânico Neville Chamberlain garantias semelhantes de que se contentaria com uma fatia da Tchecoslováquia, antes de ocupar completamente o país e direcionar suas tropas para outros alvos.
"Em comparação com as concessões de Donald Trump a Vladimir Putin, até mesmo a política fatal de apaziguamento de Neville Chamberlain em relação a Hitler parece um realismo corajoso e baseado em princípios. Afinal de contas, Chamberlain, então primeiro-ministro britânico, estava tentando evitar uma grande guerra na Europa. A manobra de Trump, por outro lado, ocorre quando a guerra já está em andamento”, apontou o historiador britânico Timothy Garton Ash, em artigo publicado no semanário alemão Die Zeit.
Entre 1933 e 1938, o regime nazista de Adolf Hitler adotou uma política rearmamento e de violação de tratados assinados pela Alemanha na esteira da derrota na Primeira Guerra Mundial. Vários desses passos, como a remilitarização da região ocidental alemã da Renânia em 1936, e a anexação da vizinha Áustria em 1938, provocaram pouca comoção entre a França e o Império Britânico.
Na segunda metade de 1938, Hitler começou a voltar suas atenções para a região montanhosa dos Sudetos, uma fatia da Tchecoslováquia com 3 milhões de habitantes, na maioria de etnia alemã, e que representava 25% do território do país. Sob Hitler, que via a Tchecoslováquia como um estado "artificial" e "fraudulento", a propaganda nazista começou a inundar a Alemanha, denunciando que os alemães dos Sudetos estavam supostamente sofrendo atrocidades nas mãos dos eslavos tchecoslovacos. Os nazistas então começaram a deslocar tropas para a fronteira.
Criada em 1918, após o colapso do Império Austro-Húngaro, a Tchecoslováquia era oficialmente aliada da França e possuía relações amistosas com os britânicos. E a região dos Sudetos, que estava na mira de Hitler, era peça primordial da estratégia de defesa tchecoslovaca, possuindo uma rede reforçada de fortalezas e bunkers. O país possuía ainda um dos parques industriais mais formidáveis da Europa.
No entanto, franceses e britânicos decidiram não agir para defender a Tchecoslováquia. Diante das ameaças de Hitler, o então premiê britânico Neville Chamberlain solicitou uma reunião com o ditador, na esperança de que se encontrasse uma solução diplomática para evitar a guerra. Uma série de encontros entre ambos se sucedeu em setembro de 1939.
Historiadores apontam que Chamberlain era motivado tanto pelo trauma da participação britânica na Primeira Guerra Mundial, quando seu país perdeu mais de 800 mil soldados, quanto pelo temor de que suas tropas ainda não estivessem prontas para um novo conflito.
Os encontros culminaram numa reunião final em Munique, na Baviera, com a assinatura de um acordo entre a Alemanha nazista, a Itália fascista, a França e o Império Britânico. Em troca de garantias de paz, Hitler recebeu sinal verde para anexar os Sudetos.
Em nenhum momento das negociações os tchecoslovacos foram ouvidos. O mesmo ocorreu com a União Soviética, que à época também era aliada da Tchecoslováquia. "Sobre a gente, sem a gente”, dizia sobre Munique um slogan tchecoslovaco da época. Chamberlain voltou a Londres no fim de setembro de 1938 afirmando que o acordo garantia a "paz para o nosso tempo".
Houve alívio no Império Britânico e na França de que os países teriam evitado se envolver numa guerra, mas também surgiram críticas. As principais vieram de Winston Churchill, que viria a suceder a Chamberlain como premiê em 1940, quando- resumiria a política de apaziguamento como um homem que "alimenta um crocodilo” na esperança de que o animal "vá comê-lo por último".
Apesar do discurso triunfal de Chamberlain, seria uma questão de poucos meses para os nazistas rasgarem completamente o acordo. Horas após a assinatura, o próprio Hitler manifestou ao seu círculo próximo que aquela seria a última vez em que aceitaria participar desse tipo de conferência, e repetidamente expressou desprezo pelos esforços franco-britânicos.
"Nossos inimigos são homens abaixo da média, não são homens de ação, não são mestres. Eles são pequenos vermes. Eu os vi em Munique", disse o ditador nazista em 1939 a um grupo de generais.
