segunda-feira, 1 de abril de 2019

Os dias das mentiras

Primeiro de abril é o Dia da Mentira. Dia de falar de mentirosos, esta espécie que, nos tempos que correm, melhor se adapta à nossa selva. Acreditar nas próprias mentiras é o destino dos mentirosos. Levado ao extremo, vira loucura.

O governo pelas redes, essa fábrica de Twitters e fake news onde se confisca a verdade, é uma forma de loucura e está enlouquecendo o país. Mas há um método nessa loucura.

É o debate público essencial à democracia que está sob ataque. O governo trata adversários como inimigos, com uma arrogância de donos do país. Comporta-se como se acreditasse que todos os que votaram no presidente Bolsonaro são seus devotos e lhe deram carta branca para fazer o que bem entender. Compra, assim, suas próprias mentiras. Bolsonaro prega para os convertidos, a minoria fanática que, à imagem e semelhança dos fanáticos de Lula, diz amém a qualquer despautério.

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Ora, o Brasil é uma democracia com instituições. A confusão que as mentiras semeiam — o método dessa loucura — tem como alvo a destruição da confiança nas instituições. Sobretudo aquelas que, a exemplo da mídia, têm autoridade para validar o que é um fato.

Os trolls, agentes da desinformação nas redes, ao espalhar mentiras, corroem a capacidade da sociedade de discernir o que é verdadeiro e o que é falso. A desinformação é uma arma poderosa da guerra declarada a quem discorda do governo. Se esse clima de cruzada contra todos que pensam pela própria cabeça se prolongar, fomentará cada vez mais ódio.

Essa desconstrução de tudo que lhe é dessemelhante, logo suspeito, aprofunda a impressão de que a nação está dividida ao meio. Mais uma mentira. O Brasil é uma sociedade múltipla e se move em várias direções. O presidente é que está, a cada dia, graças a ele mesmo, mais isolado.

Primeiro de abril também é o dia dos bobos. Não somos nós, a população, os bobos. Já descodificamos essa loucura e seus métodos. O Brasil não é uma terra arrasada. As instituições existem e resistem. Ódio não é a língua da nossa cultura.

Brasil da mentira


O Twitter como um sofá

Uma escocesa de 71 anos, chamada Jo Cameron, sente quase nenhuma dor e nenhuma ansiedade. Os cientistas estão pesquisando o mapa genético de Jo e esperam achar um remédio que nos aproxime da ausência de dor e ansiedade.

Ao analisar a situação política brasileira, sinto falta de uma dose desse remédio natural. As coisas parecem degringolar nas últimas semanas. Não tenho ânimo para dar conselhos nem para atirar pedras. Nesses 90 dias, misteriosas forças estão em curso no governo e nas relações de poder. Talvez o melhor seja esperar a troca de farpas passar com calma, para falar da realidade…

Bolsonaro, que conheci como deputado, mudou bastante. Ele era conservador, anticomunista e de vez em quando fazia incursões exóticas contra a importação da banana do Equador.

Nesse processo eleitoral, adquiriu uma espécie de crosta teórica: uma visão estreita de nacionalismo; uma cosmovisão religiosa voltada para a catequese do mundo; enfim, uma volta a um passado idealizado como objetivo político.


Isso é um fenômeno importante pelo menos no mundo ocidental. É chamado de retropia. É uma utopia que não fantasia sobre um futuro idealizado, mas sim um passado idealizado. Qualquer das utopias, no entanto, choca-se com a realidade quando se dispõe a governar um país complicado como o Brasil.

O diálogo político com um idealista utópico é muito difícil. Tende a considerar os argumentos como uma submissão à realidade, desconfia do que lhe parece o vazio medíocre da ausência de uma utopia.

Bolsonaro, eu achava, teria mais chances se buscasse inspiração nas Forças Armadas atuais, que conquistaram uma grande simpatia, pela moderação política e eficácia em operações complexas e emergentes, como a distribuição de água no Nordeste e a montagem da Operação Acolhida em Pacaraima, que organizou a recepção dos venezuelanos. Um trabalho de nível internacional, com grande respeito pelos imigrantes.

