domingo, 26 de maio de 2019

Passeata é inútil quando o problema é o despreparo

Vai mal um presidente quando precisa de grupos na rua em manifestações de apoio. Collor precisou. Pode ir mal um país quando seu presidente recomenda aos apoiadores evitar ataques ao Congresso e ao Judiciário. Que apoiadores são esses? Estarão enganados quanto às convicções democráticas de seu líder? Podem ter-se enganado, talvez, quando esse líder repassou em rede um texto sobre a impossibilidade de governar com as instituições. O tom do texto era golpista, mas ele declarou, depois, havê-lo simplesmente repassado.

Por que repassou, se discordava, e sem adicionar uma palavra de rejeição? Isso nunca foi explicado, mas explicar nunca foi o forte desse presidente. Ele comprovou essa qualidade, mais uma vez, ao anunciar um projeto capaz de render mais que o trilhão de reais pretendido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, com a reforma da Previdência. O projeto, soube-se depois, é uma fórmula para o governo ganhar dinheiro com a atualização de valor de imóveis incluídos na Declaração de Renda. Na prática, seria uma antecipação do imposto pago depois da venda. E se esse bem nunca for vendido? A ideia básica já foi rejeitada em países do mundo rico. Para o presidente e alguns de seus auxiliares, deve ser uma grande novidade. A propósito: o ganho para o Tesouro, se houver, ficará muito longe do trilhão, segundo fonte do próprio governo.

Enquanto o presidente se ocupava da manifestação, estranhamente descrita por alguns como um “protesto a favor do governo”, congressistas ocupavam espaço político, aprovavam na Câmara a medida provisória de recomposição dos ministérios e punham em tramitação um projeto próprio de reforma tributária.

Para alguns, a movimentação na Câmara foi um recuo do Centrão, pressionado pelo governo e por seus apoiadores. A visão oposta parece mais adequada. Afinal, os deputados, além de mostrar serviço, negaram a transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para o Ministério da Justiça e se anteciparam ao projeto governamental de mudança dos impostos e contribuições. Pode-se discutir o alcance de cada um dos projetos, o da Câmara e o do Ministério da Economia, mas o Executivo foi inegavelmente atropelado – e sem invasão de atribuições, acusação dirigida ao presidente no caso do decreto sobre porte de armas. Mais importante ainda, parlamentares de peso, a começar pelos presidentes da Câmara e do Senado, já se declararam comprometidos com a reforma da Previdência, com ou sem atuação do Executivo.

Contestado no Parlamento e no Judiciário, o presidente acabou forçado a editar um novo decreto sobre o assunto, para restringir, por exemplo, o acesso a certo tipo de fuzil. Um dia antes, as ações da Taurus haviam disparado na bolsa paulista, depois de anunciada pela empresa uma fila de 2 mil pessoas interessadas na compra daquela arma. Entre outras mudanças, o segundo decreto reduziu as facilidades para crianças ingressarem nas escolas de tiro e iniciarem a vida no mundo do bangue-bangue, tão valorizado entre muitos bolsonaristas.

Mais um recuo foi incluído, portanto, na lista bolsonariana. O presidente já havia recuado, por exemplo, da tentativa de controlar o preço do diesel. Não parece ter abandonado totalmente a ideia, mas foi forçado a amaciar sua atitude depois de uma desastrada pressão sobre a diretoria da Petrobrás. Recuou também da decisão de impor seus critérios, formalmente, à publicidade das estatais. A bobagem estava claramente encaminhada, na área de Comunicação, quando o secretário de Governo, general Santos Cruz, chamou a atenção para a Lei das Estatais. Não pode o Executivo, segundo essa lei, meter-se em decisões administrativas como a publicidade estritamente mercadológica.

No começo do mandato o presidente já havia abandonado, ou pelo menos adiado, o plano de mudar para Jerusalém a embaixada em Israel. Advertido para o custo de uma encrenca com países muçulmanos, grandes importadores de alimentos produzidos no Brasil, reviu sua ideia e substituiu a mudança da embaixada pela instalação de um escritório comercial. Mais que uma decisão econômica, esse remendo foi uma tentativa de mostrar-se fiel ao compromisso de seguir, algum dia, seu líder Donald Trump e ao mesmo tempo contentar os apoiadores evangélicos. Nenhum desses motivos tem relação com os interesses políticos e econômicos de uma diplomacia de respeito.

O Executivo brasileiro recuou também do anunciado abandono do Acordo de Paris sobre o clima. Deu mais um passo atrás ao confirmar, depois de havê-la negado, a realização, em Salvador, de uma conferência regional preparatória para uma grande reunião sobre a questão climática em Santiago do Chile. Alguém próximo do presidente deve ter-lhe apontado os enormes custos diplomáticos e comerciais de suas bravatas anticonservacionistas. Os custos internos do empobrecimento ambiental deveriam ser suficientes, mas a esses o presidente e vários de seus auxiliares parecem absolutamente insensíveis.

Enquanto o presidente passava mais uma semana tropeçando, perdendo tempo e sendo forçado a recuar mais de uma vez, o vice Hamilton Mourão participava de reuniões em Pequim, era recebido pelo presidente Xi Jinping e tentava anular os danos causados por seu chefe e pelo ministro das Relações Exteriores na relação com a China, maior cliente das exportações brasileiras.

Além de ser grande compradora, a China tem um importante programa internacional de investimentos em infraestrutura. É preciso, sim, avaliar a conveniência de cada projeto, mas isso é função normal de um governo tecnicamente preparado, competente na ação diplomática e levado a sério pelas autoridades estrangeiras.

Sem essas qualidades, nenhuma passeata de apoio será suficiente para fortalecer um presidente e sua equipe. A ruindade será do governo. Não adianta culpar a democracia.

Um presidente reativo

Jair Bolsonaro se meteu numa encrenca. Não, não falo de ele ter assumido a Presidência, mas da convocação de seus apoiadores para participar de manifestações pró-governo neste domingo. Do nada, o presidente criou para si o que os americanos chamam de “lose-lose situation”, isto é, colocou-se numa posição em que, não importa o que ocorra, ele sairá perdendo.

Se as manifestações não reunirem um público grande, ou seja, se der para carimbar que foram um fracasso, o governo terá dado uma inédita demonstração de fraqueza —e com apenas cinco meses de mandato.

Se, por outro lado, os protestos ficarem apinhados de gente, a pressão sobre o Congresso e o STF tornará mais tenso o relacionamento entre os três Poderes, dificultando o futuro de sua administração, que depende do Legislativo e do Judiciário para concretizar praticamente todos os seus projetos.

Mesmo no mais verossímil cenário de copo meio cheio, meio vazio, no qual as manifestações não possam ser classificadas nem como fiasco nem um retumbante sucesso, Bolsonaro não sai incólume. Ele já perdeu pontos ao expor divisões entre seus apoiadores. Grupos fortemente vinculados ao presidente, como o MBL e o Vem pra Rua, anunciaram publicamente que não estariam nos atos. O próprio Bolsonaro pulou fora, e proibiu ministros de participar.

