quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Pensamento do Dia

 


Da atrocidade do 7 de Outubro à abominação em Gaza

Mas porque é que eles não se entendem? Essa é a pergunta que por vezes se faz a partir do conforto e da distância. Nós, que dormimos descansados nas nossas camas. Nós, que temos casas que não foram destruídas pelas bombas. Nós, que não temos reféns na família. Perguntamo-nos, candidamente, porque não podem eles entender-se.

E nós? Será que nós entendemos? Basta ler as redes e os comentários, que têm sido um espetáculo de desumanização e polarização nos últimos anos. À distância segura de milhares de quilômetros insultamos, agredimos, ofendemos —e depois acreditamos ser moralmente superiores àqueles que, lá longe, não se entendem.

E no entanto a coerência não é difícil. Ela implica saber que uma violação de direitos é uma violação de direitos humanos, ponto. Que o assassinato em massa de civis inocentes é sempre condenável. Que a morte provocada de crianças, a quem nenhuma culpa por qualquer conflito pode ser atribuída, e que não escolheram de que lado nascer, nunca pode ser justificada.

Desse ponto de partida, o mundo —e em particular as potências ocidentais, com as suas responsabilidades históricas— poderia ter sabido ajudar a que a tragédia inominável que estamos vivendo não se tivesse produzido. Isolando e excluindo tanto quanto possível os irredentistas de parte a parte. Condenando os ataques do Hamas e precavendo-se logo de seguida para a desproporcionalidade da ofensiva de Israel sob a liderança do governo de Netanyahu. Reconhecendo o Estado da Palestina de forma a deixar claro que não aceitaria uma política de fatos consumados no terreno. Embargando as exportações de armas, suspendendo acordos comerciais, implementando sanções, processando em tribunais internacionais crimes contra a humanidade e de genocídio. E fazendo-o, tanto quanto possível, a uma só voz, para ser mais forte, audível e eficaz.

Especialmente a Europa teria de ter desempenhado um papel de árbitro honesto e imparcial. Falhou. E com isso perdeu credibilidade e enterrou a sua narrativa moral. Se há coisa que a Europa pode especializar-se em transmitir ao mundo é a narrativa da sua própria reconciliação depois de séculos de matanças recíprocas. Se foi possível aqui, pode ser possível entre Israel e Palestina. Mas para isso é preciso deixar claro que o destino tem de ser o da solução de dois Estados, da rejeição de toda a limpeza étnica ou genocídio.

Em vez disso houve cumplicidade e passividade. E dois anos ainda há reféns presos. E dezenas de milhares de palestinos mortos. Da atrocidade do 7 de outubro de 2023 à abominação do que se está a passar em Gaza, o mundo falhou o teste. Não soubemos conter os perpetradores, defender as vítimas e apontar o futuro.

Não teria sido impossível, nem sequer difícil, ter sido coerente. Mas não temos grande moral para lhe perguntar porque não se entendem eles.
Rui Tavares

O homem mais perigoso do mundo quer ganhar o Nobel da Paz…

No final de 2019, numa sala lotada do Comité Olímpico de Portugal, assisti àquela que foi uma das últimas intervenções públicas de Adriano Moreira. A abrir um dia de debates, organizado pelo saudoso José Manuel Constantino, sobre Migrações, Desporto e Religiões – um tema agora ainda mais atual –, o velho professor de Ciência Política e Relações Internacionais, então já com 97 anos, aproveitou todo o seu conhecimento e a sua intuição para traçar um retrato dos problemas e riscos que pairavam sobre o mundo. Fê-lo numa época em que ainda ninguém imaginava que, poucas semanas depois, um coronavírus desconhecido iria paralisar meio planeta, e que, após nos livrarmos da pandemia, entraríamos numa espécie de regresso a um passado que já pensávamos ultrapassado, com múltiplas guerras, intensa polarização política, declínio democrático, limitação das liberdades e um ambiente geral que parece só estar à espera de um fósforo incauto para fazer tudo explodir. Mas antes de isto começar a ser visível, já Adriano Moreira tinha então identificado o risco principal que se encontrava à espreita. E sintetizou-o numa frase: “A maior ameaça atual ao mundo é a incultura e a leviandade do Presidente dos EUA, Donald Trump.”

Cinco anos depois, de regresso à Casa Branca, Donald Trump tem feito tudo para demonstrar o acerto da convicção de Adriano Moreira. E, em simultâneo, lembrar a justeza de um ensinamento do antigo chanceler alemão Otto von Bismarck, a quem é atribuída a frase “uma simples leviandade pode desencadear um desastre”.

Desde janeiro, Donald Trump tem utilizado essa ameaça de “leviandade” como a sua principal arma política.


