segunda-feira, 24 de maio de 2021
Bolsonaro, porcos e sardinhas
Em qualquer lugar do mundo, político adora uma obra pública. Seja no lançamento da pedra fundamental ou no descerramento da placa de inauguração, não podem faltar o discurso das autoridades, a banda de música, a entrevista para a rádio local, as fotos para as redes sociais e aquele “banho de povo” que pode render muitos votos nas próximas eleições.
Enquanto educação, saúde e segurança são políticas públicas difíceis de serem atribuídas a um político em particular - pois resultam da cooperação entre União, Estados e municípios e apresentam resultados apenas no médio e longo prazos -, obras são entregas concretas que levam a marca de quem conseguiu os recursos em Brasília e viabilizou a construção da ponte ou do açude, o asfaltamento da estrada ou o embelezamento da praça da Matriz.
Houve uma época, nos Estados Unidos, em que ter uma despensa cheia de carne de porco era sinal de fartura e boa situação financeira. Daí vem a expressão “pork barrel”, usada na ciência política para designar a prática em que políticos tentam garantir recursos para agradar suas bases eleitorais. Assim, na discussão do Orçamento cada parlamentar tenta “puxar a brasa para a sua sardinha” - outra expressão alimentícia que talvez faça mais sentido em português do que o “pork barrel” dos americanos.
No Brasil, graças ao desenho da Constituição de 1988, esse jogo se dá em três etapas: 1) o Poder Executivo elabora a proposta de orçamento anual; 2) o Congresso Nacional a analisa, podendo modificá-la por meio de emendas e 3) a bola retorna ao Executivo, que executa o que foi aprovado, de acordo com a disponibilidade de dinheiro.
Dadas as características de nosso processo orçamentário, a pesquisa sobre o presidencialismo de coalizão brasileiro sempre atribuiu papel central a essa dimensão. Como é o presidente da República quem, em última instância, tem a chave do cofre, decidindo como vai aplicar os escassos recursos arrecadados, isso vira uma moeda de troca valiosa nas negociações com deputados e senadores. Atire a primeira pedra o presidente que nunca liberou dinheiro para a execução de emendas parlamentares nas vésperas de votações importantes no Congresso.
A prática do “é dando que se recebe” tem origem em tempos imemoriais - e vale aqui a indicação do clássico “Coronelismo, Enxada e Voto”, de Victor Nunes Leal (1948). A ditadura militar ressuscitou o Ministério do Interior, ao qual ficavam vinculadas todas as autarquias e estatais criadas para atuar em âmbito local, como a superintendências de desenvolvimento (Sudene, Sudam, Sudeco), o Departamento Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs), a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), os bancos da Amazônia (Basa) e do Nordeste (BNB) e o Banco Nacional da Habitação (BNH), entre outros.
Já na Nova República, o balcão foi rebatizado como Ministério da Integração Regional por Itamar Franco, que o entregou ao então senador maranhense Alexandre Costa, do antigo PFL (atual DEM). Nos governos seguintes, os nomes mudaram - Integração Nacional, Desenvolvimento Regional - e houve desmembramento e depois reincorporação no Ministério das Cidades. Mas a lógica permaneceu a mesma: o governo concede a pasta a algum partido ou cacique regional, que decide onde alocar o orçamento para obras de infraestrutura, geralmente com fins eleitoreiros ou de barganha legislativa. E dá resultado.
O cientista político Fernando Meireles defendeu em 2019 uma tese de doutorado intitulada “A Política Distributiva da Coalizão”, da qual recebeu, com justiça, menção honrosa no Prêmio Capes. Utilizando técnicas econométricas modernas, Meireles demonstra relações de causalidade que comprovam que: 1) prefeitos de mesmo partido dos ministros recebem mais dinheiro público, especialmente em anos de eleição; 2) ministros tendem a favorecer municípios de seus Estados; e, fechando o ciclo, 3) localidades contempladas pelas políticas distributivas tendem a entregar mais votos para seu partido nas eleições seguintes para a Câmara dos Deputados.
Como Meireles alerta em sua tese, ao distribuir recursos orçamentários de forma estratégica, buscando conquistar votos ou apoio no Congresso, o governo acaba criando distorções. Sem dados ou evidências, aplica o dinheiro público nos lugares que dão maior retorno político aos políticos que patrocinam as emendas, e não onde é realmente necessário. E abrem as portas para a corrupção - tema que não é objeto da pesquisa do pesquisador.