No fim da primeira quinzena de março de 1939, meros cinco meses após a conferência, Hitler enterrou qualquer ilusão de que pretendia garantir o restante da integridade da Tchecoslováquia, ao convocar o então presidente, Emil Hácha, e forçá-lo, num encontro marcado por ameaças e intensa pressão, a aceitar a ocupação do restante do território.
Sem as fortificações dos Sudetos e abandonado pelas potências ocidentais, Hácha capitulou. As tropas nazistas ocuparam sem luta o território em 16 de março. Boa parte do país foi renomeado "Protetorado da Boêmia e da Morávia”, enquanto a fatia eslovaca foi transformada num estado-cliente da Alemanha nazista e confiada a um grupo de fascistas-católicos eslovacos.
Pouco menos de seis meses depois, em setembro, Hitler, sem precisar se preocupar com uma ameaça militar da Tchecoslováquia e com seu exército reforçado por armamentos produzidos pela indústria pesada do novo território anexado, voltou seus olhos para a Polônia, ordenando a invasão do país. Desta vez, no entanto, a França e o Império Britânico reagiram. Era o início da Segunda Guerra Mundial, que só terminaria em 1945, deixando mais de 50 milhões de mortos.
Mais de 80 anos depois do Pacto de Munique, o historiador americano Timothy Snyder apontou que, se a Tchecoslováquia tivesse resistido em 1938 e recebido assistência dos franceses e britânicos, o século 20 teria sido bem diferente.
"Se os tchecos resistissem, e os franceses, os britânicos e talvez os americanos começassem a ajudar, haveria um conflito, mas não haveria uma Segunda Guerra Mundial”, disse o historiador em entrevista ao jornal The Guardian em 2024. "Em vez disso, quando a Alemanha invadiu a Polônia em 1939, ela estava invadindo a Polônia com a indústria de armamentos tcheca, que era a melhor do mundo. Estava invadindo com soldados eslovacos. Estava invadindo a partir de uma posição geográfica que só conquistara por haver destruído a Tchecoslováquia.”
Snyder traçou ainda paralelos com a situação atual da Ucrânia: "Se os ucranianos desistirem, ou se nós desistirmos da Ucrânia, então será a Rússia fazendo guerra no futuro. Será a Rússia fazendo guerra com tecnologia ucraniana, numa posição geográfica diferente. Nesse ponto, estaremos em 1939. [Mas] estamos em 1938 agora. Na verdade, o que os ucranianos estão nos permitindo fazer é estender 1938."
Essas observações foram feitas em fevereiro por Kaja Kallas, ex-premiê da Estônia e atual alta representante da União Europeia para Exterior e Segurança, durante a Conferência de Segurança de Munique.
O local do discurso não poderia ser mais simbólico: a poucas centenas de metros do prédio no qual, há 86 anos, líderes da França e do Império Britânico assinaram o Acordo de Munique, que marcou o clímax da política de apaziguamento dos anos 1930, quando potências ocidentais concordaram em ceder a ambições territoriais da Alemanha nazista na esperança de que isso serviria para evitar um novo conflito mundial.
Como parte do acordo, em 1938, líderes franceses e britânicos decidiram abandonar aos nazistas a antiga Tchecoslováquia (hoje dividida entre República Tcheca e Eslováquia), permitindo que o regime de Adolf Hitler anexasse, sem luta, parte considerável do país da Europa Central. Em nenhum momento os tchecoslovacos foram ouvidos, enquanto as potências da época decidiam seu destino.
No entanto, longe de satisfazer os nazistas, o acordo foi rapidamente rasgado por Hitler, que, bastante reforçado pelo domínio do novo território, anexou o restante da Tchecoslováquia e depois voltou seus olhos para a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. Entre os tchecos, o acordo ficou conhecido como "A traição de Munique". E para vários líderes se tornou um paradigma de que a política de apaziguamento, quando aplicada a regimes expansionistas e agressivos, está fadada ao fracasso.
"Como historiador e político, a única coisa que posso dizer hoje é: Munique nunca mais”, disse o premiê polonês Donald Tusk, na mesma conferência em fevereiro de 2025, ecoando a visão da estoniana Kallas.
Os dois políticos do Leste Europeu não estavam apenas citando um acordo que é considerado um dos maiores desastres da história da diplomacia, mas também manifestando temor de que a história possa se repetir agora com a Ucrânia, há três anos está sob ataque da Rússia sob Vladimir Putin.
