segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Pensamento do Dia

 


Julgamento de generais não é só fato inédito mas atestado de velhice de uma casta

Diz um provérbio russo que peixe começa a feder a partir da cabeça ("ryba is galovy gniot", para conferência dos cultores da língua). Como em todo provérbio, há um jogo entre a significação aparente e o sentido oculto. Isso se aplica ao momento presente da escuridão que nos segue desde a formação moderna do país: o julgamento de generais, almirante e oficiais menores não é só fato inédito nas Forças, mas também atestado de velhice de uma casta, entranhada como um alien nas vísceras da República.


Refletindo sobre a idade avançada em seu "De Senectute — o tempo da memória", o pensador italiano Norberto Bobbio relata um lamento ponderado de idosos: "Não é que a velhice seja ruim, o problema é que dura pouco". Bobbio pergunta-se "será mesmo que dura pouco?" E contrapõe um verso de Dario Bellezza: "Fugaz é a juventude/ um suspiro a maturidade/ avança terrível a velhice/ e dura uma eternidade".

É que o pensador também rumina sobre os artifícios que tanto prolongam a vida quanto impedem de morrer. A decrepitude pode estender-se como um fardo. "Ao lado da velhice censitária ou cronológica e da velhice burocrática, existe também a velhice psicológica ou subjetiva". As duas últimas coexistem em aspectos grotescos da política, como o dos parlamentares vitalícios, maldosamente comentados na imprensa: "Era lindo ver o triste desfile dos senadores vitalícios, cada um mais cadavérico que o outro; uma velha Itália que ninguém quer mais e que sozinha sepultou a si mesma" (Pietro Buscaroli, musicólogo). E mais: "Velhos, mas podres de tanto veneno e rancor, sobras ilícitas e condenáveis do regime das bombas e das tangentes".

Como no aforismo do peixe, há outro sentido nessas referências italianas. "Velhice", última fase da vida", diz Bobbio, "exprime um ciclo que se avizinha do fim. Por isso, ela é também empregada metaforicamente para assinalar a decadência de uma civilização, de um povo, de uma cidade". Mesmo citando clássicos, como Cícero, que fazem apologia da sabedoria da idade, ele sustenta: "quem louva a velhice não a viu de perto". Notícias recentes de Trump o reportam cochilando acordado ou preocupado apenas em aumentar seu nababesco salão de baile dourado em construção.

Mas a velhice aqui pautada não é o natural amadurecimento biológico. É principalmente o fato institucional sem a necessária renovação existencial. É o que faz do bicentenário Parlamento nacional exemplo de decrepitude. E nos golpistas, peixes grandes condenados, não carece ver de perto sinais de doença física e mental. Por mais distantes, exibem não senioridade, mas uma velhice pesada tanto para si mesmos quanto para outros.

Para si, porque contemplam um futuro despido das patentes e medalhas que lhe fazem a glória pessoal. Para outros, efeitos cansativos da vontade de eternizar-se de uma casta que se arroga a tutela da República, desatenta à sua própria degeneração. Dado o estado dessas cabeças, é hora de pensar também com o nariz.

Chega-se a Marte, mas não se chega ao próximo

Neste meio século não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que moralmente estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.

Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lhe permitem aquelas que efetivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Pensamos que nenhuns direitos humanos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem e que não é de esperar que os governos façam nos próximos 50 anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra. Com a mesma veemência com que reivindicamos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa tornar-se um pouco melhor.

José Saramago ao receber o Prêmio Nobel de Literatura

O mundo mais autoritário

A constatação é triste: 72% da população mundial vive hoje em países não democráticos, ditaduras ou autocracias eleitorais. Na última década, as ditaduras subiram de 22 para 33, enquanto os sistemas democráticos caíram de 44 para 32. Sobe também o número de democracias falhas, um modelo híbrido que abriga componentes de regimes autocráticos e democráticos, onde ocorrem falhas na aplicação de princípios e valores, como liberdade de imprensa, independência entre os Poderes, repressão policial, ameaças de golpes, integridade do sistema eleitoral, entre outros.

