domingo, 30 de novembro de 2014
Segundo mandato
Sem qualquer formalidade, com uma ostensiva aparência de rotina, o Palácio do Planalto apresentou a troika responsável pelo comando da nossa economia
Quase envergonhado, afinal inaugurou-se o propalado processo
de mudança. Faltou-lhe um ingrediente indispensável, tão indispensável que sua
ausência pareceu a alguns como comprometedora. Sem qualquer formalidade, rito
ou liturgia, com uma ostensiva aparência de rotina o Palácio do Planalto
apresentou a troika responsável não apenas pelo comando da nossa economia mas
pela alteração do seu modelo.
Dilma Rousseff não presidiu a primeira solenidade do seu
segundo mandato simplesmente porque o primeiro ainda está em curso. Para evitar
constrangimentos encurtou um final melancólico e dispensou as fanfarras que
abriria sua segunda presidência com a ostensiva sem-cerimônia conduzida pelo
competente jornalista Thomas Traumann, ministro-chefe da Secretaria de
Comunicação da Presidência da República, que apresentou os nomes de Joaquim
Levy, Nelson Barbosa e Alexandre Tombini respectivamente Ministro da Fazenda,
do Planejamento e Presidente do Banco Central. Em seguida, entregou-os ao
escrutínio da imprensa.
Na aparência descuidado, o formato foi cuidadosamente
preparado para disfarçar a drástica guinada e o seu subproduto mais
inconfortável – o reconhecimento de que uma das mais substantivas promessas
eleitorais está esquecida. Haverá controle de gastos, apertos, enxugamentos,
haverá intervenções ortodoxas no laissez-faire vigente, haverá responsabilidade
fiscal e controle da inflação.
O ministro Gilberto de Carvalho que em breve deixará a
Secretaria Geral da Presidência, com a sua proverbial espontaneidade ofereceu
uma versão extremamente criativa para justificar a escolha do novo ministro da
Fazenda: Levy aderiu à política do PT. Não explicou qual o PT a que se referia.
Na verdade, deu-se exatamente o contrário: o governo afinal reconheceu que a
errática política econômica era equivocada. Não por culpa do ministro Guido
Mantega (o mais longevo da pasta), mas por culpa dos que o obrigaram a esquecer
o que sabe e adotar um receituário de curtíssimo prazo, contraditório,
destinado a agradar marqueteiros e produzir resultados eleitorais.
Piratas e corsários
Não há dúvida de que a Petrobras já foi alvo de larápios em
governos anteriores, mas nenhum deles, além do próprio bolso, intentava
apossar-se da República.
Em tese, roubar um fusca ou um BMW enquadra o infrator no
mesmo dispositivo do Código Penal. Roubo é roubo, não importa a quantia. Do
ponto de vista moral, não há dúvida. Mas, como indica a lei processual, há
agravantes e atenuantes em qualquer espécie de delito: o que o move, a
premeditação, os meios etc.
No caso específico das denúncias em curso na Petrobrás e
adjacências – Eletrobrás e PAC, por exemplo -, o que se conhece e o que se
vislumbra até aqui remetem ao quesito agravante. Não se trata de mero roubo,
que se pratica para enriquecimento próprio.
Os sinais de que se estabeleceu uma operação sistêmica, com
o objetivo de financiar partidos políticos – e, nesses termos, um projeto de
poder –, vai muito além do que seria mais um caso de corrupção. Agride o
próprio sistema democrático e a República.
E um crime contra a República, convenhamos, é bem mais grave
que roubar um fusca ou mesmo um BMW – ou ambos. Nesse caso, o remédio é
simples: prende-se o ladrão, recupera-se o produto do roubo e ponto final. Tudo
começa e acaba numa delegacia de polícia. No caso, porém, do que ocorre na
Petrobras, não basta recuperar o que foi roubado e enquadrar os operadores.
É preciso desmontar a engrenagem da qual eles eram apenas
peças e responsabilizar os que a moviam e beneficiavam-se de seus propósitos
políticos. Aí, o caso extrapola o âmbito das delegacias de polícia e
necessariamente ascende ao das instituições.
Não importa se a presidente da República e seu antecessor
embolsaram ou não algum centavo. Ainda que não – e lhes cabe o benefício da
dúvida -, são os contemplados políticos do produto do crime. Que sabiam do que
lá se passava só não crê quem não quer.
De surpresa em surpresa
Você se surpreendeu ao saber que houve corrupção numa estatal? E que envolveu funcionários pagos com seu dinheiro?
Nenhum se arrependeu. Nenhum sentiu vergonha. Desmentiram
Freud, para quem a vergonha, ao causar uma reação involuntária no corpo — o
rubor — mostra ser tão forte quanto o desejo sexual ou o asco, que não
conseguem controlar as reações físicas que despertam. Mas nossos “heróis” não
têm vergonha, não se arrependem, não reconhecem que fizeram nada errado. São
juízes de si mesmos e se absolvem.
