quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Defeitos de fabricação do governo Bolsonaro são cada vez mais evidentes

Ao anunciar a saída do chefe do INSS, o governo disse esperar "que não haja descontinuidade" nas atividades do setor. Seria um sinal de autoconfiança se não fosse a fila de 1,3 milhão de pedidos de aposentadoria encalhados no órgão. A equipe de Jair Bolsonaro age como se pudesse trocar uma peça e deixar o calhambeque rodando ladeira abaixo.

Os burocratas alegam que uma falha no sistema da Previdência acabou represando a concessão de benefícios. É mais honesto afirmar que esse é mais um dos defeitos de fabricação deste governo. A falta de planejamento, comunicação e articulação já foi vendida como item de série.


O governo tratou a reforma das aposentadorias como prioridade, mas não preparou as agências do INSS para a aplicação das novas regras. Encomendou planos megalomaníacos para dar nova cara ao Bolsa Família enquanto deixava cidadãos miseráveis na fila de espera. Bateu bumbo para a realização do Enem, mas não conseguiu garantir uma correção precisa de todas as provas.

Dez dias depois de admitir falhas no exame, o Ministério da Educação ainda não convenceu os estudantes de que os erros foram reparados. Nem o presidente foi capaz de dar um voto de confiança total ao chefe da pasta. Bolsonaro não quis responsabilizar o boquirroto Abraham Weintraub, mas emendou que ele continua no cargo "por enquanto".

Com tanta desordem, ineficiência e falta de controle, não é surpresa que tantos integrantes do governo pareçam estar pendurados por um fio —de um secretário de Comunicação em flagrante conflito de interesses ao presidente do BNDES.

Foi o presidente, aliás, quem reafirmou as dúvidas sobre um contrato de auditoria ampliado pela cúpula do banco. "Parece que alguém quis raspar o tacho", disse, chamando o chefe da instituição de "o garoto lá".

Bolsonaro talvez tenha passado a reconhecer os problemas do governo depois de alguma revelação espiritual durante sua viagem à Índia. Algumas coisas simplesmente não têm como dar certo.

Brasil muy amigo


Ares, água e lugares

Florestas queimadas, contaminação da água e pessoas dormindo debaixo de marquises causam doenças que podem ser prevenidas. Desde o século V a.C., os escritos hipocráticos distinguiram ciência de religião e admitiram possibilidades de evitar elementos ambientais nocivos. O prognóstico, uma das principais conquistas da tradição hipocrática, baseia-se na compreensão dos encadeamentos e rupturas entre passado, presente e futuro, que também fundamentam os ideais da Pólis sem tirania. Uma compreensão abrangente da saúde permitiu prever, predizer e buscar alterar desfechos negativos.

Séculos depois, a experiência com a péssima qualidade da água no Rio de Janeiro dispensa o debate grego sobre as causas naturais ou religiosas das patologias. Qualquer pessoa de bom senso intui que as características predatórias das relações humanas e o extrativismo voraz dos recursos da natureza são responsáveis pela piora das condições de vida.


Água potável é um requisito para vida e fator-chave para a saúde. As crianças são particularmente vulneráveis aos efeitos da água insegura. Diarreias e exposição a poluentes inorgânicos, como arsênico, cobre, fluoreto, chumbo e nitrato, podem comprometer o desenvolvimento infantil. Existe algum consenso sobre o diagnóstico. O desafio é passar da constatação sobre o meio ambiente malsão e acusações entre governantes para o prognóstico. O que ocorrerá, caso essas tendências não sejam alteradas? Quais são as melhores estratégias para evitar mais danos à saúde? A geosmina tem mau cheiro, mas a causa da proliferação deste composto orgânico produzido por bactérias é a morte de rios pelo manejo inadequado de dejetos. Saber a origem do fedor da água e que o carvão ativado o atenua é importante, porém insuficiente para influenciar um prognóstico favorável sobre o acesso à água potável de boa qualidade.

Pesquisadores afirmam que a melhor solução seria a despoluição dos rios. Mas o governo estadual atacou, como se fosse um grande feito, apenas um dos sintomas do problema. Decidiu importar equipamento de São Paulo e carvão do Paraná para fornecer água inodora e anunciou a proposta de desviar o curso de rios. Não haverá mudança nos padrões de desigualdade do acesso à água e saneamento e na introdução de substâncias e resíduos em aquíferos, que tornam grandes quantidades de água inadequadas para vários usos.