Tal constatação tem como fonte uma pesquisa feita pelo Instituto sueco, V-Dem, da Universidade de Gotemburgo. A escalada autoritária é uma ameaça ao equilíbrio entre as Nações. Nos últimos tempos, o planeta vive sob o temor de que uma nova Guerra Fria, que poderá ser o estopim de um conflito de proporções mortíferas para a Humanidade. China e Rússia, juntos na estratégia de eliminar o poderio ocidental, capitaneado pelos Estados Unidos, e tendo como pano de fundo a tragédia que se abate sobre a Ucrânia, empurram o planeta na direção do precipício. Semana passada, vimos Vladimir Putin, o todo poderoso mandatário-mor da Rússia, falar alto: “Se a Europa quiser guerra, estamos pronto”.

Afinal, o que ocorre com as democracias? Estão morrendo? Assistem, inertes, ao desvanecimento de sua base? Não têm resistido ao volume crescente da violência, que invade os ares da liberdade? A luta do poder pelo poder, sem as luzes das ideologias e doutrinas, seria uma volta ao nosso passado ancestral?


São questões cruciais. Que já mereceram análises de cientistas políticos. A afamada obra Como as democracias morrem, dos professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, faz importante observação para entendermos a vida contemporânea. A tese principal dos dois autores é a de que os sistemas são corrompidos por meio da perversão do processo legal, significando que os governos legitimamente eleitos subvertem os meios que os levaram ao poder.

Na América Latina, basta ver os golpes militares, no Brasil (1964), na Argentina (1966), no Chile (1973), no Uruguai (1976) e os movimentos de tendência golpista, que ocorrem aqui e ali, a escancarar a instabilidade das instituições representativas, a militarização da vida política e cerceamento da liberdade política e de expressão.

Até a maior democracia ocidental, a norte-americana, tem sofrido ameaças, a partir da eleição de Donald Trump e sua pregação antidemocrática. Ali, nunca se viu tanta pregação contra os eixos da democracia.

A crise, como se sabe, é crônica, se arrasta há tempos. E onde estão suas raízes? Norberto Bobbio, o cientista social e político italiano, em sua clássica obra, O Futuro da Democracia, levanta a questão: as democracias não têm cumprido seus compromissos para com as comunidades.

Promessas não cumpridas caracterizam uma sociedade pluralista, com seus vários centros de poder, com o domínio das oligarquias que procuram preservar suas tradições e, ainda, com a força do poder invisível, que age nos subterrâneos do poder visível, representado pelo Estado. Basta ver a expansão das gangues e do crime organizado, hoje presentes em praticamente todos os países da América Latina. Calcula-se que cerca de 40% dos homicídios globais estão ligados ao crime organizado e à violência de gangues, que são prevalentes nas três Américas,

A incultura política campeia. Bobbio é enfático: a apatia política chega a envolver cerca da metade dos que têm direito a voto. É pouco. Em nosso Brasil, a imensa maioria do eleitorado ainda vegeta no terreno que se chama de “cidadania passiva”.

As promessas não têm sido cumpridas por causa dos obstáculos e desafios impostos por uma sociedade que saiu de uma economia familiar para uma economia de mercado, ou seja, uma economia planificada, que abriu a era do “governo dos técnicos”, e trouxe, em seu arcabouço, sérios problemas, como desemprego, inflação, aumento das desigualdades, competição desvairada, violência.

O rendimento do estado democrático sofre queda e, em muitos países, os sistemas governativos tornam-se ingovernáveis. As tensões entres Poderes (caso do Brasil) contribuem para a instabilidade institucional. As ingerências de um Poder sobre outro se tornam constantes, a ponto de se considerar que funções legislativas são absorvidas pelo Poder Judiciário, como ocorre, hoje, por nossas bandas. Basta olhar para a recente querela entre o STF e o Senado Federal e sua acusação recíproca de invasão de competências.

O STF até parece uma gigantesca delegacia de polícia, a julgar vândalos. O Poder Executivo, por sua vez, encabresta o Poder Legislativo, com sua articulação para cooptar parlamentares com liberação de recursos e outros meios de atração, como cargos e espaços na estrutura administrativa.