Parece que ele sonha com os combatentes do passado e, de alguma forma, voltar atrás, refazer aquela luta contra a esquerda. Isso não bastou. Quer reconhecimento, reescrever a História.

Olho isso com tranquilidade no indivíduo, pois conheço muita gente fixada em certos períodos do passado. Mas o caminho que as Forças Armadas tomaram, fixando-se no presente e olhando para o futuro, é muito mais adequado para um presidente da República.

Os aliados aconselham Bolsonaro a deixar o Twitter. Parecem não ter percebido que o tuíte não se escreve sozinho. É apenas uma plataforma que pode ser usada com sensatez ou não.

Tirar o Twitter é tirar o sofá. Bolsonaro vai prosseguir na sua cruzada retrópica. Ele foi ao Chile, onde as cicatrizes são maiores que no Brasil, discorrer sobre o período ditatorial.

O resultado não se limitou à divulgação de suas infelizes frases do passado, mas também houve uma entrevista do próprio presidente do Chile, distanciando-se das posições de Bolsonaro.

Nos Estados Unidos, nessa plataforma diplomática que acaba inundando as redes sociais, Bolsonaro afirmou que a maioria dos imigrantes é mal-intencionada. Ainda bem que desmentiu em seguida. Na mesma semana, Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, declarou que os imigrantes ilegais eram uma vergonha para o país. Se ele lesse os arquivos da comissão, veria que, no passado, havia um grande empenho para ajudar os brasileiros em situação irregular em todo o mundo. Chegamos a criar consulados itinerantes. Os próprios parlamentares evangélicos eram muito atuantes nessa frente.

Tudo bem, meu interesse não é argumentar contra as ideias de Bolsonaro ou mesmo as dos utópicos de esquerda. Quero apenas dizer que a posição missionária de Bolsonaro e do grupo intelectual que o inspira pode desencadear forças destrutivas. Quando o governo tem a pretensão de governar comportamentos, fica impossível achar um modus vivendi.

Isso influencia até a relação com o Parlamento. Bolsonaro, até agora, foi incapaz de organizar, quanto mais ampliar, sua base. Não fez um gesto republicano para a oposição.Na verdade, não ocupou e parece não ter querido ocupar o espaço do presidente de todos os brasileiros de dentro e fora do país.

Não adianta falar muito, apenas esperar que as forças destrutivas encerrem seu ciclo numa volta à realidade ou então num desastre. Grupos e mentalidades muito fechadas tendem a considerar as críticas como um esforço conspiratório, para minar a legitimidade do governo.

Como no castelo de Kakfa, havia uma porta aberta pela eleição. Bolsonaro não a encontrou. Não se perdeu no Twitter. Está perdido.

Celebração de 1964 evoluiu do erro à estupidez

Ordenar às Forças Armadas que fizessem as "comemorações devidas" do golpe de 1964 foi um erro crasso. Determinar à Advocacia-Geral da União que recorresse contra a decisão judicial que proibiu a celebração foi uma reincidência lamentável. Mobilizar a Secretaria de Comunicação da Presidência da República para espalhar um vídeo trombeteando a tese de que o Exército "salvou" o Brasil foi uma estupidez. 

A peça foi ecoada nas redes pelo deputado Eduardo Bolsonaro, o filho Zero Três do presidente.


Era para isso que o capitão queria o poder? Então, ele se serviu das urnas para transformar sua confusão mental num processo de rebaixamento do Estado democrático? Quer dizer que se elegeu pelo voto direto para enaltecer como chefe de Estado o regime que cassou, matou, torturou, exilou, censurou, fechou o Congresso e injetou um golpe dentro do outro com o AI-5? Ora, francamente!

Como deputado, Bolsonaro já havia deixado claro que confunde falta de memória com consciência limpa. Sempre disse que não houve golpe. Jamais admitiu os 21 anos de ditadura. Passava a impressão de não conhecer a si mesmo. Era como se levasse sustos frequentes diante do espelho. O diabo é que aquele parlamentar folclórico virou um presidente temerário. O vexame mudou de patamar.