Sem outra racionalidade que não seja a de provocar a incerteza e fomentar o caos, o Presidente dos EUA usa todos os momentos para lembrar à maioria do resto do mundo (não todo…) que qualquer pormenor numa negociação de tarifas ou uma discordância de pontos de vista sobre um assunto, até porventura menor, pode ser o suficiente para fazer escalar a sua posição e endurecer o tom das suas ameaças. Ou seja: provocar o tal desastre. E fá-lo sempre escudado no imenso poder militar da maior e mais experimentada máquina de guerra do mundo. Como que a avisar que, em última opção, não hesitará um segundo em esmagar quem lhe mostrar a mais pequena oposição.

Donald Trump quer ganhar o Prémio Nobel da Paz, mas é atualmente o homem mais perigoso para a paz. Quando se vangloria, num discurso provocador na Assembleia Geral das Nações Unidas, de já ter acabado com sete conflitos nos primeiros oito meses deste seu segundo mandato, ele não está só a efabular e a deixar-se levar pelo seu exagero habitual. O que ele está a dizer, sem o nomear, é algo muito aterrador. É isto: “Não me contrariem, se não…”

A verdade é que são cada vez menos os que o contrariam. Prova disso é o facto de aqueles que, ainda há poucos anos, se riram ruidosamente com as diatribes de Trump nas Nações Unidas terem agora optado pelo silêncio, perante um ataque verbal quase sem precedentes às instituições globais, à ciência e a um conceito de Humanidade que tenha os direitos humanos no seu centro, e não o poder da força.

Donald Trump quer acabar com as Nações Unidas por uma única e exclusiva razão: porque quer ocupar esse espaço no centro do mundo, poder impor a sua decisão e não precisar de dialogar com mais ninguém. É essa a cartilha que está a exportar para os outros países.

Neste contexto, o mais grave nem sequer é o facto de os populistas de todo o mundo terem passado a copiar o estilo e os argumentos de Trump. Nada de diferente seria de esperar, a esse respeito. O pior de tudo é o grau de silêncio e de tolerância, nalguns momentos a roçar a submissão, com que tantos líderes de países democráticos passaram a encarar as ameaças e as diatribes emanadas de Washington, nomeadamente na Europa, que deveria ser o farol dos valores de democracia, da liberdade e da justiça social.

Por mais que deseje o Nobel da Paz, o que Donald Trump está a fazer é a tornar o mundo mais perigoso. Um mundo em que cresce a intolerância, se reprimem as liberdades e se controlam os negócios sempre para a defesa exclusiva dos interesses de quem detém o poder e a força. O que ele quer é exportar o caos e promover a ascensão de ditadores em cada país, com quem pode dialogar no mesmo comprimento de onda.

Assim, ao continuarem a mostrar-se submissos e resignados perante essa forma de estar de Trump, com medo de o enfurecer, os líderes europeus não só se tornam cada vez mais irrelevantes no plano internacional, como acabam por ser cúmplices da Administração dos EUA com os contínuos ataques à democracia e aos direitos humanos. E, com isto, ficam à mercê das consequências de uma qualquer leviandade.

'Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará'

Um artigo do John Burn-Murdoch, no Financial Times, de dia 27 de setembro, aborda um estudo do economista político Laurenz Guenther sobre a diferença de visões em questões de imigração e integração entre os políticos ditos mainstream – do centro-esquerda e do centro-direita – e o público em geral.

A pergunta-base é se se acha que os imigrantes devem adaptar-se aos costumes do país para onde vêm, mas a análise de Guenther vai muito mais além.

O cientista verifica que há um alinhamento muito razoável entre os políticos e o eleitorado nas questões económicas, de impostos ou intervenção do Estado, mas uma distância muito significativa em temas como imigração e justiça criminal.



Guenther conclui que foi através dessa falha entre eleitores e representantes que a extrema-direita populista se instalou.

Com a exceção da Dinamarca, a tal diferença de visão dos problemas da imigração e da integração entre os políticos, digamos, clássicos e o público varia pouco de país para país. Portugal, porém, destaca-se: nós somos um dos países em que essa falha é mais pronunciada.

Dando assim como boa a referida tese, está encontrada a razão do tão rápido crescimento da nossa extrema-direita e tudo leva a crer que não fique por aqui. Aliás, eram poucos os que desconheciam que sentimentos que o Chega agora exprime estavam presentes na nossa comunidade e que apenas precisavam de quem os corporizasse.

A tese dominante é simples e o autor do artigo do FT parece defendê-la: os políticos do centro-direita e do centro-esquerda têm de se aproximar das convicções dos eleitores nos temas da imigração e da integração.

Há, no entanto, algumas questões prévias que quem defende esta posição se esquece frequentemente de abordar: as convicções que as pessoas têm sobre imigração partem de factos? Como chegaram a elas?