A estratégia de atiçar as massas contra o Legislativo e Judiciário só faria sentido se o presidente tivesse planos reais de investir contra os dois Poderes. E, mesmo assim, a abordagem racional teria exigido que atacasse com carga total, não que, no instante seguinte, se pusesse a contemporizar e esvaziar os protestos.

A sensação que fica é a de que o presidente não tem um plano muito definido do que fazer para lograr seus objetivos. Ele apenas reage, com base em instintos, aos acontecimentos. Como nada indica que mudará de atitude, devemos esperar três anos e meio de muitos sobressaltos e inconstâncias.

Bolsonaro, o infiltrado

Algumas poucas vezes ao longo dos seus primeiros cinco meses de governo o presidente Jair Bolsonaro surpreendeu positivamente. Sua declaração contra os que querem ir ao ato deste domingo para atacar o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional foi uma dessas vezes. Bolsonaro fez a afirmação durante café da manhã com jornalistas, o quinto encontro desse tipo marcado pelo presidente, e que também podem ser incluídos na sua lista de bola dentro. Quem defender o fechamento do STF e do Congresso “estará na manifestação errada”, disse. “Isso é manifestação a favor de Maduro, não de Bolsonaro”, concluiu o presidente.

Não podia estar mais correto. Os Poderes constituídos são a base da democracia. Pode-se até criticar o Supremo e o Congresso por decisões que tomarem, mas jamais pregar o seu fechamento. Os que acusam o Judiciário e o Legislativo pelos problemas de Bolsonaro estão equivocados. Os que sugerem que a saída é interromper o funcionamento das duas casas maiores são pessoas de baixa qualificação cognitiva e falam da boca para fora sem medir consequências.

O próprio Bolsonaro já atacou o Supremo mais de uma vez. Ele também defendeu, pouco antes da eleição, aumentar de 11 para 20 o número de ministros do STF. “Para equilibrar as coisas”, nas palavras de seu filho Eduardo, o ideólogo da família, sugerindo um viés de esquerda dos membros da casa. Bobagem, claro, mas enfim, era assim que os Bolsonaro pensavam no ano passado. O mesmo filho disse, algum tempo antes, que bastariam um soldado e um cabo para fechar o Supremo.

O presidente também já bateu à vontade no Congresso. Outro dia mesmo afirmou que o grande problema do Brasil é a classe política. Nesse caso o ataque era generalizado, e ele ressaltou que incluía-se dentro da citada classe problemática. Em momentos mais remotos da sua atividade política, Bolsonaro defendeu a ditadura, estado que pressupõe um Executivo forte que funcione sem fazer consultas e sem sofrer avaliações, com o fechamento ou a submissão dos outros Poderes. Esse é o problema do presidente. Ele diz uma coisa num dia e outra diferente no dia seguinte.

No café com jornalistas, o presidente disse também que, embora condene os ataques, nada impede que durante o ato “apareça um infiltrado defendendo essas ideias e usando a camisa amarela”. Quer dizer, ele condena quem ataca, mas admite que haja, no meio da manifestação a seu favor, gente gritando pelo fechamento do STF e do Congresso. Trata-se do famoso “morde e assopra”. Condena, mas não tanto assim. E, ao que parece, perdoa os que se equivocarem.

O presidente é ele próprio um infiltrado. Assumiu o comando da nação depois de anos produzindo declarações contra a democracia e a favor de qualquer barbaridade que lhe parece apropriada. Como a tortura, por exemplo. O presidente Jair Bolsonaro é um infiltrado no jogo democrático. Nenhuma dúvida. O importante é que agora, com o poder que obteve das urnas, continue produzindo considerações como aquela do café da manhã.

Jogar a favor dos Poderes constituídos é obrigação do presidente da República. Ao defender o Supremo e o Congresso, Bolsonaro estava simplesmente cumprindo uma de suas principais atribuições constitucionais. Mesmo assim pode-se dizer que, vindo de quem veio, ele fez muito bem.
História implacável

Nunca fez bem aos presidentes do Brasil tentar governar atacando o Congresso ou sem apoio parlamentar. Todos os que foram por esse caminho, dentro da normalidade constitucional, se deram mal. Pela ordem, Getulio se suicidou; Jango foi destituído; Jânio renunciou; Collor e Dilma sofreram impeachment.

Vox populi

Com apenas cinco meses de mandato, a aprovação ao governo de Jair Bolsonaro derrete a olhos vistos. Pesquisa da XP/Ipespe mostra que, numericamente, a avaliação negativa do presidente já supera a positiva. Segundo o levantamento, feito entre os dias 20 e 21 de maio, com margem de erro de 3,2 pontos porcentuais, subiu para 36% o número de entrevistados que consideram o governo ruim ou péssimo - há duas semanas, eram 31%. Já o porcentual de entrevistados que consideram a gestão ótima ou boa passou de 35% para 34% no mesmo período. Ou seja, em duas semanas, Bolsonaro perdeu seis pontos porcentuais de aprovação.


O derretimento tem sido constante desde fevereiro, quando a desaprovação a Bolsonaro estava na casa dos 17%. Já a aprovação ao presidente oscilou menos - saiu de 40% em fevereiro para 34% agora, indicando que pode haver uma espécie de “núcleo duro” de apoio ao governo. O grosso do eleitorado que passou a condenar a gestão do presidente provavelmente saiu da parcela que considerava Bolsonaro “regular” - que passou de 31% há duas semanas para 26% na última pesquisa. Isso sugere que a paciência dos que ainda esperam alguma coisa positiva do governo está acabando rapidamente.

Exemplo disso é o quadro sobre as expectativas para o restante do mandato. A parcela dos otimistas, que estava em 63% em janeiro, hoje está em 47%, enquanto os entrevistados mais pessimistas já somam 31% - eram 15% em janeiro e fevereiro.

Tal cenário não surpreende, pois a maioria dos indicadores econômicos sofreu forte deterioração ao longo dos cinco meses de mandato de Bolsonaro, eleito justamente com a promessa de deflagrar um amplo e vigoroso processo de recuperação do crescimento do País. A pesquisa mostra que, embora a maioria dos entrevistados (49%) ainda atribua aos governos petistas a maior parte da responsabilidade pela crise econômica - sinal evidente da vitalidade do antipetismo manifestado nas urnas na eleição passada -, dobrou, de 5% para 10%, em apenas duas semanas, a parcela de eleitores que responsabilizam Bolsonaro.