Nada como a visão de Bolsonaro sobre o passado para fazer o brasileiro desanimar com os dias que correm e desacreditar nos que estão por vir. O capitão nunca teve um itinerário claro. Sabia-se apenas que queria ficar no volante. Descobre-se agora que governa com os olhos grudados no retrovisor. Político que venera o passado se arrisca a repetir velhos flagelos no presente, comprometendo o futuro.

De resto, quem olha muito para trás acaba torcendo o próprio pescoço. Há diante de Bolsonaro um Brasil por fazer. E o capitão desperdiça a sua hora percorrendo a rota da insensatez, um caminho que leva do erro à estupidez. Alega-se que Bolsonaro expurgou do Planalto o viés ideológico. Tolice. Ele apenas se esforça para substituir o "nós contra eles" pelo "eles contra nós". Se a conjuntura pede união, Bolsonaro capricha na divisão.
Josias de Souza

Utilidade pública

Criança aquece comida em Moçambique
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Vítima do aquecimento global, Moçambique deveria ser ressarcido pelos poluidores

A destruição da cidade da Beira, em Moçambique, é apenas o lado mais visível de um desastre de dimensões épicas, que arrasou vastas regiões da África Austral. Nesta altura ainda é difícil perceber toda a extensão da tragédia.

Infelizmente, não se trata de um fenômeno isolado. O planeta entrou num ciclo novo, no qual, como consequência direta do aquecimento global, iremos assistir à multiplicação de grandes desastres ambientais. O que hoje ainda nos parece uma exceção, rapidamente se transformará em terrível rotina.


Países como Moçambique, que não têm nem nunca tiveram indústria nem agricultura extensiva, ou seja, que não contribuíram em nada para o aquecimento global, são vítimas inocentes de todo este processo, e deveriam ser ressarcidos pelas grandes potências poluidoras, com destaque para China e EUA.

Se um carro atropela uma pessoa na calçada, o motorista tem obrigação de levar o atropelado para o hospital e de custear o seu tratamento. Não se espera que a vítima agradeça. Esta tem direito a uma justa reparação.

Esgotou-se também o tempo em que era possível tolerar aqueles que insistem, contra todas as evidências, em negar a ligação entre o aquecimento global e a ação humana. Os negacionistas são moralmente responsáveis pelos desastres em curso. Quanto aos dirigentes políticos diretamente responsáveis por práticas contra o ambiente, esses são criminosos. Serão julgados um dia por crimes contra a natureza e contra a Humanidade.

Acompanhei comovido a greve estudantil global que, no passado dia 15 de março, levou milhões de jovens às ruas, nas mais diversas cidades do mundo, protestando contra as más políticas ambientais responsáveis pela atual instabilidade climática.

Há 40 anos, jovem estudante de agronomia em Lisboa, também eu escrevia e erguia faixas chamando a atenção para o aquecimento do planeta. Na época, éramos meia dúzia de inofensivos nefelibatas. Saíamos para as praças, com nossos cartazes, diante da indiferença geral. Ninguém queria saber.

Não teremos outros 40 anos para tomar decisões. Ainda que todos os países do mundo passassem a ser tão respeitadores do ambiente quanto a Dinamarca, já não seria possível anular os efeitos de décadas e décadas de ganância e de irresponsabilidade. É possível, contudo, impedir desastres maiores.

Precisamos, com urgência, repensar os atuais modelos de desenvolvimento, em particular no que diz respeito à utilização do solo. Não foi por acaso que há pouco citei a Dinamarca. O país escandinavo, que já é um dos maiores produtores e consumidores de produtos biológicos, pretende até o final do próximo ano duplicar a quantidade de terra cultivada sem recurso a pesticidas e outros venenos.