Tusk e Kallas evitaram mencionar nomes, mas entre os participantes da conferência estava claro que o temor era que os EUA, desde janeiro novamente sob o comando de Donald Trump, reencenassem o papel dos britânicos e franceses em 1938, abandonando os ucranianos frente aos russos.
E, ao longo de fevereiro, o temor entre os europeus apenas foi reforçado. Trump revelou que havia começado a conversar diretamente com Putin, e negociadores americanos e russos se reuniram na Arábia Saudita para falar sobre a guerra – os ucranianos e seus aliados na Europa não foram convidados.
Em seguida, Trump declarou que não achava "importante” que o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, participasse das negociações, e começou a condicionar a continuidade da ajuda militar e financeira dos EUA aos ucranianos à assinatura de um bilionário acordo de exploração mineral, classificado por alguns analistas como uma "extorsão”. Posteriormente, chamou o líder ucraniano de "ditador" e fez elogios a Putin.
A virada na posição americana ficou mais clara quando representantes do governo Trump começaram a falar abertamente em pressionar os ucranianos a fazerem concessões territoriais ao Kremlin para pôr fim ao conflito – atualmente, os russos ocupam 20% do território ucraniano.
"Esta guerra precisa acabar e isso exigirá concessões territoriais", pontificou Mike Waltz, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, nesta segunda-feira (03/03), horas antes de a Casa Branca suspender novos pacotes de ajuda aos ucranianos. Ao mesmo tempo, acrescentou que "isso exigirá concessões russas em termos de garantias de segurança".
No entanto, como lembram historiadores, Hitler também ofereceu em 1938 ao então premiê britânico Neville Chamberlain garantias semelhantes de que se contentaria com uma fatia da Tchecoslováquia, antes de ocupar completamente o país e direcionar suas tropas para outros alvos.
"Em comparação com as concessões de Donald Trump a Vladimir Putin, até mesmo a política fatal de apaziguamento de Neville Chamberlain em relação a Hitler parece um realismo corajoso e baseado em princípios. Afinal de contas, Chamberlain, então primeiro-ministro britânico, estava tentando evitar uma grande guerra na Europa. A manobra de Trump, por outro lado, ocorre quando a guerra já está em andamento”, apontou o historiador britânico Timothy Garton Ash, em artigo publicado no semanário alemão Die Zeit.
Entre 1933 e 1938, o regime nazista de Adolf Hitler adotou uma política rearmamento e de violação de tratados assinados pela Alemanha na esteira da derrota na Primeira Guerra Mundial. Vários desses passos, como a remilitarização da região ocidental alemã da Renânia em 1936, e a anexação da vizinha Áustria em 1938, provocaram pouca comoção entre a França e o Império Britânico.
Na segunda metade de 1938, Hitler começou a voltar suas atenções para a região montanhosa dos Sudetos, uma fatia da Tchecoslováquia com 3 milhões de habitantes, na maioria de etnia alemã, e que representava 25% do território do país. Sob Hitler, que via a Tchecoslováquia como um estado "artificial" e "fraudulento", a propaganda nazista começou a inundar a Alemanha, denunciando que os alemães dos Sudetos estavam supostamente sofrendo atrocidades nas mãos dos eslavos tchecoslovacos. Os nazistas então começaram a deslocar tropas para a fronteira.
Criada em 1918, após o colapso do Império Austro-Húngaro, a Tchecoslováquia era oficialmente aliada da França e possuía relações amistosas com os britânicos. E a região dos Sudetos, que estava na mira de Hitler, era peça primordial da estratégia de defesa tchecoslovaca, possuindo uma rede reforçada de fortalezas e bunkers. O país possuía ainda um dos parques industriais mais formidáveis da Europa.
No entanto, franceses e britânicos decidiram não agir para defender a Tchecoslováquia. Diante das ameaças de Hitler, o então premiê britânico Neville Chamberlain solicitou uma reunião com o ditador, na esperança de que se encontrasse uma solução diplomática para evitar a guerra. Uma série de encontros entre ambos se sucedeu em setembro de 1939.
Historiadores apontam que Chamberlain era motivado tanto pelo trauma da participação britânica na Primeira Guerra Mundial, quando seu país perdeu mais de 800 mil soldados, quanto pelo temor de que suas tropas ainda não estivessem prontas para um novo conflito.