Falo do meu país. Não há outra forma de o dizer: todo o discurso sobre imigração que a extrema-direita berra e que, pelos vistos, vai de encontro às convicções de uma grande franja da população é uma descabelada mentira.

Nunca houve uma política de portas escancaradas; os imigrantes vieram porque deles dependem em larguíssima medida o nosso crescimento económico, a Segurança Social e as contas públicas; o nosso país pararia se os imigrantes se fossem embora e o facto é que precisamos de mais; os imigrantes geram emprego e não tiram emprego, na verdade nunca tivemos tanta gente empregada e não há desemprego; não há qualquer acréscimo de crime, pelo contrário: a imigração económica vem para trabalhar; não há qualquer problema de integração, já que os imigrantes respeitam a nossa Constituição e as nossas leis; a crise de habitação que atravessamos resulta de péssimas políticas públicas e não da vinda de imigrantes, basta pensar que se a economia exige que pessoas trabalhem, seriam estas ou outras. Por fim, é também mentira que os imigrantes causem pressão para baixo nos salários; ao preencher empregos que não seriam ocupados de outra forma, a imigração leva é a que os empregos mais qualificados sejam mais bem remunerados e com isso aos aumentos do salário médio no nosso país.

Sei bem que a lista é longa, mas ficaram outros factos por elencar. Contra eles contrapõem-se sensações, perceções, preconceitos. Não duvido de que ver gente na rua com roupas, religiões, cores e cheiros diferentes acorda o nosso irracional medo do desconhecido, do diferente – sendo que em Portugal 70% da imigração é de gente com a nossa raiz cultural e fala a nossa língua – e isso, claro, tem impacto.

Como se chega ao ponto de as pessoas se deixarem guiar por mentiras não cabe em milhões de páginas. Diga-se que não é novidade, a história da Humanidade é uma sucessão de episódios onde a mentira venceu a verdade com as consequências que daí advieram.

Há fenómenos de sempre: queremos razões diretas e facilmente percetíveis para explicar o nosso descontentamento, o medo do diferente. Claro que agora temos as redes sociais que não só permitem a rápida disseminação de mentiras, como substituíram todo o tipo de mediação, até a científica. É verdade que a extrema-direita financiada pelos novos donos do mundo teria sempre uma enorme vantagem sobre os defensores da democracia, mas ninguém duvide que custa mais explicar a verdade em problemas complexos do que contar uma mentira que vá de encontro aos nossos instintos básicos.

Em Portugal, o PS (que assobia para o lado) e principalmente o PSD mais não têm feito do que alimentar isso. E, dada a evolução do Chega, parece que não resulta. O original é sempre melhor do que a imitação.

Voltemos então à tese de que, no fundo, o melhor para parar o crescimento das forças antidemocráticas é alinhar em mentiras, perceções erradas, sensações e preconceitos. No fundo, e dando-a como bem-intencionada, defende-se que a melhor forma de parar a extrema-direita e o que ela fará à democracia se tomar o poder é comprar o seu discurso e as suas medidas nas questões culturais, sobretudo na imigração.

As grandes questões contra essa linha são pragmáticas e sobretudo éticas.

Uma política que se baseie em dados falsos nunca terá bom resultado. É, por definição, um contrassenso. Exemplo: querer integrar imigrantes e proibir a vinda das suas famílias obviamente não promove a integração. E, claro, compromete objetivos mais vastos, como dar uma melhor vida às populações: bloquear a imigração produzirá uma crise económica.

Até onde iremos se deixarmos que a mentira seja base para a decisão política? É um caminho sem fim. A aceitação da mentira como pressuposto viável para a implementação de políticas públicas tornará a nossa comunidade dependente de quem melhor conseguir espalhar mentiras, quaisquer que sejam os objetivos que os seus promotores queiram prosseguir. Melhor, tem um fim: a total descredibilização do poder democrático e o fim completo da confiança nos eleitos.

A mais importante guerra que as democracias hoje têm de travar é a da verdade. Tudo o que acontecer no futuro nas nossas comunidades depende dela. 

Trump quer que militares sejam guerreiros à moda antiga

Há dois meses, neste espaço, mencionei um livro que poderia ajudar a compreender Trump. O livro é “Male fantasies” (“Fantasias masculinas”), de Klaus Theweleit. É um estudo profundo sobre a psicologia dos Freikorps, um exército voluntário que esmagou o movimento operário, integrando-se mais tarde às tropas nazistas.

Constato que exagerei nas expectativas. Mais de um século é tempo suficiente para muitas mudanças. Essa é a conclusão que tiro do encontro de 800 oficiais de alta patente com Trump, na base da Marinha em Quantico, Virgínia.