Sem surpresa, o Relatório Mundial da Felicidade de 2018, recentemente divulgado, volta a colocar os países escandinavos entre os mais felizes do mundo. O Brasil faria melhor em tomar esses países como exemplo, ao invés dos Estados Unidos, uma potência ao mesmo tempo predadora e suicida, cujo presidente se obstina em negar o aquecimento global. O mesmo vale, evidentemente, para Moçambique. Num mundo tão carente de referências talvez nos baste, afinal, olhar para o Norte.
José Eduardo Agualusa

Imagem do Dia

Santa Cruz de la Palma Canárias (Espanha)

Governo admite estar perdendo a guerra contra a dívida, a maior ameaça ao país

É a notícia mais importante para os brasileiros. Deveria ser manchete em todos os jornais, mas isso não acontece nem acontecerá, porque se trata de uma informação que se tornou corriqueira, não traz a menor novidade, ninguém se interessa mais. E o governo se comporta com uma irresponsabilidade realmente extraordinária. Relega a segundo plano a questão da dívida pública e alardeia que a reforma da Previdência vai solucionar a crise do país, como se fosse uma solução Tabajara, tipo “seus problemas acabaram”, mas não é bem assim.

É preciso analisar e conduzir a política econômica de acordo com os interesses nacionais, mas isso não ocorre quando se delega essa atribuição a banqueiros ou economistas que operam no mercado financeiro. Mal comparando, é como colocar a raposa para tomar conta do galinheiro.
As pessoas nem percebem, mas estamos vivendo no reino dos banqueiros. Em nenhum país do mundo os bancos obtêm tanto lucro, embora o Brasil esteja enfrentando a maior recessão de sua história. É claro que tem algo de errado nessa equação. Os primeiros a sofrer com a recessão deveriam ser os banqueiros, mas isso não acontece no Brasil, onde eles são blindados e banco não vai à falência.

Quando o PanAmericano ia soçobrar em 2009, Silvio Santos foi a Brasília, conversou com Lula, a Caixa Econômica Federal assumiu 35,5% do banco falido e ainda pagou R$ 740 milhões ao risonho Silvio Santos, que saiu dando gargalhadas, porque a falência iria levar de roldão outras empresas do grupo, inclusive a rede de televisão SBT.

Por coincidência, Dilma Rousseff colocou um diretor do Bradesco à frente da economia, Joaquim Levy; depois Michel Temer chamou Henrique Meirelles, ex-presidente mundial do Banco de Boston, e agora temos Paulo Guedes, fundador do banco BTG, que é sócio da Caixa no PanAmericano. Três banqueiros consecutivos, não há país que aguente!!!

Na verdade, nenhum dos banqueiros que assume a economia se preocupa em enfrentar a questão da dívida pública. Meirelles, por exemplo, que é um grande enganador, inventou o teto de gastos, prometeu equacionar a dívida no prazo de vinte anos, que era uma Piada do Ano. Se formos esperar 20 anos para equilibrar a economia, o próprio Meirelles já terá passado desta para melhor, como se dizia antigamente, e estará prestando contas ao criador.

Seu plano vintenário não durou nem mesmo um ano. A dívida não parou de aumentar e agora em fevereiro, mês de 28 dias, subiu 1,71%, um absurdo completo, frente a uma inflação de 0,43%, que também foi alta, em plena crise.

O atual chefe do Departamento Econômico do Banco Central, Fernando Rocha, admite que a dívida continuará a crescer, porque não há superávit primário. Fala como se isso fosse uma coisa normal, mas a conta de juros já é insuportável, inaceitável e impagável. Foram R$ 373,4 bilhões nos últimos 12 meses. E total aumenta ano a ano, sem que o governa faça nada, absolutamente nada. Aonde vamos parar? Que país é esse, Francelino Pereira?

Passado, presente, futuro no 31 de março

É conhecida a eletricidade intelectual do filósofo, matemático, historiador e crítico social Bertrand Russell, também chamado de “poeta da razão”. Recebeu o Nobel de Literatura em 1950 como poderia ter recebido o da Paz, pois a fundamentação dos jurados para agraciá-lo foi a de que seus escritos “promovem ideais humanitários e a liberdade de pensamento”. Sua vastíssima obra é marcada por um ceticismo de raiz.

Menos conhecida é uma de suas conferências transformada em livreto —“Pensamento livre e propaganda oficial” —, proferida na bicentenária Conway Hall Ethical Society de Londres. Naquele discurso Russell pregou a vontade de duvidar como essência do pensamento livre.