Tal percepção começa a tomar corpo porque o presidente tem sido até aqui incapaz de adotar medidas que de alguma forma ajudem a reverter o clima de desconfiança. Aparentemente mais preocupado com os radares nas estradas e com a moralidade no carnaval, Bolsonaro limitou-se até aqui a encaminhar uma proposta de reforma da Previdência ao Congresso, a respeito da qual não mostra grande convicção e por cuja aprovação não parece interessado, já que não se empenhou em formar uma base parlamentar que pudesse defendê-la. Quando resolveu mencionar outras iniciativas, como um certo projeto tributário que, segundo Bolsonaro, trará uma economia maior do que a reforma da Previdência, ficou definitivamente claro que o presidente da República não tem a menor ideia do que está falando - o que naturalmente contribui para o aumento do ceticismo.

Mais de uma vez, nos últimos dias, Bolsonaro declarou que governa conforme os desejos do “povo”. Se realmente está interessado em ouvir a voz do povo, e não apenas a dos devotos de sua seita, o presidente faria bem em ao menos observar a opinião expressa nas pesquisas. No levantamento mais recente, por exemplo, cresceu de 37% para 48% a parcela de entrevistados que consideram que, nas relações com o Congresso, o presidente deveria “flexibilizar suas posições para aprovar sua agenda, ainda que isso signifique se afastar do discurso inicial”. Apenas 31% - parcela que possivelmente corresponderia ao “núcleo duro” do bolsonarismo - entendem que Bolsonaro deve “endurecer suas posições e seu discurso, ainda que isso signifique dificuldades na relação com o Congresso”.

É claro que nenhum chefe de governo deve basear sua gestão em pesquisas de opinião, pois muitas vezes é preciso tomar decisões impopulares para resolver os problemas nacionais. No entanto, fica cada vez mais evidente que Bolsonaro parece contar com o apoio somente daqueles que o veem como “messias” e como um mártir do “sistema”. Aos demais brasileiros, que não se deixaram encantar pelo palavrório salvacionista de Bolsonaro, resta o pessimismo.

As cortes da mentira

A corte era só uma, nos velhos tempos. Hoje são muitas! Pequenas cortes, onde os homens, mestres na arte da dissimulação, jogam sub-repticiamente os seus interesses e tomam atitudes nobres ou sensíveis. Mentindo sempre.... em nome de ridículas verdades e de razões excessivamente particulares.

Mas a finura, única que verdadeiramente cultivam, para dizer agora que o preto é preto e logo que é branco? E a paixão disfarçada mas firme com que se defendem aqui e atacam além? Com que dominam e desbaratam os seuis ilusórios contendores.... Quais contendores?
Irene Lisboa, "Apontamentos"

O atraso é nosso

Segundo projeções da Bloomberg até 2030, o panorama econômico mundial sofrerá uma profunda mudança. Hoje espanta imaginar que a China, sinônimo de pobreza e atraso social até a década de 90, já em 2020 terá deixado os Estados Unidos como segunda economia do mundo. No horizonte também é dado como certo que a Índia, reconhecida até há poucos anos como um dos países mais miseráveis do planeta, ultrapassará os Estados Unidos.

A população da Índia na atualidade, com 1,2 bilhão de habitantes, chegará a ultrapassar aquela da China - que limitou severamente a procriação com 1,5 bilhão de abortos nos últimos 15 anos -, hoje com seu 1,4 bilhão.

O Brasil, nesse contexto de colossos (no início do século XXI pareciam concorrentes insignificantes para o “gigante adormecido”), crescerá, sim, mas num ritmo bem mais lento, a ponto de que seu PIB será equivalente a míseros 13% daquele da China e 18% da Índia. Os dois países orientais estão realizando avanços impressionantes, assumindo o domínio da produção não só física, mas intelectual das novas tecnologias.

O Brasil avançará no ranking dos dez maiores, alcançando o sexto lugar (hoje no oitavo), porém será ultrapassado pela Indonésia, Turquia (!). Nas previsões do futuro imediato, apenas a Alemanha entre os “europeus” estará no grupo das dez maiores economias, exatamente na lanterna. Sumirão do “caput mundi”, segundo a Bloomberg, a França, a Inglaterra e a Itália.


Na base dessa mudança radical, além do crescimento populacional e do nivelamento de desigualdades, é preciso buscar as razões culturais que permitiram escolhas de ordem política em favor do desenvolvimento acelerado.

A Índia, uma mescla de 20 raças arianas e orientais, apesar de aparentemente parada no tempo, se beneficiou de uma cultura hinduísta e do seu derivado budista. Nestas, o destino do ser humano leva ao nirvana, quando o corpo e seus tormentos, como o envelhecimento, serão dispensados, e, liberto de reencarnar, continuará numa forma de espírito angelical, determinado por valores e possibilidades indescritíveis com palavras.

A ideia de uma ininterrupta evolução entre dois infinitos liga ao ser indestrutível (o espírito) um fardo chamado "karma" (méritos e deméritos). A complexidade faz dessa população uma atenta observadora da imaterialidade, do pensamento, da meditação, do intelecto, das vibrações da natureza.

Essas religiões propiciam abertura mental, reflexão, contraposição de ideias, aceitação e atenção para o impalpável: fatores essenciais na Índia, normalmente insignificantes e não ensinados no Ocidente. O indiano é naturalmente alerta à “imaterialidade”, às ondas do pensamento como criadoras e modeladoras.

Numa época pós-industrial, como a que vivemos, as maiores conquistas, inclusive econômicas e financeiras, passaram a se realizar nas tecnologias avançadas e nas comunicações virtuais. Disso o imenso acervo cultural e religioso, baseado nos Vedas, Upanixades e Bagavad Gita, deu valor a capacidades superiores, reflexiva, intuitiva, analítica. Cidades pobres como Bangalore em duas décadas saíram de uma entristecedora miséria para surgir como centros de tecnologia avançada da comunicação, da informática, da imagem e da informação.

A China, por sua vez, carrega, como destaca o sociólogo Domenico de Masi, a sábia tradição de Confúcio, que enraizou no país as regras de ordenamento exterior das atividades humanas e de uma vida regrada pelo contínuo equilíbrio “marcial” de forças e de ações conscientes. Em contraste com o pensamento materialista do Ocidente.

O comunismo chinês difere do congênere da Europa e mais ainda daquele da América Latina. Baseia-se atualmente no “Beijing consensus”, um contraposto ao “Washington consensus”, e se apresenta como uma composição de pragmatismo, intervenção do Estado na economia, prioridade do mercado sobre a democracia, enxerto capitalista no Estado socialista, abertura liberal aos investimentos internos e externos, flexibilidade absoluta do emprego, carga tributária mínima, baixa intervenção burocrática, assistencialismo enxuto, concentração das decisões num núcleo fechado e restrito de inteligência, ao qual se submetem Legislativo, Exército e Judiciário.