Em um ensaio alentado, os professores e pesquisadores Fernando Limongi e Angelina Figueiredo explicam: “o padrão organizacional do Legislativo brasileiro é bastante diferente do norte-americano. Os trabalhos legislativos no Brasil são altamente centralizados e se encontram ancorados na ação dos partidos. Ademais, enquanto o presidente norte-americano possui limitados poderes legislativos, o brasileiro é um dos mais poderosos do mundo. … da mesma forma, não é possível desconsiderar os poderes legislativos do presidente.”

O fato é que o exercício da governança se torna cada vez mais complexo. Os interesses grupais e individuais suplantam as demandas coletivas. A conquista do poder, a qualquer custo, é a meta que transforma a política em uma arena de lutas. Sob essa paisagem conflituosa, golpes, insurreições, movimentos de ruptura, ancorados nos quartéis e nas armas, são os novos componentes que corroem os vãos e desvãos das democracias, tornando o mundo mais autoritário.

O Congresso contra o Brasil

Justamente no momento no qual o Brasil tenta reassumir um papel de liderança internacional na agenda ambiental e climática, o Congresso – dominado por forças conservadoras, ruralistas e setores alinhados à extrema direita – age para sabotar o país. A derrubada dos vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao PL 2.159/2021 representa um dos maiores retrocessos ambientais desde a redemocratização. Não à toa, o texto ficou conhecido como "PL da Devastação ".

E não são apenas os movimentos ambientais que soam o alarme. Também a Anistia Internacional, setores da Igreja Católica, pesquisadores, cientistas e um relator especial da ONU alertam para as consequências da proposta.

O discurso tenta vender a ideia de "modernização" das regras de licenciamento ambiental. Mas o conteúdo real do projeto revela outra lógica: acabar com os estudos de impacto ambiental e social, justamente o coração de qualquer sistema democrático de proteção ambiental. Pela nova regra, empresas poderão "autorizar" seus próprios empreendimentos por meio de simples autodeclarações: sem análise técnica independente, sem transparência pública e sem participação da sociedade. É a porta aberta para abusos, fraudes e destruição acelerada.

A supressão da participação social é um dos pontos mais graves. Povos indígenas, comunidades quilombolas e populações tradicionais perdem não apenas o direito à consulta, mas também o acesso a informações que lhes permitiriam contestar violações. Sem estudos prévios, resta um vácuo institucional no qual interesses privados passam a prevalecer de forma absoluta.

O PL 2.159/2021 não enfraquece apenas o licenciamento: ela fragiliza pilares elementares do Estado Democrático de Direito.


O impacto concreto pode ser ilustrado de forma simples: imagine um empresário adquirindo uma vasta área numa terra indígena ainda em processo de demarcação – processo conhecido por sua lentidão burocrática e vulnerável à pressão política. Com a nova legislação, bastará uma autodeclaração para desmatar, converter o território em pasto ou instalar monoculturas de alta degradação. Erosão do solo, contaminação de rios, perda de biodiversidade, agravamento do calor e redução das chuvas – todos esses efeitos deixam de ser analisados. E o modo de vida das populações originárias simplesmente desaparece do mapa.

O ataque legislativo recai principalmente sobre dois biomas cruciais: Amazônia e Cerrado . Ambos já enfrentam pressões históricas; ambos desempenham funções ecossistêmicas essenciais para o regime de chuvas no Brasil e para o equilíbrio climático global. Essa regressão normativa, além de colocar o país no caminho da devastação interna, prejudica os esforços internacionais para limitar o aquecimento global.

A ironia é que até o próprio agronegócio será a vítima. A ciência é unânime: o aumento das temperaturas , a irregularidade das chuvas e a intensificação das secas afetarão profundamente a produtividade agrícola. Hoje, cerca 60% das terras agrícolas brasileiras já apresenta algum nível de degradação. Projeções indicam que esse número pode chegar a quase 75% até 2060, com prejuízos bilionários. A bancada ruralista está destruindo a base material de seu próprio negócio.