Os encontros culminaram numa reunião final em Munique, na Baviera, com a assinatura de um acordo entre a Alemanha nazista, a Itália fascista, a França e o Império Britânico. Em troca de garantias de paz, Hitler recebeu sinal verde para anexar os Sudetos.
Em nenhum momento das negociações os tchecoslovacos foram ouvidos. O mesmo ocorreu com a União Soviética, que à época também era aliada da Tchecoslováquia. "Sobre a gente, sem a gente”, dizia sobre Munique um slogan tchecoslovaco da época. Chamberlain voltou a Londres no fim de setembro de 1938 afirmando que o acordo garantia a "paz para o nosso tempo".
Houve alívio no Império Britânico e na França de que os países teriam evitado se envolver numa guerra, mas também surgiram críticas. As principais vieram de Winston Churchill, que viria a suceder a Chamberlain como premiê em 1940, quando- resumiria a política de apaziguamento como um homem que "alimenta um crocodilo” na esperança de que o animal "vá comê-lo por último".
Apesar do discurso triunfal de Chamberlain, seria uma questão de poucos meses para os nazistas rasgarem completamente o acordo. Horas após a assinatura, o próprio Hitler manifestou ao seu círculo próximo que aquela seria a última vez em que aceitaria participar desse tipo de conferência, e repetidamente expressou desprezo pelos esforços franco-britânicos.
"Nossos inimigos são homens abaixo da média, não são homens de ação, não são mestres. Eles são pequenos vermes. Eu os vi em Munique", disse o ditador nazista em 1939 a um grupo de generais.
No fim da primeira quinzena de março de 1939, meros cinco meses após a conferência, Hitler enterrou qualquer ilusão de que pretendia garantir o restante da integridade da Tchecoslováquia, ao convocar o então presidente, Emil Hácha, e forçá-lo, num encontro marcado por ameaças e intensa pressão, a aceitar a ocupação do restante do território.
Sem as fortificações dos Sudetos e abandonado pelas potências ocidentais, Hácha capitulou. As tropas nazistas ocuparam sem luta o território em 16 de março. Boa parte do país foi renomeado "Protetorado da Boêmia e da Morávia”, enquanto a fatia eslovaca foi transformada num estado-cliente da Alemanha nazista e confiada a um grupo de fascistas-católicos eslovacos.
Pouco menos de seis meses depois, em setembro, Hitler, sem precisar se preocupar com uma ameaça militar da Tchecoslováquia e com seu exército reforçado por armamentos produzidos pela indústria pesada do novo território anexado, voltou seus olhos para a Polônia, ordenando a invasão do país. Desta vez, no entanto, a França e o Império Britânico reagiram. Era o início da Segunda Guerra Mundial, que só terminaria em 1945, deixando mais de 50 milhões de mortos.
Mais de 80 anos depois do Pacto de Munique, o historiador americano Timothy Snyder apontou que, se a Tchecoslováquia tivesse resistido em 1938 e recebido assistência dos franceses e britânicos, o século 20 teria sido bem diferente.
"Se os tchecos resistissem, e os franceses, os britânicos e talvez os americanos começassem a ajudar, haveria um conflito, mas não haveria uma Segunda Guerra Mundial”, disse o historiador em entrevista ao jornal The Guardian em 2024. "Em vez disso, quando a Alemanha invadiu a Polônia em 1939, ela estava invadindo a Polônia com a indústria de armamentos tcheca, que era a melhor do mundo. Estava invadindo com soldados eslovacos. Estava invadindo a partir de uma posição geográfica que só conquistara por haver destruído a Tchecoslováquia.”
Snyder traçou ainda paralelos com a situação atual da Ucrânia: "Se os ucranianos desistirem, ou se nós desistirmos da Ucrânia, então será a Rússia fazendo guerra no futuro. Será a Rússia fazendo guerra com tecnologia ucraniana, numa posição geográfica diferente. Nesse ponto, estaremos em 1939. [Mas] estamos em 1938 agora. Na verdade, o que os ucranianos estão nos permitindo fazer é estender 1938."