É um sistema que, visto do Ocidente, parece um sonho (ou pesadelo) ultraliberal, um Frankenstein de ideologias e de regras que, entretanto, recolheu um inconteste sucesso econômico, sem empreender guerras e confrontos, para erguer-se como a maior potência econômica e, em breve, financeira do planeta. Isso sem ter em comum a visão bolivariana do comunismo latino-americano, que tem como referência a castigada Cuba e os escombros da Venezuela.

Em 2030 a China alcançará um PIB de US$ 64 trilhões, mais que o dobro dos US$ 31 bilhões dos Estados Unidos. A Índia, em segundo lugar, terá US$ 46 bilhões, enquanto o Brasil, em sexto lugar, ficará com US$ 8,6 bilhões.

O Brasil não possui tradição, cultura que possibilitem fórmulas chinesas. A desgraça maior aqui é o patrimonialismo de direita e de esquerda, que se locupleta usando o mecanismo suprapartidário da corrupção, sem qualquer preocupação, a não ser eleitoral, com o crescimento da economia e a retirada da pobreza da população. Aliás, quanto maior, mais inculta e miserável ficar a população, mais se presta às manobras de quem pensa, assumindo um governo, apenas em pilhar o que sobrou das pilhagens anteriores.

Em comum, as economias emergentes do planeta levam a sério o superávit das contas públicas, os investimentos em infraestrutura e os multiplicadores de oportunidades.

Já no Brasil a cultura local prioriza o acessório, os privilégios e as “maracutaias”, sem preocupação com o futuro, a educação, a formação ética e profissional. A atenção é com o acessório; tão grande que esgota as receitas, maximizadas por uma carga tributária absurda, a ponto de tomar emprestados recursos para pagar a folha.

Se analisarmos o lulopetismo, veremos que, na sua fase de sucesso, registrou superávits primários, e disso atraiu investimentos enormes, mas, quando começou a “pedalar”, caiu e perdeu o rumo.

Os exemplos de fora e a lição de dentro não servem ao atual Congresso. As reformas devem visar à perenização dos superávits, estancar a irresponsabilidade (privilégios), que desperdiça as oportunidades de progresso de todos e que, como na China, tiraram centenas de milhões de pessoas da miserabilidade.

Os investimentos estruturantes não têm cota legal (!) até hoje. Paradoxalmente, aquilo que ajustou e fez avançar toda e qualquer economia de sucesso mundo afora, aqui, entre nós, nem é discutido.

O desgaste de Bolsonaro

Em apenas 144 dias de governo, o presidente Jair Bolsonaro atravessou uma importante linha de desgaste. Há mais pessoas achando que sua administração é ruim e péssima do que avaliando que é boa e ótima. É o presidente desde a redemocratização cuja popularidade caiu mais rapidamente no primeiro mandato. Interessante também notar que há uma quase unanimidade de que a relação dele com o presidente da Câmara deveria ser melhor, e a maioria considera que o presidente poderia ser flexível para que suas propostas passem no Congresso.

A pesquisa XP/Ipespe ouve mil pessoas, e por telefone. É metade da amostra do DataFolha, mas tem sido capaz de apontar as tendências do eleitorado. O governo deveria olhar com cuidado esses sinais, porque tem três anos e sete meses pela frente e muita necessidade de aprovar mudanças difíceis para que a economia saia do descaminho em que entrou.

Apenas 10% acham que a crise atual é culpa do presidente Bolsonaro. De forma justa, eles responsabilizam mandatos passados, principalmente os do PT, quando o país entrou em recessão e o desemprego passou a aumentar. Mas eram 5% na última pesquisa. Quanto mais o tempo passar, mais subirá a tendência de pôr na conta do atual governo o que estiver dando errado.

De fevereiro para maio, aumentou de 17% para 36% os que fazem avaliação negativa do governo Bolsonaro e caiu de 40% para 34% os que têm visão positiva. Os que consideram regular eram 32% e agora são 26%. Essa turma do meio está indo para a visão de que a administração é ruim ou péssima.

Há um número maior de brasileiros com expectativa positiva para o resto do mandato, ou seja, achando que esse tempo de dificuldades iniciais será superado. São 47% os que têm esperança de um desempenho melhor no tempo restante, mas eram 63% em janeiro. Hoje são 31% os pessimistas e eram 15% no começo do ano.


O desgaste é natural, mas não é comum que aconteça tão rapidamente, antes ainda de se completar os seis meses. Os estrategistas do governo deveriam pensar mais profundamente, e sem terceirizar a culpa, sobre o que está acontecendo para essa queda ser tão rápida. Há uma relação direta entre popularidade e capacidade de o governante atrair parlamentares para os seus projetos. Quando ela cai, há a lógica centrífuga no presidencialismo de coalizão: os deputados e senadores se afastam. E o caso recente mais perfeito disso foi o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, quando a inflação subiu rapidamente, a economia afundou na recessão, e em três meses ela chegou a 60% de rejeição. No primeiro mandato ela teve um recorde positivo nesta fase inicial: 47% achavam ótimo e bom o seu governo, segundo o Datafolha, e apenas 7% consideravam ruim e péssimo. Ela perdeu esse capital ao longo dos anos, foi reeleita, mas imediatamente caiu num vácuo. O PT passou a dizer que a ex-presidente foi vítima de golpe, mas deveria olhar com objetividade o que disseram os números de popularidade e da economia, e a relação desses dados negativos com os seus problemas no Congresso, para evitar, na eventualidade de voltarem ao poder no futuro, a repetição dos mesmos erros. A terceirização da culpa dá um conforto temporário, mas não muda o quadro.

Nesta pesquisa da XP/Ipespe o governo pode culpar a imprensa, mas isso não resolverá seu problema. A percepção das pessoas ouvidas é de que o noticiário está mais desfavorável: 56% acham isso, contra 45% na última pesquisa. A culpa é da notícia ou dos fatos? O governo criou problemas para si mesmo, teve uma agenda negativa, com essas brigas entre alas da administração que derrubaram um ministro e vários funcionários de segundo escalão, como os três presidentes do Inep. O presidente fez declarações polêmicas ou falsas, e seu grupo atacou políticos com os quais poderia fazer alianças. Ao todo, 48% acham que ele deveria flexibilizar suas posições para aprovar as medidas no Congresso. Bolsonaro tem bloqueado esse caminho quando inventa que negociar é aceitar a corrupção.

A maioria, 70% dos entrevistados, quer que o Brasil permaneça presidencialista, mas o eleitorado, como se sabe, nunca deu ao partido de qualquer governante a maioria das cadeiras no Congresso. Quem ocupa a Presidência precisa conquistar isso negociando a coalizão. E é exatamente o que Bolsonaro não faz.