Seria como se nos contentássemos em saber que o coronavírus do surto de Wuhan é novo e diferente do que causa SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), e não houvesse preocupação com a letalidade, velocidade de contágio, espalhamento dos novos casos e com as estratégias globais de prevenção e tratamento. Quando a atenção se desloca da população sob risco para os patógenos, para os microrganismos, o prognóstico é deixado para segundo plano.

Outra rota de fuga de soluções mais efetivas para os problemas ambientais se expressa na confusão entre fatos e valores. A água é considerada por instituições internacionais de distintos matizes ideológicos como um bem comum; deveria, portanto, ter uma distribuição equânime. Houve melhoria do acesso à água no Brasil e estagnação dos serviços básicos de saneamento. Sob a discussão sempre válida, a respeito da estatização ou privatização das empresas estaduais de água e saneamento, cresce a hiper apropriação privativa da água. O fato é que a água é comercializada por caminhões-pipa e empresas que a engarrafam.

O afastamento de atitudes hipocráticas, especialmente omissão de prognósticos, estimula previsões simplificadoras. As considerações sobre as mudanças dos fatores que determinam os problemas ao longo do tempo e seus resultados dinâmicos requerem o compartilhamento de informações preditivas e reavaliações periódicas. O famoso tratado hipocrático “Ares, águas e lugares” continua atual porque estimula a adoção de processos decisórios coletivos e democráticos e questiona a conversão da abundância de recursos naturais em escassez e doenças.

Sabotagem

O ano de 2020 na Educação começou marcado por uma palavra trazida à moda pelo ministro da pasta: balbúrdia. Confusão na correção do Enem e, consequentemente, na divulgação do resultado do Sisu, o sistema unificado que usa as notas do exame para direcionar os alunos para as universidades.

Ontem, com liminar concedida pelo Superior Tribunal de Justiça, estudantes conseguiram ter acesso aos resultados, mas muitas dúvidas ainda pairavam quanto aos critérios de atribuição das notas e escolha de vagas.

Diante de evidente falha técnica e administrativa do MEC, Jair Bolsonaro optou pela sua saída padrão quando as coisas vão mal por ineficiência dos assessores que ele considera leais, ideologicamente alinhados e suficientemente lacradores nas redes sociais: apontou sabotagem, provavelmente da esquerda infiltrada na pasta.

Isso, claro, sem ter qualquer dado ou evidência – uma sindicância, uma auditoria, alguma denúncia em canais oficiais – de que tenha havido algo do gênero. Diversionismo para enganar aquele exército bovino das redes sociais sempre disposto a amparar qualquer absurdo que venha do governo.


Acontece que numa pasta que lida com estatísticas, como a Educação, o sedimento formado pelo aparelhamento ideológico, pela inépcia administrativa e pelo desprezo à ciência vai deixar marcas que ficarão associadas ao governo Bolsonaro para a História. E neste caso não será possível apontar um complô alienígena para culpar.

Enquanto tudo isso acontecia em seu quintal, o ministro Abraham Weintraub ocupava os últimos dias com mais postagens nas redes sociais divulgando fake news contra jornalistas ou brandindo um vidro de água sanitária numa receita caseira para aplacar o suposto mau hálito de outro. Sim, isso mesmo. Dentro do gabinete do MEC. Está no Twitter, com orgulho indisfarçado da própria capacidade de fomentar a “guerra cultural”.

Também se dispôs a encaminhar “diretamente ao Inep” o caso da filha de um apoiador, uma das milhões de estudantes que apontaram erro na correção do Enem, sempre por meio da rede social favorita. Não é só. Nos últimos dias, decreto assinado por Bolsonaro abre uma brecha para que este MEC, assim aparelhado, em que o titular da Capes, responsável por pesquisas, se revela orgulhosamente defensor do criacionismo, produza livros didáticos.

Não foi por acaso o ataque de Bolsonaro aos livros adquiridos por meio do Programa Nacional do Livro Didático, aqueles que, no gosto presidencial, tinham muita coisa escrita.

O filão dos livros didáticos sempre foi uma espécie de galinha dos ovos de ouro dos pupilos de Olavo de Carvalho que foram encastelados no MEC na gestão de Ricardo Vélez Rodríguez, caíram por intervenção do general Santos Cruz, mas continuam orbitando em torno do poder. Vários desses olavetes inflamados têm participações em editoras e esperam só uma chance para abocanhar esse rentável mercado. E, de quebra, fazer aquela doutrinaçãozinha ideológica, porque ninguém é de ferro.