Oscar 2025: Meio século numa noite
Entre a noite em que Walter Salles recebeu o Oscar, em Los Angeles, e o dia, no Rio de Janeiro, em que Rubens Paiva foi sequestrado pela ditadura militar do seio da sua família, passaram-se 54 anos, um mês e dez dias. Nesse tempo, Eunice e seus cinco filhos enfrentaram tudo à espera do corpo que não veio. Hoje o país está imerso nessa história como se ela tivesse acontecido ontem. Não esquecer foi a grande virtude do Brasil. Tornar a história conhecida do mundo foi o maior prêmio que o filme deu a nós e à democracia brasileira. A estatueta de “Ainda estou aqui” chega no momento exato em que precisamos dela.
Assisti à cerimônia do Oscar com minhas netas mais novas, Manuela, 13, e Isabel, 11. Quando Rubens Paiva morreu, o pai delas, Vladimir, não havia nascido. Elas viram o filme, falam com intimidade sobre Eunice, Rubens e seus filhos, como se os conhecessem. O fio que trouxe a história até nós foi tecido, primeiramente, pelas mãos de Eunice. Depois, pela literatura de Marcelo Rubens Paiva. Por fim, pelo cinema brasileiro. Mais de cinco milhões de pessoas viram o filme, incontáveis famílias conversaram sobre esse tema nos seus encontros. Isso não é pouco num país em que o desmonte da memória é uma estratégia para escapar dos temas incômodos.
Depois do seu breve e discreto discurso, em que jogou luz sobre Eunice e as Fernandas, Walter Salles, na sala de imprensa, alertou para a fragilidade da democracia, “tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos”. E foi ao ponto central. “Vivemos um momento em que a memória está sendo apagada, como um projeto de poder, então criar memória é extremamente importante.”
Fernanda Torres não ganhou o Oscar de melhor atriz e, das seis indicadas, ela é a melhor. A história exigia uma interpretação com sensibilidade e maestria técnica. Ela construiu a personagem com delicadeza. Neste tempo em que acompanhou a caravana “Ainda Estou Aqui” até o palco do Dolby Theater, o Brasil esteve em diálogo constante com Fernanda Torres. Ela conta que a mãe, a monumental Fernanda Montenegro, a orientou sobre como interpretar tragédias gregas. Com mais intensidade do que desespero, porque o sofrimento será longo. Foi o que ela fez na sua Eunice. “É uma família normal, mas enfrentando algo como Antígona, algo do tamanho de um destino grego, uma tragédia grega”, disse ela em uma de suas entrevistas.
Fernanda Torres volta ao Brasil coberta de glória após ter sido, como ela definiu, “abduzida por uma nave espacial para uma realidade paralela”. Ela fez por merecer nosso amor. Moveu-se no palco do mundo com uma naturalidade que nos orgulhou. Não se deslumbrou, não esqueceu a personagem e sempre lembrou do seu país. Numa de suas melhores entrevistas, disse que o Brasil tem pena de que o mundo não nos conheça. Nas ruas desse carnaval, o espírito lúdico e irreverente usou a Fernanda Torres como seu principal motivo para brincar.
Isso não conflita com a carga emocional da história contada no filme. Foram muitos os mortos e desaparecidos durante a ditadura militar. Ulysses Guimarães, no momento constituinte da democracia, escolheu Rubens Paiva como o símbolo da sociedade que venceu os facínoras.
A Lei da Anistia pela qual Eunice lutou nos trouxe de volta quem fazia falta ao país, mas foi envenenada pela imposição da impunidade dos criminosos. A luta pelo direito dos povos indígenas ganhou musculatura com a sua militância jurídica e política, mas requer cada vez mais vigilância.
“O nome dela é Eunice Paiva”, disse Walter Salles ao receber o prêmio visto por um bilhão de pessoas. Como é forte essa história. O marido é preso e seu corpo desaparece por ação do governo. Eunice volta para a faculdade, se forma em Direito, educa os filhos, se une às lutas do seu povo, espera 25 anos por uma certidão de óbito, mantém acesa para o país a memória do marido até que a sua memória se esvai. Seu filho, atingido por um acidente que o deixa numa cadeira de rodas, resgata toda a história com a sua envolvente literatura. O cinema brasileiro leva o drama às telas no exato momento em que o horror volta a rondar o país. Selton Mello, que dá vida ao personagem cujo corpo foi sonegado à família — de novo a tragédia grega nos lembra do direito sagrado de as famílias enterrarem seus mortos — disse que entendeu nessa caminhada que o filme era o “corpo de Rubens Paiva”. Como disse Fernanda Torres ao receber o Globo de Ouro: “Que história, Walter!”.