Brasil contingencia até o verde


Bolsonaro vê nas ruas o álibi para culpar alguém

Quando Jair Bolsonaro trombeteou no Twitter o texto que se referia ao Brasil como um país "ingovernável", dizia-se que a manifestação deste domingo seria contra o Congresso, o Supremo, a mídia e todos os grupos que puxam o tapete do capitão. Com o passar dos dias, o presidente ajustou seu linguajar nas redes sociais aos conselhos dos militares que o rodeiam. E a pauta dos atos de rua foi se tornando mais aguada. Há três dias, em café da manhã com jornalistas, Bolsonaro cuidou de imunizar-se contra eventuais excessos : "Quem defende o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional está na manifestação errada."

Inventou-se, supremo paradoxo, um protesto a favor. Alega-se que os mosqueteiros da infantaria pró-governo decidiram ocupar o asfalto para prestigiar o presidente e endossar as causas que lhe são caras. Um por todos, todos por hummmmmm... Louve-se o direito inalienável de qualquer um de sair às ruas para defender qualquer coisa. Entretanto, como 57 milhões de eleitores acabaram de comparecer às urnas para fazer a mesma coisa, fica evidente que a serventia desse do protesto a favor pró não é senão oferecer a Bolsonaro um álibi para botar a culpa em alguém. O presidente vê culpados pelo fiasco dos primeiros cinco meses de sua gestão em toda parte, exceto no espelho.

Governantes como Bolsonaro, que cultivam teorias conspiratórias para tudo, inspiram o mesmo sentimento que os céticos nutrem em relação a pessoas religiosas. É difícil acreditar no que elas acreditam. A metafísica acaba sendo mais divertida do que o materialismo chato, que procura uma lógica por trás de cada fato. Desde que tomou posse, o capitão revelou-se um mágico. Transforma calmaria num roteiro de intriga, emoção e perfídia. Faz aparecer uma crise do nada. Retira uma crise de dentro da outra. Magnifica crises pequenas, tornando-as gigantescas, barulhentas e ameaçadoras. Depois, tira da cartola as teorias conspiratórias.

Todos sabiam que a renovação das urnas de 2018 não havia extirpado do Congresso o tumor do centrão. Mas Bolsonaro dizia ter encontrado uma vacina contra o fisiologismo. Governaria acima dos partidos, vinculando-se às bancadas temáticas do Congresso. Deu no que está dando. O capitão ainda não se dignou a chamar para uma conversa os deputados e senadores sérios (sim, eles existem). Tampouco aproximou-se dos novatos (sim, eles também estão lá). Com 28 anos de experiência política, Bolsonaro dedica-se no momento a não fazer política. E acredita que não tem nada a ver com as derrotas que sofre no Legislativo. Isso é obra de conspiradores.

Em campanha, o capitão dissera que não faria concessões ao troca-troca. Acenou com um ministério de notáveis. Entregou três pastas ao DEM sem obter os votos do partido. Acomodou no Turismo um dono de laranjal do PSL. Confiou o Meio Ambiente a um condenado por improbidade que conspira contra o ambiente inteiro. Colocou para cuidar dos Direitos Humanos uma pastora evangélica que enxerga lesbianismo em desenho animado.

Como se fosse pouco, Bolsonaro revelou-se um presidente da cota pessoal do polemista Olavo de Carvalho. Criou uma cota ministerial para o encrenqueiro da Virgínia. Pelo Ministério da Educação, já passaram dois "olavetes". O primeiro ergueu barricadas contra o "marxismo cultural". Tropeçou nas próprias pernas. O segundo dedica-se a combater comunistas que enxerga sob a cama e a brigar com as universidades. O "olavete" do Itamaraty guerreia contra o "globalismo" e faz cara feia para o principal parceiro comercial do país, a China. Quando não está desorientando seus ministros, o guru Olavo está desqualificando os militares.

Juntos, o polemista predileto de Bolsonaro e os notáveis da equipe ministerial ajudam o presidente no seu esforço diuturno para executar a tarefa prioritária do Planalto: fabricar crises. São tantas e tão frequentes, que oferecem farta matéria-prima para os que desejam retardar no Congresso as únicas pautas benfazejas que o governo foi capaz de erigir: a reforma da Previdência e o pacote anticrime e anticorrupção. Paulo Guedes ameaça ir embora. Sergio Moro sonha com uma poltrona no Supremo. Mas Bolsonaro não tem nada a ver com o desânimo dos ex-superministros. É culpa dos conspiradores da mídia.

Qualquer criança de cinco anos consegue perceber que a imprensa não se confunde com as crises que infestam Brasília. Os repórteres mudam de assunto sempre que o governo substitui uma confusão por outra. No dia em que cessarem os curtos-circuitos, as manchetes vão parar de dar choque.

No momento, o ano de 2019 está indo a pique. O IBC-BR, espécie de prévia do PIB divulgada pelo Banco Central, registrou queda de 0,68% no primeiro trimestre de 2019 em comparação com o mesmo período do ano passado. O Ministério da Economia, que já sonhou com um índice próximo dos 3%, anotou no relatório bimestral de execução orçamentária uma estimativa de crescimento anual de 1,6%. A pesquisa Focus, na qual o BC reúne a posição dos especialistas do mercado, anotou em sua penúltima edição uma estimativa ainda mais magra: 1,24%. Há na praça quem aposte num desempenho abaixo de 1%.

Bolsonaro, naturalmente, não tem nada a ver com a perda de tempo que enferrujou o otimismo dos investidores e lubrificou o desespero dos mais de 13 milhões de brasileiros que se encontram no olho da rua. Isso é coisa dos conspiradores da oposição. O mal maior não está escondido: é a herança maldita dos governos anteriores. Os problemas se revelaram tão maiores do que pareciam que, no futuro, quando os feitos do atual governo não baterem com as promessas feitas na campanha, os conspiradores do passado, esmigalhados nas urnas, é que serão culpados.

Neste domingo, quando os manifestantes erguerem cartazes a favor das reformas econômicas e morais, estarão culpando o Congresso, no atacado, e o centrão, no varejo. Quando gritarem palavras de ordem a favor da Lava Jato, é contra o Supremo que estarão se insurgindo. Para usar uma terminologia da moda, os manifestantes se auto-converteriam em "idiotas úteis" se tratassem Bolsonaro como parte do problema. Seria o mesmo que admitir que o capitão virou um conto do vigário no qual seus eleitores caíram. Melhor enaltecer o presidente. Não resolve o problema. Mas fornece a Bolsonaro o álibi para que ele, aliviado, terceirize todas as culpas.

Inundação censória

Angel Boligan 
No passado, a censura funcionava bloqueando o fluxo de informação. No século XXI, ela o faz inundando as pessoas de informação irrelevante
Yuval Noah Harari

Bolsonaro nada aprendeu, mas nada esqueceu

Dê no que der as manifestações bolsonaristas marcadas para hoje, o Congresso não se deixará abater por elas. Muito menos o Supremo Tribunal Federal, alvos preferenciais dos que desejam governar com braço forte e a salvo das restrições próprias da democracia.