Nos tempos de vacas gordas, quando o país crescia após o Real ou pelo “boom” das commodities, FHC e Lula construíram um arranjo político e econômico que gerava um superávit primário de 3% do PIB ao ano e ainda sobrava recursos para os partidos de sua base aplicarem nos seus redutos eleitorais. Com a crise a partir de 2015, a fonte secou e os parlamentares trataram de garantir sardinha para a sua brasa colocando na Constituição a execução obrigatória de parte de suas emendas individuais ou coletivas.
Com Bolsonaro, inaugura-se uma nova etapa do “pork barrel” brasileiro. Da boca pra fora, o presidente se gaba de não ter incluído seus ministérios no toma-lá-dá-cá com o Centrão. Entre quatro paredes, porém, Rogério Marinho e Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil) criaram o orçamento secreto das emendas de relator (RP9), distribuindo bilhões a quem se dispõe a apoiá-lo, sem transparência ou controle, facilitando a corrupção.
Tudo muda, para continuar igual.
Quem quer dinheiro?
Nós jogamos na defesa nos primeiros três anos, controlando despesas. Agora vem a eleição? Nós vamos para o ataque. Vai ter Bolsa Família melhorado, BIP [Bônus de Inclusão Produtiva], o BIQ [Bônus de Incentivo à Qualificação], vai ter uma porção de coisa boa para vocês baterem palma. Tudo certinho, feito com seriedade, sem furar teto, sem confusãoPaulo Guedes
Ninguém governa: esta é a verdade dita por Pazuello
Governo existe formalmente, assim como formalmente há um presidente da República. O candidato Jair Bolsonaro foi eleito para o cargo, tomou posse legalmente e ocupa o gabinete principal do Palácio do Planalto. Mas – e isto o diferencia de outros ocupantes do posto – nunca assumiu seriamente as funções e responsabilidades da Presidência. Aparentemente, jamais entendeu as suas atribuições.
Além de manter os interesses pessoais e familiares no topo das prioridades, sempre confundiu presidir com mandar, ordenar, impor sua vontade. Mandou e desmandou no Banco do Brasil, interferindo até em sua propaganda, e na Petrobrás, dando palpite na formação de preços e demitindo seu presidente para agradar a caminhoneiros. Não há como pensar no desastre humanitário da pandemia sem lembrar, de novo, o uso desastroso do verbo mandar. A cena, gravada em vídeo, foi revista nos últimos dias.
“Já mandei cancelar”, disse Bolsonaro em 21 de outubro do ano passado, referindo-se a um documento de intenção de compra da vacina Coronavac pelo Ministério da Saúde. “O presidente sou eu. Não abro mão da minha autoridade”, acrescentou.
O ex-ministro Pazuello afirmou várias vezes, no depoimento, nunca haver recebido ordem do presidente da República. Ou sua memória é péssima, ou ele mentiu, ou desconhece o sentido do verbo mandar. Ou, enfim, estaria acusando o presidente de mentir naquela declaração pública, registrada pelos meios de comunicação e transmitida para todo o País? Esta última hipótese é improvável. O obediente Pazuello dificilmente atribuiria a seu chefe uma ação de valor duvidoso.
Os fatos acessíveis ao senso comum são conhecidos. O presidente mandou, ele obedeceu e o protocolo de intenções foi cancelado. A Coronavac, chamada de “vachina” pelo chefe de Pazuello, permaneceu amaldiçoada por Bolsonaro e seu séquito ainda por muito tempo, até se tornar, por necessidade, o primeiro e principal imunizante usado no País contra o coronavírus. Mas Bolsonaro nunca se rendeu inteiramente a esses fatos nem se tornou defensor de orientações baseadas no melhor conhecimento disponível.
No mundo bolsonariano, onde a cloroquina é remédio contra a covid, onde as frases gravadas nunca foram ditas e as ordens anunciadas nunca foram transmitidas, a noção de governo continua estranha ao presidente da República. Até as ações anticrise, deflagradas como reação ao primeiro impacto da pandemia, foram efêmeras.
Se houve algo parecido com ação governamental, naquele momento, a impressão logo se esfumou. Num país sem orçamento durante mais de três meses, com auxílio emergencial suspenso e sem sinalização de rumo econômico, qualquer reação da economia, no primeiro trimestre, deve ser atribuída, em primeiro lugar, ao impulso de sobrevivência de trabalhadores e de empresas. A política monetária ainda frouxa deve ter ajudado. Apesar da inflação já preocupante, o Banco Central (BC) preferiu o caminho da “normalização parcial” dos juros básicos.