Assisti à cerimônia do Oscar com minhas netas mais novas, Manuela, 13, e Isabel, 11. Quando Rubens Paiva morreu, o pai delas, Vladimir, não havia nascido. Elas viram o filme, falam com intimidade sobre Eunice, Rubens e seus filhos, como se os conhecessem. O fio que trouxe a história até nós foi tecido, primeiramente, pelas mãos de Eunice. Depois, pela literatura de Marcelo Rubens Paiva. Por fim, pelo cinema brasileiro. Mais de cinco milhões de pessoas viram o filme, incontáveis famílias conversaram sobre esse tema nos seus encontros. Isso não é pouco num país em que o desmonte da memória é uma estratégia para escapar dos temas incômodos.
Depois do seu breve e discreto discurso, em que jogou luz sobre Eunice e as Fernandas, Walter Salles, na sala de imprensa, alertou para a fragilidade da democracia, “tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos”. E foi ao ponto central. “Vivemos um momento em que a memória está sendo apagada, como um projeto de poder, então criar memória é extremamente importante.”
Fernanda Torres não ganhou o Oscar de melhor atriz e, das seis indicadas, ela é a melhor. A história exigia uma interpretação com sensibilidade e maestria técnica. Ela construiu a personagem com delicadeza. Neste tempo em que acompanhou a caravana “Ainda Estou Aqui” até o palco do Dolby Theater, o Brasil esteve em diálogo constante com Fernanda Torres. Ela conta que a mãe, a monumental Fernanda Montenegro, a orientou sobre como interpretar tragédias gregas. Com mais intensidade do que desespero, porque o sofrimento será longo. Foi o que ela fez na sua Eunice. “É uma família normal, mas enfrentando algo como Antígona, algo do tamanho de um destino grego, uma tragédia grega”, disse ela em uma de suas entrevistas.
Fernanda Torres volta ao Brasil coberta de glória após ter sido, como ela definiu, “abduzida por uma nave espacial para uma realidade paralela”. Ela fez por merecer nosso amor. Moveu-se no palco do mundo com uma naturalidade que nos orgulhou. Não se deslumbrou, não esqueceu a personagem e sempre lembrou do seu país. Numa de suas melhores entrevistas, disse que o Brasil tem pena de que o mundo não nos conheça. Nas ruas desse carnaval, o espírito lúdico e irreverente usou a Fernanda Torres como seu principal motivo para brincar.
Isso não conflita com a carga emocional da história contada no filme. Foram muitos os mortos e desaparecidos durante a ditadura militar. Ulysses Guimarães, no momento constituinte da democracia, escolheu Rubens Paiva como o símbolo da sociedade que venceu os facínoras.
A Lei da Anistia pela qual Eunice lutou nos trouxe de volta quem fazia falta ao país, mas foi envenenada pela imposição da impunidade dos criminosos. A luta pelo direito dos povos indígenas ganhou musculatura com a sua militância jurídica e política, mas requer cada vez mais vigilância.
“O nome dela é Eunice Paiva”, disse Walter Salles ao receber o prêmio visto por um bilhão de pessoas. Como é forte essa história. O marido é preso e seu corpo desaparece por ação do governo. Eunice volta para a faculdade, se forma em Direito, educa os filhos, se une às lutas do seu povo, espera 25 anos por uma certidão de óbito, mantém acesa para o país a memória do marido até que a sua memória se esvai. Seu filho, atingido por um acidente que o deixa numa cadeira de rodas, resgata toda a história com a sua envolvente literatura. O cinema brasileiro leva o drama às telas no exato momento em que o horror volta a rondar o país. Selton Mello, que dá vida ao personagem cujo corpo foi sonegado à família — de novo a tragédia grega nos lembra do direito sagrado de as famílias enterrarem seus mortos — disse que entendeu nessa caminhada que o filme era o “corpo de Rubens Paiva”. Como disse Fernanda Torres ao receber o Globo de Ouro: “Que história, Walter!”.
Nação, Democracia e uma certa ideia de refúgio
Há uma frase atribuída ao escritor inglês Samuel Johnson, nascido no início do século XVIII, que correu mundo, sendo citada até por Vladimir Lenin, o líder da Revolução Russa de 1917. Ela diz o seguinte: "O nacionalismo é o último refúgio dos calhordas". Ou seja, o ditador manda matar, manda torturar, desdenha as instituições, rouba ou deixa roubar, mas é um nacionalista. Está desculpado. Ama o seu país e ponto final.