Isso é surpreendente. Mas os escândalos em série não
chegaram a surpreender ninguém. Você se surpreendeu ao saber que houve
corrupção numa estatal? Ou ao saber que ela envolveu empreiteiros e
funcionários pagos com seu dinheiro? A ingenuidade brasileira não chega a
tanto. Aceitava essa existência como parte do aparelhamento. Algo inevitável,
que se varre para baixo do tapete ou se faz de conta que não há. Quando agora
se fala em corrupção espantosa, o espanto não é porque ela existiu. É com o
montante dos valores, o caráter sistemático, a alta hierarquia dos envolvidos,
a sua ligação direta com quadros partidários. E com a investigação equilibrada
que não entornou antes da hora, não fez estardalhaço prematuro antes das
eleições de modo a tumultuar o pleito, administrou bem as delações premiadas,
se escorou em informações confiáveis sobre o dinheiro, checou dados com o
exterior, talvez recupere parte do prejuízo. E parece caminhar por partes, um
passo de cada vez, só indo para a etapa seguinte quando já amarrou a anterior
com alguns nós bem apertados.
E os que mandam em tudo? Não têm mesmo culpa nenhuma? Nenhuma responsabilidade? Não sabiam de nada? Reconhecem que perderam a autoridade e foram enganados por subalternos que lhes davam relatórios fajutos enquanto praticavam malfeitos? Serão culpados apenas de incompetência e boa-fé? Ou sinceramente acreditavam que em nome de interesses mais altos para o país deviam fechar os olhos? Que interesses? Seu projeto de poder? A infalibilidade da causa e do projeto que defendem? Querem que o povo aceite que há um teto de corrupção inerente ao sistema e propõem uma espécie de franquia para isso? De quanto acham que seria palatável? Ou será que se envergonham?
Falta vontade
Anos atrás, perguntei ao embaixador do Brasil na Irlanda,
Stelio Amarante, por que aquele país tinha estradas tão ruins, apesar de uma
das melhores educações. Ele respondeu: “Por isso!” Fez pausa e continuou:
“Deixaram para investir nas estradas depois da educação.”
No Brasil, sempre que se propõe educação de qualidade, vem a
pergunta: “Onde encontrar o dinheiro necessário?” Para responder esta pergunta,
o relator de uma comissão do Senado, presidida pela senadora Ângela Portela,
concluiu seu trabalho, ainda não debatido pelos senadores, mostrando que o
Brasil dispõe de recursos necessários.
A primeira parte do relatório calcula que, para oferecer
educação com a máxima qualidade, da pré-escola ao fim do ensino médio, seria
necessário investir R$ 9.500 por aluno por ano. Com este valor seria possível atrair
e manter no magistério os professores com salário mensal de R$ 9.500;
reconstruir e equipar todas as escolas com as melhores edificações e tecnologia
da informação e comunicação, e funcionando em horário integral. Para os 52,3
milhões de alunos, estimados para 2034, o custo total seria de R$ 496 bilhões
anuais.
Assumindo uma taxa de crescimento do PIB de 2% ao ano — a
média, nos últimos 20 anos, foi de 3,1% —, em 2034 o Brasil precisará de 7,4%
do PIB. Valor menor do que os 10% determinados por força do segundo Plano
Nacional de Educação II. Ainda sobrariam 2,6% (R$ 174,2 bilhões) para os demais
setores da educação. Apenas 2,3% (R$ 154,1 bilhões) a mais do que os 5,1%
gastos atualmente.
Para identificar a origem destes recursos, foram apontadas
15 fontes. Quatro delas representam redução de gastos, por exemplo, com
renúncia fiscal para a venda de automóveis e a redução nos gastos sociais
graças à educação, de até R$ 360 bilhões por ano. Caso não haja vontade
política para sacrificar os beneficiados por estes gastos e renúncias fiscais,
o relatório apresenta sete outras fontes que permitiriam R$ 355 bilhões, por
meio da emissão de títulos públicos, uso de lucro das estatais, atuação do
BNDES, uso dos recursos provindos do aumento na produtividade graças à melhoria
na própria educação. Se estas fontes não forem aceitas, o estudo identificou R$
174 bilhões oriundos de quatro outras fontes que exigiriam aumento de impostos
— como se fosse uma CPMF para a educação e imposto sobre grandes fortunas. A
tudo isso se agregaria o valor esperado de R$ 35 bilhões dos royalties do
pré-sal. O total das 15 fontes e do pré-sal chegaria a R$ 924 bilhões por ano,
de acordo com o relatório ainda a ser votado pelos senadores da comissão, que
está disponível em http://bit.ly/1ycAkBA .
Portanto, para cobrir o custo adicional necessário a uma
educação ideal em todo o país, bastaria que fossem usados menos de 25% de cada
fonte.
A pergunta, portanto, não é mais: “O Brasil tem recursos
para fazer a educação que precisa?” Agora será: “O Brasil tem vontade de usar
os recursos disponíveis para oferecer educação de qualidade a todos os
brasileiros?”
Cristovam Buarque (Transcrito de Tribuna da Internet)
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