É esse estado de coisas que compromete de maneira séria a Educação brasileira. Exumar Paulo Freire e malhá-lo como um Judas diante de uma massa que não sabe nada a respeito da obra do educador é um jeito de criar uma cortina de fumaça para o verdadeiro plano de utilizar educação e cultura como correia de transmissão do reacionarismo (e nunca conservadorismo, porque os conservadores de fato se contorcem diante dessa marcha batida rumo às piores práticas autoritárias).

O Congresso, que tem em suas cadeiras alguns bons parlamentares com foco nessa área, precisa, no retorno do recesso, voltar os olhos para os desmandos no MEC, já que, pelo jeito, Bolsonaro continuará apontando inimigos imaginários enquanto seu ministro pinta e borda.

Bolsonaro, entre o ilegal, o imoral e o simplesmente humano

José Vicente Fantini, até ontem o número 2 da Casa Civil da presidência da República, nada fez de ilegal, mas fez de imoral, segundo Jair Bolsonaro, ao usar um jatinho da FAB para voar à Davos, na Suíça e, de lá, para a Índia. Poderia ter viajado em avião comercial. Foi demitido.

A preocupação de Bolsonaro com a moralidade, se não fosse recente, o teria poupado de protagonizar episódios que mancham sua biografia e envergonham o país. Obrigar o filho Carlos, com 17 anos, a ser candidato a vereador para impedir a mãe de se reeleger, foi imoral.

Depois disso, Carlos passou anos sem falar com o pai. Seus desvios de comportamento se devem em grande parte a isso. É o filho mais ligado a Bolsonaro e dependente de suas atenções. Vez por outra, contrariado, desliga o celular e o pai entra em pânico, sem conseguir despachar.


Bolsonaro se elegeu como candidato contra a corrupção e prometendo combatê-la com todo rigor. Afastou-se do combate tão logo estourou o caso da rachadinha da dupla Flávio e Queiroz. Foi Bolsonaro quem pôs Queiroz para cuidar do filho. A imoralidade, agora, bate à sua porta.

O Secretário da Comunicação da presidência da República foi intimado para se defender da acusação de que se valeu do cargo para beneficiar clientes de suas empresas. Contudo, tão logo voltou da Índia, Bolsonaro disse que ele não fez “nada demais”. Não foi nem um pouco imoral?

O presidente há de concordar que pode não ter sido ilegal, mas imoral foi acreditar com base em intrigas familiares que o general Santos Cruz, ministro do seu governo, o criticara no WhatsApp. Demitiu-o por isso. Restou provado que tudo não passou de uma armação contra o general.

Fakenews! Como fake foi Bolsonaro dizer que o nazismo teve sua origem na esquerda. Fakenews é uma coisa imoral. Porque não passa de uma mentira para enganar o maior número possível de pessoas. Bolsonaro sabe disso, mas não desiste de recorrer a elas para extrair benefícios.

Manter no cargo o atual ministro da Educação nem é ilegal, nem imoral. O presidente tem o direito de cercar-se de auxiliares desastrados. Mas é burrice. Faz mal à sua reputação. Como fez mal quando ele afirmou outro dia que “índio cada vez mais é um ser humano igual a nós”.

Quanto a recusar-se a enviar um avião às Filipinas para trazer uma família de brasileiros infectados pelo coronavírus, nem é ilegal, nem imoral, nem burrice. É, apenas, desumano.

Copo mais para vazio que para cheio

Em sua avaliação da economia mundial divulgada este mês durante a conferência anual de Davos, o FMI (Fundo Monetário Internacional) apresentou uma expectativa mais positiva do crescimento do PIB brasileiro para 2020. Em vez do magro 1.0% registrado em 2019, poderemos crescer 2.2%, graças principalmente à Reforma da Previdência e a prospectos mais favoráveis no setor de mineração.

Uma boa notícia, e melhor ainda na comparação com a média da América Latina, que ficará em torno de 1.6%, ainda segundo o FMI. Evitemos, porém, um entusiasmo prematuro, pois, além de percalços internos, dos quais falarei adiante, nossos 2.2% ficam bem abaixo dos 3.4% de crescimento previstos para a economia mundial e correspondem exatamente à metade dos 4.4% esperados para os chamados países “emergentes”.