Mas… de que nação estamos mesmo falando? De uma nação sem povo, só com hino e bandeira, muito provavelmente. Aí reside justamente a calhordice. Vários ditadores apelaram para essa fórmula, uma espécie de "mata, mas ama". Benito Mussolini, Juan Perón, Muammar Gaddafi são alguns desses ditadores. Quase todos acabaram mal. A vida deu o troco. Alguns políticos de várias partes do mundo pegaram carona nessa fórmula, com uma certa adaptação. Ou seja, procedem chantageando a população, querendo fazer crer que a polarização é inerente a toda e qualquer situação eleitoral e que, se ele, o bem-aventurado, perder as eleições, o seu amado país vai mergulhar nas trevas. Ou de uma forma menos metafórica: resvalar para uma ditadura, pura e simplesmente. Trata-se de uma atualização ou até "enriquecimento" da frase do pensador inglês, que poderia ficar assim: "a Democracia como último refúgio dos calhordas". Democracia nenhuma merece.
Mas… de que nação estamos mesmo falando? De uma nação sem povo, só com hino e bandeira, muito provavelmente. Aí reside justamente a calhordice. Vários ditadores apelaram para essa fórmula, uma espécie de "mata, mas ama". Benito Mussolini, Juan Perón, Muammar Gaddafi são alguns desses ditadores. Quase todos acabaram mal. A vida deu o troco. Alguns políticos de várias partes do mundo pegaram carona nessa fórmula, com uma certa adaptação. Ou seja, procedem chantageando a população, querendo fazer crer que a polarização é inerente a toda e qualquer situação eleitoral e que, se ele, o bem-aventurado, perder as eleições, o seu amado país vai mergulhar nas trevas. Ou de uma forma menos metafórica: resvalar para uma ditadura, pura e simplesmente. Trata-se de uma atualização ou até "enriquecimento" da frase do pensador inglês, que poderia ficar assim: "a Democracia como último refúgio dos calhordas". Democracia nenhuma merece.
Estamos diante de uma espécie de etapa superior da calhordice. Não há vida útil sem o nosso herói e não dá para imaginá-lo fora do poder. E os calhordas têm uma atração toda especial pelo poder.
Quem procede dessa maneira geralmente não possui projeto algum, além da sua própria perpetuação nas esferas de dominação.
Triste, mas real. Quem perde com isso é a Democracia, que vive de alternância, seriedade e transparência. Toda vez que a polarização se instala, aumenta - aí sim - o risco de aventuras autoritárias. Estamos vendo isso em muitos lugares. Todo cuidado é pouco.
Quem procede dessa maneira geralmente não possui projeto algum, além da sua própria perpetuação nas esferas de dominação.
Triste, mas real. Quem perde com isso é a Democracia, que vive de alternância, seriedade e transparência. Toda vez que a polarização se instala, aumenta - aí sim - o risco de aventuras autoritárias. Estamos vendo isso em muitos lugares. Todo cuidado é pouco.
Ivan Alves Filho
O legítimo herdeiro de Bolsonaro saúda o povo e pede passagem
É por isso que Bolsonaro cogita lançá-lo candidato a presidente da República no próximo ano, uma vez que poderá estar preso e impedido de concorrer. Afinal, quem puxa aos seus não degenera, embora já possa ter nascido degenerado.
Tarcísio de Freitas (Republicanos), militar e engenheiro por formação, costuma usar as redes sociais para comemorar feitos de brasileiros em competições internacionais. Do tenista João Fonseca, campeão do ATP de Buenos Aires, ele disse:
“É mais um talento brasileiro despontando para o mundo, carregando as cores da nossa bandeira”.
Durante as últimas Olimpíadas, a ginasta Rebeca Andrade e a judoca Beatriz Souza, ambas medalhistas de ouro, também foram homenageadas por Tarcísio, que ontem parabenizou a escola de samba Rosas de Ouro, campeã do carnaval paulistano.
Mas sobre o primeiro Oscar conquistado pelo Brasil com o filme “Ainda estou aqui”, que conta a história do desaparecimento do ex-deputado Rubem Paiva à época da ditadura militar de 64, não se leu nem se ouviu até aqui uma única palavra de Tarcísio.