Mesmo assim, confesso que aprendi um pouco. Os Freikorps eram uma espécie de milícia que se funde com o Exército. No caso de Trump, ele pede exatamente o contrário a seus generais. Quer que se exercitem nas cidades americanas para combater, sem uniforme, o inimigo interno: traficantes e estrangeiros não documentados.

Fico imaginando generais que se preparam para guerras sofisticadas terem de rever seus planos para estourar bocas de fumo ou perseguir uma pobre família guatemalteca sem documentos.

O ministro da Guerra, Pete Hegseth, definiu o padrão masculino, investindo contra os generais gordos que viu no Pentágono. Todos devem fazer exercícios físicos e perder peso. Essa é uma novidade que não combina com a época. A guerra moderna é feita com computadores e drones. Um general gordo que domine essa tecnologia pode derrotar facilmente seu rival esbelto.

Ele proibiu também barba e cabelos longos, embora não existam indicações de que esses itens possam atrapalhar um guerreiro. Os Freikorps excluíam mulheres porque detestavam seus corpos e sexualidade. Mesmo a maternal figura da enfermeira no front era considerada uma intrusão no unissexual mundo da guerra.

Hegseth aceita mulheres desde que confirmem sua capacidade física, tenham desempenho no nível da força masculina. A exclusão de gays é um ponto comum, relativamente. No Exército alemão, ser afeminado era vergonha suprema. Bertolt Brecht, numa entrada em seu diário em 27 de maio de 1942, escreveu:

— Passando uma hora da tarde com Feuchtwanger em seu belo jardim. Ele disse que, agora, há injeções de hormônio no Exército que removem quaisquer traços de homossexualidade. Elas têm de ser renovadas no prazo de alguns meses, mas agora o Exército não terá nenhuma graça mesmo para homossexuais.

Brecht se abstém de dizer alguma coisa simpática aos gays. Parece que acreditou mesmo que todos os traços de homossexualidade seriam removidos por essa intervenção médica.

Contudo na fala de Pete Hegseth há algo novo. Ele diz que não quer mais homens vestidos de mulher. Uma clara alusão às mulheres trans. As transições assistidas pela medicina são um fenômeno moderno.

Dessa forma, usando homem vestido de mulher, Pete Hegseth lançou um anátema a uma forma da luta num exército que tem bombas nucleares, mísseis e drones: a luta de espada. No mundo trans, a luta de espadas é uma metáfora frequente, e qualquer derrota para um soldado seria também a grande vergonha de ocupar o lugar de mulher.

Muita coisa mudou nestes cem anos, mas o tema de estudo sobre os Freikorps permanece de pé: como a produção do desejo se transforma na produção da morte.

Hegseth tomou a primeira providência: não é mais ministro da Defesa, mas sim da Guerra.

A história que se repete

Se há duas coisas que se repetem na História, uma é a ideia de que os tempos presentes são importantíssimos para o futuro. A outra é de que isto nunca esteve tão mau.

O resto são acrescentos. Pensávamos há uns anos que tínhamos batido no fundo, mas mal sabíamos a sorte que tínhamos: ainda estávamos no ar, a dançar o minueto com as borboletas.

Os jovens já não respeitam os velhos. E dantes? Dantes, sim, respeitavam: que remédio! Quem não respeitasse ia para as masmorras.

Mas se, de repente, voltássemos ao ano 2000 ou a 1970 ou a 1315 ficaríamos horrorizados. Ficaríamos horrorizados com o pouco que tínhamos, o pouco que sabíamos, o pouco que nos importávamos.


A verdade imutável é só uma: o ser humano é descontente. É vaidoso: quer viver num tempo importante. Quer assistir, quer fazer parte, quer lamentar. É ambicioso: quer deixar a marca, quer melhorar, quer intervir, quer que digam que valeu a pena ele viver.

A pessoa descontente passa por séria, passa por preocupada, passa por filosófica. Mas ver os defeitos é a coisa mais fácil à face da Terra. O que é difícil é detectar, no meio de tanta desgraça habitual, as qualidades.

A ideia de que isto vai de mal a pior é que é a ideia dominante da cultura. Muitos veem uma oportunidade de tentar melhorar as coisas, mas todos concordam que os tempos são maus e que as pessoas não querem saber.

Quem é que se safa desta desgraça multifacetada? O opinador. O contemplador. Ou seja, cada um de nós quando opina ou contempla, depois de ter passado 30 segundos a pensar nos problemas da humanidade.

É esse o problema: a criança que grita que o imperador vai nu é considerada um herói. Já fez o que tinha a fazer.

Mas apenas disse o que viu. Não pensou. Não criou. Não ajudou ninguém. Nem sequer se pode dizer que foi honesto – apenas que não colaborou na decepção.

Somos todos como esse menino. Dizemos que isto está mal e dão-nos o passe para continuar exatamente como estávamos.

É bom negócio.