Permanecemos, portanto, presos no que o jargão dos economistas denomina “armadilha da renda média”, ou “armadilha do baixo crescimento”. Essa armadilha se configura quando, após diversas décadas de crescimento relativamente fácil, baseado na incorporação de mão de obra pouco qualificada e em empreendimentos pouco exigentes em tecnologia, o País empaca. Falta-lhe empuxo, econômico e político, para retomar o crescimento.

Para bem entender o quadro acima esboçado, é preciso desfazer um equívoco comum. Há quem pense que o tamanho de nossa economia, situada mais ou menos em oitavo lugar no ranking mundial, é por si só um indicador de riqueza. Os que sustentam esse ponto de vista se esquecem de fazer duas ressalvas essenciais. O tamanho da economia mantém relação direta com o tamanho da população, que em nosso caso anda pelos 210 milhões, e com a nossa ampla disponibilidade de recursos naturais (minérios, soja, alimentos) que nos asseguram uma posição relativamente forte no comércio internacional. Mas aí acabam as boas notícias. A reforma da Previdência foi um avanço importante, mas ainda não está se refletindo em grandes investimentos, domésticos ou internacionais.

Sem isso, as condições da infraestrutura e a produtividade do trabalho permanecerão num patamar muito aquém do necessário. Nosso nível educacional, e consequentemente o nível de capacitação da força de trabalho, são lastimáveis, contrastando dramaticamente com o quadro de acelerado avanço tecnológico que está emergindo por toda parte. Vamos, pois, com calma. O copo não está cheio como à primeira vista se possa imaginar.

Pensamento do Dia


'E agora, José?'

Há versos célebres que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas — ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drummond de Andrade, acompanha-me desde que nasci, por um desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso de tempo sem medida. Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: "E agora?" Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atónitas. "E agora, José?" Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tónico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo da interminável ladainha que é a piedade por nós próprios.

Em todo o caso há situações de tal modo absurdas (ou que o pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola pisada, violentada, se vai distender vibrante e verticalmente armar. Nesse momento veloz tocara-se o fundo do poço.

Mas outros Josés andam pelo mundo, não o esqueçamos nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes, agressões, de que saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm nada nem ninguém a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam insignificantes e fúteis as nossas penas. A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drummond de Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem: "E agora, José?"

Precisamente um desses casos me mostra que já falei demasiado de mim. Um outro José está diante da mesa onde escrevo. Não tem rosto, é um vulto apenas, uma superfície que treme como uma dor contínua. Sei que se chama José Júnior, sem mais riqueza de apelidos e genealogias, e vive em São Jorge da Beira. É novo, embriaga-se, e tratam-no como se fosse uma espécie de bobo. Divertem-se à sua custa alguns adultos, e as crianças fazem-lhe assuadas, talvez o apedrejem de longe. E se isto não fizeram, empurraram-no com aquela súbita crueldade das crianças, ao mesmo tempo feroz e cobarde, e o José Júnior, perdido de bêbedo, caiu e partiu uma perna, ou talvez não, e foi para o hospital. Mísero corpo, alma pobre, orgulho ausente — «E agora, José?»

Afasto para o lado os meus próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, aviltá-los, fazer deles objecto de troça, de irrisão, de chacota — matando sem matar, sob a asa da lei ou perante a sua indiferença. Tudo isto porque o pobre José Júnior é um José Júnior pobre. Tivesse ele bens avultados na terra, conta forte no banco, automóvel à porta — e todos os vícios lhe seriam perdoados. Mas assim, pobre, fraco e bêbedo, que grande fortuna para São Jorge da Beira. Nem todas as terras de Portugal se podem gabar de dispor de um alvo humano para darem livre expansão a ferocidades ocultas.

Escrevo estas palavras a muitos quilómetros de distância, não sei quem é José Júnior, e teria dificuldade em encontrar no mapa São Jorge da Beira. Mas estes nomes apenas designam casos particulares de um fenómeno geral: o desprezo pelo próximo, quando não o ódio, tão constantes ali como aqui mesmo, em toda a parte, uma espécie de loucura epidémica que prefere as vítimas fáceis. Escrevo estas palavras num fim de tarde cor de madrugada com espumas no céu, tendo diante dos olhos uma nesga do Tejo, onde há barcos vagarosos que vão de margem a margem levando pessoas e recados. E tudo isto parece pacífico e harmonioso como os dois pombos que pousam na varanda e sussurram confidencialmente. Ah, esta vida preciosa que vai fugindo, tarde mansa que não será igual amanhã, que não serás, sobretudo, o que agora és.