O mesmo comportamento tiveram outros governadores bolsonaristas, como Romeu Zema (Novo), de Minas, Ratinho Júnior (PSD), do Paraná, e Jorginho Melo (PL) de Santa Catarina. Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás, aplaudiu o o filme.
Os bolsonaristas de destaque silenciaram ou só abriram a boca para criticar o filme. Bolsonaro sempre defendeu a ditadura militar e, quando deputado federal, mantinha em seu gabinete uma foto do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, de triste memória.
Brilhante Ustra foi comandante do DOI-CODI do Exército em São Paulo, onde morreram debaixo de pancadas diversos oponentes da ditadura. Ao dar seu voto pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), Bolsonaro invocou Brilhante Ustra.
O legítimo herdeiro de Bolsonaro, porém, não titubeou em criticar o filme, e foi além. Atacou duramente Eunice, a viúva de Rubens Paiva, símbolo da resistência democrática ao regime militar, e ameaçou o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal.
Em linha com o pensamento do pai e desconectado com a verdade, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o Zero Três, devoto confesso de Donald Trump, escreveu nas redes sociais:
“Insurgir-se contra uma ditadura inexistente é fácil, rende bastante bajulação da ‘elite’ plutocrata, superficial e niilista. Difícil é ter coragem para se insurgir contra a ditadura real, que está por aí prendendo mães de família, idosos e trabalhadores inocentes. Ah…, isso exige fibra moral e coragem para arcar com os altos custos envolvidos”.
E acrescentou, pomposo e arrogante, como se falasse para a História:
Tarcísio de Freitas (Republicanos), militar e engenheiro por formação, costuma usar as redes sociais para comemorar feitos de brasileiros em competições internacionais. Do tenista João Fonseca, campeão do ATP de Buenos Aires, ele disse:
“É mais um talento brasileiro despontando para o mundo, carregando as cores da nossa bandeira”.
Durante as últimas Olimpíadas, a ginasta Rebeca Andrade e a judoca Beatriz Souza, ambas medalhistas de ouro, também foram homenageadas por Tarcísio, que ontem parabenizou a escola de samba Rosas de Ouro, campeã do carnaval paulistano.
O mesmo comportamento tiveram outros governadores bolsonaristas, como Romeu Zema (Novo), de Minas, Ratinho Júnior (PSD), do Paraná, e Jorginho Melo (PL) de Santa Catarina. Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás, aplaudiu o o filme.
Os bolsonaristas de destaque silenciaram ou só abriram a boca para criticar o filme. Bolsonaro sempre defendeu a ditadura militar e, quando deputado federal, mantinha em seu gabinete uma foto do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, de triste memória.
Brilhante Ustra foi comandante do DOI-CODI do Exército em São Paulo, onde morreram debaixo de pancadas diversos oponentes da ditadura. Ao dar seu voto pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), Bolsonaro invocou Brilhante Ustra.
O legítimo herdeiro de Bolsonaro, porém, não titubeou em criticar o filme, e foi além. Atacou duramente Eunice, a viúva de Rubens Paiva, símbolo da resistência democrática ao regime militar, e ameaçou o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal.
Em linha com o pensamento do pai e desconectado com a verdade, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o Zero Três, devoto confesso de Donald Trump, escreveu nas redes sociais:
“Insurgir-se contra uma ditadura inexistente é fácil, rende bastante bajulação da ‘elite’ plutocrata, superficial e niilista. Difícil é ter coragem para se insurgir contra a ditadura real, que está por aí prendendo mães de família, idosos e trabalhadores inocentes. Ah…, isso exige fibra moral e coragem para arcar com os altos custos envolvidos”.
E acrescentou, pomposo e arrogante, como se falasse para a História:
“Esse silêncio, de vocês, cúmplices, não será quebrado. Mas o nosso, com toda firmeza moral, eu quebro, estou disposto a arcar com esse custo: Alexandre de Moraes, iremos punir você. Acredite, você irá pagar por toda maldade que cometeu, custe o que custar”.
O pai deve ter babado de satisfação com o garoto que, no passado, quis ser embaixador do Brasil em Washington, e que agora poderá sucedê-lo como líder da extrema-direita.
O pai deve ter babado de satisfação com o garoto que, no passado, quis ser embaixador do Brasil em Washington, e que agora poderá sucedê-lo como líder da extrema-direita.
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