O presidente Jair Bolsonaro pode contar com muito apoio nas redes sociais que o ajudaram a se eleger, mas não foram elas que mais pesaram para o milagre registrado em outubro último. Pesou o efeito facada. E pesou, e muito, a rejeição ao PT e ao seu chefe preso.

As pesquisas de avaliação do governo feitas de janeiro passado para cá mostram que uma parte dos eleitores de Bolsonaro começa a debandar de suas fileiras. Cresce o número daqueles que o culpam pela desalentadora situação econômica do país que só faz se agravar.

Os donos do dinheiro querem as reformas, mas já concluíram que elas dependem pouco de um governo amador, estabanado, sem projeto para o país, e que aposta invariavelmente em conflitos. Elas dependem do Congresso onde o governo carece de maioria.

A parte mais poderosa e influente da mídia é hostil a um governo que lhe devota desprezo e que só deseja manietá-la. Não há sinais no horizonte de que Bolsonaro planeje se reinventar, convertendo-se em um presidente normal e capaz de compartilhar o poder.

Se ele pensa que o eventual fracasso do seu governo causará uma convulsão social que se reverterá ao seu favor, arrisca-se a se frustrar ou a colher um impeachment. Dilma não caiu por causa das pedaladas fiscais, mas porque perdeu as condições para governar.

No parlamentarismo, um governo fracassado é substituído por um governo novo. E segue a vida. No presidencialismo, troca-se de presidente em meio a uma crise de grandes proporções. Dois foram embora assim (Collor e Dilma). Quase foi embora outro (Temer).

Foi Bolsonaro que acendeu o pavio para animar seus seguidores a saírem às ruas em seu socorro. Procedeu como de costume – compartilhando um texto apócrifo nas redes sociais que dizia que o país é ingovernável com o Congresso e a Justiça que tem.

Não se deu conta de que por causa disso poderia ser alvo de um processo de impeachment. É crime de responsabilidade, segundo a Constituição, atentar contra o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados.

Alertado por assessores, recuou. Passou a dizer que não haveria lugar nas manifestações para os que defendem o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal – é só o que se verá a partir de logo mais. Se antes cogitara de ir para as ruas, desistiu.

Amanhã será outro dia. E os desafios de um governo sem rumo e movido a crises continuarão do mesmo tamanho que têm hoje, se não maiores.

Passeata é inútil quando o problema é o despreparo

Vai mal um presidente quando precisa de grupos na rua em manifestações de apoio. Collor precisou. Pode ir mal um país quando seu presidente recomenda aos apoiadores evitar ataques ao Congresso e ao Judiciário. Que apoiadores são esses? Estarão enganados quanto às convicções democráticas de seu líder? Podem ter-se enganado, talvez, quando esse líder repassou em rede um texto sobre a impossibilidade de governar com as instituições. O tom do texto era golpista, mas ele declarou, depois, havê-lo simplesmente repassado. Por que repassou, se discordava, e sem adicionar uma palavra de rejeição? Isso nunca foi explicado, mas explicar nunca foi o forte desse presidente. Ele comprovou essa qualidade, mais uma vez, ao anunciar um projeto capaz de render mais que o trilhão de reais pretendido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, com a reforma da Previdência. O projeto, soube-se depois, é uma fórmula para o governo ganhar dinheiro com a atualização de valor de imóveis incluídos na Declaração de Renda. Na prática, seria uma antecipação do imposto pago depois da venda. E se esse bem nunca for vendido? A ideia básica já foi rejeitada em países do mundo rico. Para o presidente e alguns de seus auxiliares, deve ser uma grande novidade. A propósito: o ganho para o Tesouro, se houver, ficará muito longe do trilhão, segundo fonte do próprio governo.


Enquanto o presidente se ocupava da manifestação, estranhamente descrita por alguns como um “protesto a favor do governo”, congressistas ocupavam espaço político, aprovavam na Câmara a medida provisória de recomposição dos ministérios e punham em tramitação um projeto próprio de reforma tributária.

Para alguns, a movimentação na Câmara foi um recuo do Centrão, pressionado pelo governo e por seus apoiadores. A visão oposta parece mais adequada. Afinal, os deputados, além de mostrar serviço, negaram a transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para o Ministério da Justiça e se anteciparam ao projeto governamental de mudança dos impostos e contribuições. Pode-se discutir o alcance de cada um dos projetos, o da Câmara e o do Ministério da Economia, mas o Executivo foi inegavelmente atropelado – e sem invasão de atribuições, acusação dirigida ao presidente no caso do decreto sobre porte de armas. Mais importante ainda, parlamentares de peso, a começar pelos presidentes da Câmara e do Senado, já se declararam comprometidos com a reforma da Previdência, com ou sem atuação do Executivo.


Contestado no Parlamento e no Judiciário, o presidente acabou forçado a editar um novo decreto sobre o assunto, para restringir, por exemplo, o acesso a certo tipo de fuzil. Um dia antes, as ações da Taurus haviam disparado na bolsa paulista, depois de anunciada pela empresa uma fila de 2 mil pessoas interessadas na compra daquela arma. Entre outras mudanças, o segundo decreto reduziu as facilidades para crianças ingressarem nas escolas de tiro e iniciarem a vida no mundo do bangue-bangue, tão valorizado entre muitos bolsonaristas.

Mais um recuo foi incluído, portanto, na lista bolsonariana. O presidente já havia recuado, por exemplo, da tentativa de controlar o preço do diesel. Não parece ter abandonado totalmente a ideia, mas foi forçado a amaciar sua atitude depois de uma desastrada pressão sobre a diretoria da Petrobrás. Recuou também da decisão de impor seus critérios, formalmente, à publicidade das estatais. A bobagem estava claramente encaminhada, na área de Comunicação, quando o secretário de Governo, general Santos Cruz, chamou a atenção para a Lei das Estatais. Não pode o Executivo, segundo essa lei, meter-se em decisões administrativas como a publicidade estritamente mercadológica.

No começo do mandato o presidente já havia abandonado, ou pelo menos adiado, o plano de mudar para Jerusalém a embaixada em Israel. Advertido para o custo de uma encrenca com países muçulmanos, grandes importadores de alimentos produzidos no Brasil, reviu sua ideia e substituiu a mudança da embaixada pela instalação de um escritório comercial. Mais que uma decisão econômica, esse remendo foi uma tentativa de mostrar-se fiel ao compromisso de seguir, algum dia, seu líder Donald Trump e ao mesmo tempo contentar os apoiadores evangélicos. Nenhum desses motivos tem relação com os interesses políticos e econômicos de uma diplomacia de respeito.