A ação do BC foi excepcional na paisagem brasiliense. No Executivo, a equipe econômica permaneceu perdida durante a maior parte dos primeiros cinco meses, enquanto o presidente atendia às demandas do Centrão e os ministros “políticos” cobravam gastos. Nessa bagunça, criou-se, como denunciou o Estadão, um orçamento paralelo, destinado à liberação de recursos para os parlamentares de boa vontade. Apesar das dificuldades econômicas e das limitações fiscais, o presidente manteve seu jogo eleitoreiro, alheio à função de governar.
Desde o começo do mandato, ficou clara a incompatibilidade de Bolsonaro com as atribuições presidenciais. O País ainda se recuperava, lentamente, da recessão de 2015-2016, mas o novo presidente cuidou prioritariamente de facilitar o acesso à posse e ao porte de armas. O primeiro ano de mandato encerrou-se com desempenho econômico inferior ao de 2018, mas ninguém, no Executivo, pareceu muito incomodado com isso. Os meses finais de 2019 e os primeiros de 2020, antes da covid-19, foram economicamente desastrosos. Com a pandemia, alguma ação seria inevitável, mas a reação seria efêmera. Nada parecido com um governo duraria muito tempo, sob o comando de Bolsonaro. Qualquer dúvida sobre isso deve ter sido eliminada pelo depoimento de Pazuello, fidelíssimo pelo menos a esse fato.
Está comprovada a ação de (outra) quadrilha no governo e no círculo de Bolsonaro
A função subsequente da CPI não contará com a contribuição da corja proveniente do governo. Dependerá de como e quanto o relator Renan Calheiros (MDB-AL), até aqui com desempenho competente, e o preciso presidente Omar Aziz (PSD-AM) conduzam a formação das conclusões submetidas à comissão. De conhecimento público antes mesmo da CPI, os fatos em questão não suscitam dúvida, mas a altivez e a coragem política para relacioná-los com o Código Penal e gravíssimas consequências será de ordem pessoal.
O problema não acaba aí. Renan Calheiros faz supor a disposição de uma atitude à altura do episódio, com um relatório rigoroso. Mas aprová-lo, alterá-lo ou recusá-lo caberá ao corpo da comissão. E, em qualquer dos casos, essa etapa será de luta sem freio e sem compostura, a exigir muito de Omar Aziz. Posta tal perspectiva, pode-se ouvir que Bolsonaro, à vista de derrota na comissão de maioria opositora, tentaria algo para impedir a CPI de consumá-la. Algo?
Será, então, a hora do inestimável Ministério Público. Para dividi-lo mais, não falta muito à percepção de ações e omissões do governo articuladas no gênero próprio de quadrilha. Amazonense e conhecedor indignado do que se passou na crise do oxigênio em Manaus, o senador Omar Aziz está convicto de que o povo ali foi “feito de cobaia”, para indução da cloroquina, como para a imunização coletiva pelo vírus mesmo.
Em paralelo ao que houve, e não terminou, na Saúde e morte de quase 450 mil pessoas, está comprovada a ação de (outra) quadrilha no governo e no círculo de Bolsonaro. Da derrubada à entrega da madeira amazônica no exterior ou aqui mesmo, o número de operações combinadas é bem grande. Todas criminosas. Não pode ser coisa de poucos e amadores. A maior apreensão de madeira ilegal, que custou ao delegado Alexandre Saraiva sua transferência na Polícia Federal, e a denúncia americana de madeira contrabandeada e apreendida nos Estados Unidos puseram, enfim, algemas por ora morais nos pulsos do ministro (sic) Ricardo Salles.
Já na campanha Bolsonaro anunciava a desmontagem do Ibama, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (acompanhamento ambiental por satélite), Funai, das reservas indígenas e de toda a defesa ambiental. O já precário sistema de fiscalização florestal foi, de fato, destruído na Amazônia e no Pantanal. Por Salles e seus prepostos. Por ordem de Bolsonaro.
A proibição, sem sequer hipótese de justificativa, de destruição do maquinário de garimpo ilegal e de tratores e serrarias do desmatamento clandestino foi óbvia proteção de Bolsonaro aos criminosos e seu enriquecimento compartilhado. A dispensa ilegal, mas acobertada, de licenciamento para exploração da terra amazônica é objeto de iniciativa do governo para legalizá-lo. E por aí segue a sequência de ações contra a riqueza do solo e do povo amazonense.
Ou a ação de cima e a operação direta são coordenadas, ou a madeira, o ouro e minerais valiosos nem sairiam do chão, quanto mais chegar a portos dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia. E essa coordenação numerosa, profissional, de cima a baixo, tem nome no Código Penal: quadrilha. No caso, como disseram os americanos, quadrilha internacional.