“Nenhuma de nossas crenças é inteiramente verdadeira. Todas contêm alguma penumbra de imprecisão, de erro”, disse. E entre as várias formas de aproximação da verdade, destacou “o controle de nossos próprios preconceitos através do debate com quem tem preconceitos contrários”. Também indicou que a classificação “livre” é vazia, a menos que se esclareça do quê algo ou alguém se libertou.

Bertrand Russell anda fazendo falta no mundo de 2019. Nos Estados Unidos, coube a um congressista reeleito pela sétima vez inaugurar novo patamar de retórica do ódio. Steve King, cuja afeição por supremacistas brancos é conhecida, postou um meme vislumbrando uma segunda Guerra Civil no país: um mapa dos Estados Unidos em forma humanoide, com dois soldados em combate, um azul e outro vermelho representando estados que votam Republicano ou Democrata. A legenda dizia tudo: " Um lado tem oito trilhões de balas, enquanto o outro lado sequer sabe qual banheiro usar. Adivinhem quem vai vencer...”

Pressionado, o parlamentar deletou a postagem, mas a palavra amaldiçoada — guerra civil — já havia impregnado as redes sociais.

Na Turquia, foi o próprio presidente Recep Erdogan que ressuscitou uma matança de outro século para apimentar a campanha de seu partido às eleições locais de hoje, 31 de março. Em pelo menos oito comícios, Erdogan utilizou segmentos do recente atentado a duas mesquitas na Nova Zelândia, inclusive algumas das horrendas cenas on-line, para incitar seus partidários. “Este ano”, avisou, visitantes anti-islâmicos que forem se aventurar até Gallipoli, no Estreito dos Dardanelos, voltarão para casa em caixões, “como seus avôs”.

Ele se referia a uma das mais longevas batalhas da Primeira Guerra Mundial, na qual as tropas do Império Otomano, em franca minoria, rechaçaram invasores da França e do Império Britânico, inclusive soldados da Nova Zelândia e Austrália. Ali morreram cerca de 600 mil soldados dos dois lados, e Gallipoli tornou-se ponto de romaria anual para os descendentes dos países envolvidos. A ver o que os aguarda no próximo 25 de abril, data de homenagear seus mortos.

Também dias atrás, outro presidente, o mexicano Andrés Manuel López Obrador, ou AMLO, teve a ideia de lançar contra a Espanha um petardo diplomático que remonta a 500 anos. Em carta enviada ao rei Felipe VI, ele exige que a antiga metrópole peça perdão por abusos praticados por Hernán Cortés contra os povos nativos durante a conquista das atuais terras mexicanas. “Houve matanças, imposições... uma conquista feita com espada e cruz”, diz a carta do presidente, que gostaria de celebrar em grande estilo o bicentenário da Independência do México, em 2021, livre da sombra do passado — o 500º aniversário da queda de Tenochtitlán também será em 2021.

Deu errado. A Espanha, país que até hoje não conseguiu inventariar sequer o morticínio de sua própria gente durante a ditadura franquista, rechaçou a exigência. No México, a presidente do Congresso Nacional Indígena, María de Jesús Patricio, qualificou a exigência de AMLO de marketing político. E de Córdoba, na Argentina, onde participava do VIII Congresso da Língua Espanhola, o escritor Mario Vargas Llosa atropelou a pauta e deu o "coup de grâce". 

“O presidente do México se enganou de destinatário”, discursou o Nobel de Literatura. “Ele deveria tê-la enviado a si mesmo e responder por que o seu país, que se incorporou ao mundo ocidental há 500 anos e há 200 desfruta de plena soberania, ainda tem tantos milhões de índios marginalizados, pobres, ignorantes e explorados.”

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro teve a ideia de ofender o passado e atiçar a nação neste 31 de março. O recuo de “comemoração” para “rememoração” da data não muda o essencial. Ontem, hoje e amanhã, golpe militar e ditadura não são questão de semântica. São substantivos da história.
Dorrit Harazim

Meninos, eu vi!

Sem entender direito o significado da cena, vi uma tropa do Exército cercar o Palácio do Campo das Princesas, no Recife, para depor e prender o governador Miguel Arraes na tarde do dia 31 de março de 1964. Eu tinha apenas 15 anos de idade e era aluno do Colégio Salesiano.