O Executivo brasileiro recuou também do anunciado abandono do Acordo de Paris sobre o clima. Deu mais um passo atrás ao confirmar, depois de havê-la negado, a realização, em Salvador, de uma conferência regional preparatória para uma grande reunião sobre a questão climática em Santiago do Chile. Alguém próximo do presidente deve ter-lhe apontado os enormes custos diplomáticos e comerciais de suas bravatas anticonservacionistas. Os custos internos do empobrecimento ambiental deveriam ser suficientes, mas a esses o presidente e vários de seus auxiliares parecem absolutamente insensíveis.

Enquanto o presidente passava mais uma semana tropeçando, perdendo tempo e sendo forçado a recuar mais de uma vez, o vice Hamilton Mourão participava de reuniões em Pequim, era recebido pelo presidente Xi Jinping e tentava anular os danos causados por seu chefe e pelo ministro das Relações Exteriores na relação com a China, maior cliente das exportações brasileiras.

Além de ser grande compradora, a China tem um importante programa internacional de investimentos em infraestrutura. É preciso, sim, avaliar a conveniência de cada projeto, mas isso é função normal de um governo tecnicamente preparado, competente na ação diplomática e levado a sério pelas autoridades estrangeiras.

Sem essas qualidades, nenhuma passeata de apoio será suficiente para fortalecer um presidente e sua equipe. A ruindade será do governo. Não adianta culpar a democracia.

Pensamento do Dia


Fumaça, ruído e desertos

O que faz um governo eleito governar? A resposta canônica é conhecida, mas nem sempre é praticada. Consta de três pontas. Em primeiro lugar, apoio social, expresso na manifestação eleitoral dos cidadãos, mas reproduzido ao longo da gestão. Votos que elegem nem sempre são os votos que sustentam os atos governamentais ou coonestam as atitudes do governante. São colhidos em muitos cestos e orientados por variadas escolhas, até a de impedir a vitória de alguém. Precisam ser organizados enquanto se governa. É a batalha da legitimidade. A tentação de permanecer em campanha após a eleição demonstra o medo do eleito de perder os apoios manifestados nas urnas, muito mais do que a pretensão de conquistar novos. Sem novas adesões, porém, restringem-se suas condições de futuro.

Em segundo lugar, uma boa equipe de governo, um bom Ministério, com adequada estrutura de pessoal, técnica e gerencial, sem o que o governo não terá como formular propostas, levá-las à execução, controlá-las, avaliar o que consegue realizar. Em sociedades complexas, com Estados avantajados e repletos de atribuições, a equipe de governo responde por boa parte do sucesso. Ministros pouco qualificados, estranhos às suas pastas, guindados ao primeiro plano com pretensões eleitorais ou em busca de prestígio são tão perniciosos quanto ministros que se prestam a funcionar como meras extensões do chefe (e de seu partido, se for o caso) ou como lobistas de segmentos da sociedade.


Em terceiro lugar, capacidade de articulação política e disposição para construir consensos parlamentares, algo decisivo em qualquer situação. Num regime presidencial como o brasileiro, por exemplo, por suas características, isso implica manter uma agenda aberta à interação com dezenas de partidos e grupos de parlamentares, dialogar com governadores e corporações, movimentar-se para ouvir demandas, auscultar os humores políticos, conceder entrevistas. É o trabalho principal do chefe, que só em pequena dose pode ser delegado a auxiliares, posto que a parte nobre, mais pesada, dependerá sempre da palavra final e da modelagem do vértice superior.

Essas três pontas sofrem o efeito do que se poderia chamar de “carisma” do chefe do governo. Quanto mais brilho próprio e trajetória heroica tiver um presidente, por exemplo, mais facilidade terá de municiar a articulação política ou converter apoios eleitorais em apoio político. Sua capacidade de comunicação e sua clareza de visão estratégica são fundamentais para dar coesão e rumo à equipe de governo. Presidentes ou chefes sem dotes políticos costumam infernizar a vida dos assessores e contribuem demais para o desgaste da imagem governamental.

Considerando a situação brasileira, pode-se dizer que o governo Bolsonaro conta somente com a primeira dessas pontas. E mesmo aí não de forma perfeita, tanto que “continua em campanha”, sem conseguir ampliar sua base social e conquistar novas adesões. Seus índices de popularidade não estão subindo, mas declinando, e o governo, para tentar sair do isolamento, chega mesmo a impulsionar uma mobilização de rua para manifestar apoio social, o que pode piorar ainda mais a situação.

Sua promessa inicial era compor uma equipe avessa ao intercâmbio parlamentar e integrada por técnicos qualificados. O Ministério formado, porém, não corresponde a isso. Flutua ao sabor de jatos de personalismo, de fanatismo hidrófobo, de subserviência à camisa de força ideológica e nefasta de provocadores estranhos à vida nacional. Alguns ministros funcionam, mas a maioria vive a bater cabeça e a tartamudear. Os filhos do presidente intrometem-se em tudo, distribuindo cotoveladas em ministros, aliados e parlamentares. A ideologia, processada em dimensão obscurantista e paranoica, intoxica o discurso do Executivo, atritando os demais Poderes e abrindo fendas profundas no que deveria ser a coesão governamental. Como consequência, impossibilita a ampliação dos apoios, a negociação das propostas no Congresso, a criação de um clima “positivo” que abra espaço para a atuação “construtiva” do governo.

Ainda que haja indícios de que falte inteligência política ao governo, não se trata de um governo irracional. Há nele uma dose de cálculo, um estilo de atuação, uma opção por certas armas de combate no lugar de outras. É um governo que faz escolhas, sendo a principal delas a da hostilidade como procedimento, método com o qual cria crises e inimigos para justificar sua falta de ação e, ao mesmo tempo, agregar sua base mais fanatizada. A “velha política” e a oposição de esquerda seriam, para ele, a expressão de um sistema que não permitiria governar.

A hostilidade como procedimento tem mantido o governo em campanha, mas não o faz governar. Cria fumaça e ruído, produz problemas sucessivos e nenhuma solução, destrói sem construir, como se seu programa fosse mais negativo do que positivo. Vai assim demolindo pontes, envenenando áreas, erodindo a sociabilidade, criando desertos por onde passa. Oferece em troca tão somente a promessa redentora do “mito”, a cavalo de um Deus confuso e vingativo.

O resultado é que o componente propriamente bolsonarista do governo continua do mesmo tamanho, se não menor. Permanece heterogêneo e sem coesão, sem estrutura organizacional, dependente de bots e ativistas digitais, falando consigo próprio. Mantém-se, na verdade, como uma seita, que tem seus ritos e símbolos, seus devotos, sua máquina de descobrir traidores e inimigos a cada dia.

No caso brasileiro, o horror e o espanto crescem na opinião pública. O governo desfila sua indigência e nada entrega, a crise econômica se aprofunda, a ético-política se prolonga. O presidente não percebe que sua atuação corrói a República ao esvaziar o principal mecanismo que a dignifica, a atividade política. Ou estaria ele querendo precisamente isso?