Nada surpreendente. Relações várias, próximas e financeiras com milícias. Apropriação de dinheiro público por extorsão dos vencimentos de funcionários reais e fantasmas. Controle da Abin e da Polícia Federal com direções subservientes. Entrega do Meio Ambiente a um condenado por improbidade quando secretário do Meio Ambiente de Geraldo Alckmin. O desmantelamento anunciado e realizado. Ah, sim, e milhares de militares da ativa e da reserva do Exército compondo um exército de guarda-costas políticos e judiciais, em proteção ao grande assalto. O que poderia sair desse conjunto não é mais nem menos do que saiu.
Coisas de internet
O presidente Bolsonaro, ao que tudo indica, conseguiu convencer os militares de que a política vive de aparências e de promessas vãs, que não precisam ser cumpridas. Seria uma espécie de prestidigitação para enganar o cidadão eleitor. Militar que saiu dos quartéis diretamente para a arena política defendendo seus companheiros em reivindicações salariais e corporativas que os fardados não podem fazer, Bolsonaro ficou quase 30 anos praticando a baixa política, que deu a ele e aos filhos uma vida confortável através de artifícios como a “rachadinha” dos salários dos funcionários dos seus gabinetes, e a manipulação de outras verbas de representação, fundos partidários e eleitorais.
Pequenos assassinatos morais cotidianos, que não são exclusivos dos Bolsonaros mas, levados ao centro de decisão do país, distorcem permanentemente a prática política. Deve-se a essa distorção moral o grave fato de o General de Divisão da ativa Eduardo Pazuello ter a audácia de dizer, em uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que a frase emblemática que proferiu - “A questão é simples, um manda, e o outro obedece”- era “coisa da internet”, apenas para impressionar o público das redes sociais, que estava cobrando de Bolsonaro uma posição depois que ele, como ministro da Saúde, havia anunciado a compra da vacina Coronavac, “a vacina chinesa do Dória”.
Essa encenação revelada candidamente por Pazuello demonstra a que ponto Bolsonaro conseguiu condicionar os militares que o rodeiam e apoiam para assumirem situações de envergonhar uma pessoa de bem. É sabido que Bolsonaro, eleito por 57,7 milhões de votos no segundo turno, sempre disse a seus assessores que quem entende de política é ele, cortando-lhes qualquer possibilidade de argumentação contrária.
Essa crença foi fazendo com que os militares que o cercam fossem perdendo a condição de aconselha-lo, como parecia ser o papel que exerceriam no governo Bolsonaro. Mas, acreditar nessa expertise política a ponto de se submeter a situações vexaminosas, vai uma grande diferença.
O General Braga Neto, que já exerceu a chefia do Gabinete Civil, continua, na visão de muitos militares, fazendo política no ministério da Defesa, embora ele mesmo tenha garantido que as Forças Armadas jamais aceitariam politizar os quartéis. O General Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), ficou marcado durante a campanha eleitoral por uma declaração forte contra o Centrão, agrupamento político de centro-direita.
“Se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão”, sucesso dos “Originais do Samba”, onde pontuava o grande Mussun, cantou, surpreendentemente, o circunspecto general, para mostrar sua rejeição ao Centrão. Era o tempo em que a candidatura de Bolsonaro representava, vê-se agora que não no sentido de “simbolizar”, mas no de “encenar”, a tolerância zero com a corrupção, se contrapondo às gestões petistas marcadas pelos mensalões e petrolões da vida recente do país.
O que esperar de um austero General quando o presidente Bolsonaro se aproximou do Centrão, fechando uma parceria política no Congresso para se proteger de um impeachment? Ainda mais depois que o ex-ministro Sérgio Moro fora pressionado a sair do governo pelo empenho do presidente em “controlar” os órgãos de controle para proteger seus filhos de acusações de corrupção?
Deveria pedir o boné metafórico e ir para casa, não? Pois não apenas ficou no cargo como, dias atrás, deu uma explicação inacreditável: “Mudei de opinião. Vi que o Centrão faz parte do show político”. É uma confissão de capitulação, a mesma que o General da ativa Eduardo Pazuello fez ao afirmar que o que o presidente diz nas redes sociais, não se escreve. Serve apenas para distrair seus milhares de seguidores, base ativista de sua força política. Ou que a aliança com o Centrão, que antes via como um antro de ladrões, agora é aceita como parte necessária da luta político-partidária.
Longe vão os dias em que essa turma prometia chegar ao poder central para mudar essa prática. Mas eram apenas promessas para enganar os otários dos eleitores, coisas de internet.
Merval Pereira