No plano jurídico, a perplexidade é igualmente grande. O PL cria insegurança ao invés de solucioná-la: fragmenta competências entre União, estados e municípios; elimina parâmetros mínimos; abre brechas para interpretações contraditórias; e estimula um ambiente normativo caótico. Essa desorganização não é um acidente, mas arte do objetivo central: criar um cenário em que fiscalização se torne inviável. As comunidades tradicionais ficaram expostos a uma anarquia de um capitalismo sem regras.

Não surpreende, portanto, que o Supremo Tribunal Federal (STF) deva ser acionado. Há sólidos argumentos constitucionais para questionar a PL, sobretudo sua violação ao princípio da proibição do retrocesso ambiental que impede o Estado de desmontar proteções essenciais sem motivação constitucional robusta.

Mas talvez o aspecto mais estarrecedor seja outro: o PL 2.159/2021 representa o oposto do que a sociedade brasileira quer. Pesquisas de escala nacional mostram 94% dos brasileiros reconhecem que o aquecimento global é real e já sentem os efeitos das mudanças climáticas, 74% afirmam que a proteção ambiental deve prevalecer sobre o crescimento econômico; mais de 90% consideram fundamental a defesa da Amazônia, mais de 80% da população mundial exige ações mais firmes dos governos em defesa do clima.

Em outras palavras, a população brasileira apoia de forma esmagadora a proteção ambiental. Quem sabota essa agenda é o Congresso, uma instituição hoje blindada contra a vontade popular, capturada por interesses privados e dominada pelas mesmas oligarquias que, há décadas, impõem seus privilégios ao país: homens brancos, ricos, herdeiros de clãs políticos e representantes de setores econômicos poderosos.

O paradoxo persiste: uma sociedade que defende massivamente a natureza e um Parlamento que age sistematicamente para destruí-la. A pergunta inevitável ecoa: por que o país continua elegendo representantes que não refletem seus valores nem seus interesses de longo prazo? Trata-se de um dos enigmas mais persistentes do cenário político brasileiro contemporâneo.

Malandros e trambiqueiros

São personagens centrais da sociedade brasileira. Não são sinônimos, apesar das semelhanças. O malandro tem uma conotação positiva na nossa paisagem cultural. Adota um estilo de vida peculiar. É temente a Deus e ao trabalho. Desafia as convenções sociais de modo a levar vantagem em tudo que se mete. Para lograr uma existência livre, leve e boa, desenvolve habilidades da esperteza. Da astúcia. Aprimora a arte enganar e encontra sempre que se deixa enganar: a legião dos otários.

No entanto, passa raspando pelo Código Penal de modo a não cair na malha do artigo 171 (estelionato e fraudes diversas). Não é bandido. Pelo contrário. O malandro e o ambiente da malandragem são fontes de inspiração do cancioneiro, da literatura e da pesquisa sociológica.

O renomado antropólogo, escritor e jornalista, Roberto DaMatta (1936), na obra magistral Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, define o malandro como “um ser deslocado das regras formais, fatalmente excluído do mercado de trabalho. Aliás definido por nós como totalmente avesso ao trabalho e individualizado pelo modo de andar, falar e vestir-se”.


Por sua vez, a romantização do malandro é cantada na poesia musical do samba-choro de autoria de Assis Valente (1911-1958) Camisa Listrada, 1937, imortalizada na voz da “pequena notável”, Carmen Miranda (1909-1955). Jorge Aragão compôs a canção Malandro (1983) interpretada pela saudosa Elza Soares (1930-1922). Cabe destacar a consagrada peça do teatro musical de Chico Buarque de Holanda, A Ópera do Malandro, encenada em 1979 e adaptada ao cinema em 1985.

Na literatura e na criação de personagens televisivos, cinematográficos, o malandro é tema recorrente e que molda um tipo original, um modelo arquetípico, desde a figura criada nas Memórias de um Sargento de Milícias, explorada pelas diversas escolas literárias, a exemplo do legado modernista em Macunaíma – O herói sem nenhum caráter (Mário de Andrade, 1893-1945)) e que está na boa da companhia do espertíssimo e irreverente Vadinho em Dona Flor e seus dois maridos (Jorge Amado,1912-2001).