Quatro anos depois, vi 300 soldados da Força Pública de São Paulo prenderem pouco mais de setecentos jovens reunidos em um sítio ermo de Ibiúna durante mais um congresso da proscrita União Nacional dos Estudantes. Eu estava entre eles na condição de aluno do curso de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Chovia muito e fazia frio.

Como repórter da revista “Manchete”, vi o líder comunista Gregório Bezerra ser libertado no Recife no dia seis de setembro de 1969 para ser trocado pelo embaixador norte-americano sequestrado no Rio de Janeiro. Gregório e mais 15 presos políticos foram deportados para o México. No mesmo dia fui preso. O embaixador foi solto no dia seguinte.

Vi ser preso em 1981 o líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. Ele foi trancafiado em uma sala do DOPS paulista onde 13 anos antes eu fora interrogado e fichado como subversivo. Escrevi sobre a prisão de Lula já como editor assistente da revista “Veja”. E um ano mais tarde, cobri seu julgamento na Auditoria Militar.

Ainda estava na “Veja” quando o último general-presidente do ciclo de 64, João Figueiredo, acovardou-se diante do terrorismo de direita que tentava minar o processo de abertura política do país. Mas foi como chefe de Redação do “Jornal do Brasil” em Brasília que o vi abandonar o Palácio do Planalto pelas portas dos fundos.

Assustei-me ao saber na noite de 14 de março de 1985 que o primeiro presidente civil eleito pelo Congresso, Tancredo Neves, baixara ao hospital a doze horas de tomar posse. Sete vezes operado em menos de um mês, morreu sem ter governado um único dia. Velei seu corpo na madrugada mais triste da história do Palácio do Planalto. E no dia seguinte o segui para o enterro em São João Del Rey.

No final de fevereiro de 1986, testemunhei o entusiasmo das pessoas convocadas por um político de direita, o presidente José Sarney, para vigiar o congelamento de preços lacrando, se necessário fosse, supermercados, e dando voz de prisão a gerentes. Estava no Rio um ano depois no dia em que Sarney foi ali vaiado e apedrejado porque seu plano econômico fracassara.</span></p>

Assisti ao espetáculo do crescimento de Fernando Collor nos corações e mentes dos brasileiros. Escrevi algumas dezenas de vezes no “Jornal do Brasil” que ele era uma fraude e um perigo para a incipiente democracia do país. Não vi seu governo agonizar e morrer porque trabalhava em Angola no intervalo de uma das mais cruéis guerras do mundo. Fora demitido do jornal cinco dias depois que Collor se elegeu.

Em 1994, vi uma preciosa fonte de informações que sempre cultivara virar presidente da República e deixar de ser fonte. Nem por isso Fernando Henrique Cardoso se tornou refratário a jornalistas. Meus oito anos como Diretor de Redação do “Correio Braziliense” coincidiram com os oito dele como presidente. Ele perdeu o emprego dois meses depois que perdi o meu.

Da Bahia, como Diretor de Redação do jornal “A Tarde”, acompanhei à distância a estreia na função de presidente da República do ex-líder metalúrgico que um dia eu vira preso no DOPS a fumar, nervoso, um cigarro atrás do outro. Voltei a Brasília depois de 11 meses interessado em não perder um único lance da experiência de um governo eleito pela esquerda governar pela direita. E eu que pensava que já vira tudo!

Ainda veria Lula eleger e reeleger sua sucessora, Dilma Rousseff; Dilma acabar cassada pelo Congresso antes de concluir o segundo mandato; seu vice, Michel Temer, assumir o cargo e escapar de duas denúncias de corrupção para só mais tarde ser preso e solto quatro dias depois; Lula mofar numa cela de Curitiba condenado por corrupção e impedido de se candidatar a presidente pela sexta vez; e por fim, ou por ora, um capitão tosco chegar à presidência da República cercado por militares.

Vi o eclipse da liberdade que durou 21 anos. Vi a democracia ser finalmente restaurada. Faço votos para que ela resista aos anos que estão por vir.