Cala-te, boca!

O governo é refém de si mesmo. Ele saiu fortalecido do processo eleitoral, poderia aprovar tudo muito rapidamente, mas não aprova por causa das caneladas entre si 
Kim Kataguiri (DEM-SP)

Não vou à manifestação pró-Bolsonaro, porque o presidente não merece nosso apoio

Não vou a esta passeata ou sair de casa para apoiar o governo de Bolsonaro, mas não, mesmo. E de forma alguma condeno quem for, longe disso, pois respeito a decisão de cada pessoa – assim, se você entender que deve comparecer, que atenda à sua vontade.

Deixarei de me juntar aos apoiadores do atual governo porque a essência desta manifestação é o protesto contra o Supremo e o Congresso, que merecem as críticas, porém o movimento não é do povo, para o povo e pelo povo, que continuará de fora das decisões palacianas, mesmo sendo solidário ao Executivo.

Fosse a reação dessas pessoas em favor do pobre, do miserável, do necessitado, por uma outra educação e de nível, como protesto pela saúde pública deteriorada … confesso que eu iria, e de bandeira em punho.


Porém esta manifestação, exclusivamente para auxiliar Bolsonaro a mostrar que ainda tem a confiança do povo, estou fora. Na verdade, quem deveria fazer uma passeata imensa, com extrema sinceridade e verdade, são os Três Poderes, implorando para que o cidadão brasileiro volte a confiar nas autoridades constituídas!

Apoiar um dos poderes, o mais incompetente, sem criatividade, que apenas aumenta impostos ou inventa novos, foge completamente às minhas intenções de solidariedade aos que hoje ainda não se alimentaram, e não sabem se vão conseguir algum resto de comida!

Eu sairia às ruas berrando pelo nome de Bolsonaro, se ele tivesse apresentado medidas imediatamente à sua posse, no sentido de incentivar o emprego, se tivesse criado frentes de trabalho, se abrisse o Brasil para licitações à construção de ferrovias, rodovias, pontes, elevados, viadutos, túneis, escolas, hospitais … até mesmo pedisse ao inútil e corrupto Congresso que liberasse a instalação de cassinos, meio excelente de empregar centenas de pessoas diretamente e milhares indiretamente!

A ideia do presidente era uma só, e continua, uma espécie de obsessão: a reforma da Previdência!

Se dizem que não vai prejudicar o pobre, mentem desbragadamente, incluindo alguns comentaristas que tentam negar a realidade, pois se alguém me provar que o pobre não terá de trabalhar bem mais para ter a sua aposentadoria completa, logo, mais tempo para ter o que é seu, que antes poderia ser quando completasse 35 anos de semiescravidão, o engodo, enganar o povo é a intenção!

A tal reforma poderia ser feita após a metade do tempo governamental, quando o emprego tivesse reagido, a economia mais forte, uma auditoria da Previdência, a caça aos sonegadores, outra auditoria sobre a dívida pública, incluindo reformas fiscais, políticas, educacionais…

Nada disso Bolsonaro levou adiante.

Logo, o meu apoio ao seu governo, Bolsonaro não o terá. Não que eu seja contrário à passeata, às manifestações populares, claro que não.

Eu apenas gostaria que o povo que sairá às ruas hoje se lembrasse dos que não têm voz, representatividade, solidariedade e respeito de nossos governantes. Além disso, os mais carentes são sistematicamente esquecidos pelas faixas mais privilegiadas da população. É como se eles não existissem.

Parlamentarismo cinzento

Toda vez que o presidencialismo à brasileira passa por alguma crise – e bota crise nisso – aparece alguém falando em parlamentarismo. A mudança no sistema de governo já o remédio altamente ineficaz para driblar a posse de João Goulart em 1961, quase entrou na Constituição de 1988 e foi cabalmente rejeitada pelo voto popular em dois plebiscitos, o último deles em 1993. Volta e meia, porém a ideia reaparece. O modelito da estação é o “parlamentarismo branco”.

O parlamentarismo da moda não vem, como de outras vezes, sob a forma de uma proposta de emenda constitucional destinada a mudar o papel institucional e as relações entre os poderes, dando ao Congresso, oficialmente, as funções de governo. Trata-se, agora, de um arranjo informal, até reforçado por medidas que fortalecem as prerrogativas do Legislativo – como o orçamento impositivo, por exemplo mas que não mudaria substancialmente as regras da Carta presidencialista.

Nesse momento, todo mundo que fala em “parlamentarismo branco” refere-se à disposição do Congresso de preencher o vazio político deixado por um presidente frágil, despreparado e com perda acelerada de apoio na própria sociedade. A fórmula parlamentarista de hoje seria uma maneira de passar Jair Bolsonaro, uma aliança entre as forças majoritárias do Congresso e o establishment econômico do país, com o apoio de setores do governo, como a equipe econômica, para controlar a pauta do país.

A provável aprovação de uma reforma previdenciária pelo Legislativo – independentemente do Executivo seria o primeiro e bem sucedido ato desse modelo de governo congressual a ser mostrado ao país. Abriria caminho a outras agendas, como a da reforma tributária e medidas articuladas com a equipe de Paulo Guedes. E a vida seguiria até as eleições de 2022.

Tudo muito bom, tudo muito bem, mas será que isso dá certo? Pouco provável. Ainda que a equação de nosso presidencialismo contraponha sempre um Executivo fraco a um Congresso forte – e vice-versa, há limites claros para esse tipo de corta-e-cola institucional.

Por mais que o Legislativo comece a aprovar medidas esvaziando os poderes do presidente da República, limitando suas prerrogativas em relação ao orçamento e restringindo sua capacidade de editar medidas provisórias, por exemplo, há todo um arcabouço constitucional a reforçar seus poderes como chefe do Executivo e detentor maior dos mecanismos legais para governar. O que torna insustentável a condução de qualquer governo em outras bases sem reforma profunda na Carta.

É o presidente quem tem a caneta e nomeia dos ministros do STF ao procurador geral da República, passando pelos cargos da administração direta, indireta e estatais. É o presidente que edita decretos, medidas provisórias e tem competência privativa para encaminhar ao Congresso propostas sobre determinados assuntos. É o presidente o comandante em chefe das Forças Armadas.

Toda essa conversa de “parlamentarismo branco”, portanto, parece destinar-se a entreter os ingênuos. Ou bem – ainda que contra as expectativas - Executivo e Legislativo se acertam em torno de regras mínimas de convivência, ou em breve, logo após a votação da Previdência, assistiremos a um novo capítulo da saga dos últimos 30 anos, que já engoliu dois presidentes da República via impeachment.

É possível, e talvez seja até desejável, implantar o parlamentarismo no país. Mas por caminhos claros, constitucionais, submetidos a novo e obrigatório plebiscito, para vigorar para mandatos futuros. Sem nódoas.