Não custa mencionar a figura singular do vivaldino Castelo, o protagonista do delicioso conto de Lima Barreto (1881-1922) que engabelou o Barão de Jacuecanga e os burocratas da época como O Homem que Sabia Javanês. E para além de nossas fronteiras, cabe destacar a figura octogenária e icônica de Zé Carioca, criado nos estúdios Walt Disney (o Joe) como um versátil e suave representante do estilo do carioca da época, alegre, criativo, bem-humorado, manero, tempos longínquos em que a diplomacia americana praticava e difundia o “soft power”. E na epifania de Herivelto Martins, hoje desnaturada, morar no morro era viver pertinho do céu.

A verdade é que os tempos mudaram radicalmente. Na era competitiva e performática, não há lugar para o malandro tradicional. Sobra a tentação da ganância e, com ela, afunda o ideal ingênuo da vida boa e simples. O crime é o vizinho em todos os recantos do espaço social. A malandragem dá lugar à bandidagem. A astúcia e a esperteza abrem passagem para a delinquência; a fraude é o método; estelionato, mais do que um tipo penal, é o objetivo permanente para obter a vantagem ilícita; e organizar a ação criminosa, um investimento estratégico.

Entra em cena o trambiqueiro. O falsário, o trapaceiro, o golpista sob um invólucro mais “elegante”: o marginal pleno. No caso brasileiro, este tipo de delinquente utiliza padrões sofisticados na estruturação dos negócios à margem da lei. Elabora um plano e monta a estratégia para o assalto ao bem público ou privado. A estratégia se aproveita do persistente patrimonialismo do estado brasileiro onde viceja a promiscuidade entre o interesse público e o privado. É o “locus” adequado.

Com razoável esforço de observação, é possível identificar o perigo bem como acionar os mecanismos de proteção às vítimas potenciais. Senão vejamos.

Todo trambiqueiro desenvolve o agudo senso oportunista, sabe onde está o “tesouro” e, certeiro, versátil, conhece, também, as formas mais eficientes de abordagem. Começa com um discurso pró-mercado. Mentira. Foge da concorrência e da competição como o diabo da cruz. Em compensação, adora todo tipo de subsídios, monopólios e tudo mais que esteja sob o manto corrompido do “capitalismo de laços e de compadrio”.

Prevenido, o marginal pleno/trambiqueiro se protege com uma sólida arquitetura jurídica montado por “competentes” consultores e advogados pagos com honorários estratosféricos. Prefere, é claro, os que demonstrem comprovada influência junto às autoridades. Cuida com zelo especial de instalar “lavanderias”; plantar vastos “laranjais”; buscar os paraísos fiscais de modo a apagar responsabilidades e sonhar com o crime perfeito.

Todo ele se mostra atual. Antenado. Digitalizado. Convincente. Cultiva um verniz de modernidade no estilo. É neo. Neo-rico. Neo-enófilo. Neo-Gourmet. Neo-brega com métricas chiques no falar, soleniza lugares-comuns; no vestir, roupas de marca, caras, com certo “despojamento corporativo”; no divertir (aí mora o perigo), luxos, excentricidades e uma casual cafungada no pó.

Dos escândalos amplificados com o ditongo “ão”, ao careca do INSS”, ao “trambanqueiro” do Master e ao guloso Magro da Refit, todos ostentam para valer. Ao fim e ao cabo, espetaram algumas dezenas de bilhões de reais nos costados dos aposentados do INSS e no bolso do contribuinte. As promessas do sistema de compliance, os mecanismos de fiscalização e controle passaram batidos diante de evidentes sinais de enriquecimento ilícito.

Ninguém viu. O impressionante livro de Saramago O Ensaio sobre a Cegueira oferece uma explicação, ainda que ficcional: epidemia geral que afetou a visão de uma comunidade. No nosso caso, tudo indica que ocorreu, e pode continuar ocorrendo, epidemias, porém, seletivas o que garante aos delinquentes o troféu da impunidade.
Gustavo Krause