Entretanto, José Júnior está no hospital, ou saiu já e arrasta a perna coxa pelas ruas frias de São Jorge da Beira. Há uma taberna, o vinho ardente e exterminador, o esquecimento de tudo no fundo da garrafa, como um diamante, a embriaguez vitoriosa enquanto dura. A vida vai voltar ao princípio. Será possível que a vida volte ao princípio? Será possível que os homens matem José Júnior? Será possível?

Cheguei ao fim da crónica, fiz o meu dever. "E agora, José?"
José Saramago

A queima da lavoura

Tudo que é público tem corrupção, e no setor privado não tem. Lá a governança funciona que é uma maravilha. Talvez a grande diferença seja o fato de que o privado olha para o consumidor e o público tem que olhar o cidadão. Essa é a diferença fundamental.

Para muitos no Brasil, o modelo ideal são os Estados Unidos. E lá existem sete mil estatais. Dados do ano passado do instituto Forbes, que é um instituto liberal, revela que das 10 maiores empresas em ativos do mundo, seis são estatais dos Estados Unidos, da China e da Europa
Maria Rita Serrano, membro do Conselho de Administração da Caixa Econômica Federal.

Gestão Bolsonaro tem fila de espera de demissões

Os ares da Índia fizeram bem a Jair Bolsonaro. De volta ao Brasil, o presidente mandou demitir, com a rapidez de um raio, o número dois da Casa Civil, Vicente Santini, que viajara ao exterior nas asas da Força Aérea Brasileira. O presidente tachou de "imoral" o uso de jato da FAB em deslocamentos que poderiam ter sido feitos em voos de carreira. Esse presidente de moralidade implacável se parece muito com o candidato da campanha eleitoral de 2018. Seria ótimo se o pavio curto virasse regra, não uma exceção.

O que incomoda na atual administração é a percepção que o governo não tem propriamente um princípio. O que Bolsonaro exibe é, no máximo, um ou outro tique moral. O mesmo presidente que manda demitir o auxiliar que confunde verba pública com dinheiro grátis, convive graciosamente com meia dúzia de ministros investigados, denunciados e até um condenado. Ele também age para proteger um filho encrencado com a lei.


Se o caso do demitido Vicente Santini revela alguma coisa é que o absurdo, quando não é enfrentado, pode ganhar uma doce, uma persuasiva, uma admirável naturalidade. O personagem esteve no Fórum Econômico Mundial de Davos. Depois, integrou-se à comitiva de Jair Bolsonaro, na Índia. Revelou uma intolerância a saguão de aeroporto incompatível com o comportamento de ministros que viajaram em aviões de carreira. Entre eles Paulo Guedes (Economia) e Tereza Cristina (Agricultura).

Pilhado, Santini mandou divulgar uma nota na qual a Casa Civil informou que estava tudo normal, que o jato da FAB fora requisitado dentro da lei. Confundiu-se desfaçatez com normalidade. Trata-se de um velho hábito de pessoas que se julgam no direito de usufruir do delicioso privilégio de gastar o dinheiro alheio. A demissão foi uma boa resposta. O que se espera é que a água de Brasília não dissolva em Bolsonaro os efeitos positivos provocados pela atmosfera da Índia. Há no governo uma fila de novas demissões esperando para acontecer.

O ventre como instrumento de poder

Ao ouvir os planos do Governo federal para realizar uma campanha pela abstinência sexual entre adolescentes, imediatamente me veio à mente as reuniões em que estive presente em Genebra e em que vi o mesmo governo de Damares Alves, Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo defendendo que fossem retirados dos documentos na ONU e OMS qualquer tipo de referência sobre “educação sexual”.

Tampouco aceitaram qualquer menção à saúde e direitos reprodutivos, sempre sob o argumento de que tais termos poderiam abrir caminho para a promoção do aborto.

Se à primeira vista essa situação pode parecer contraditória, na agenda ultraconservadora-religiosa não há nada de paradoxal entre as duas ações. No fundo, elas se completam num sentido mais amplo: o esforço pelo controle sobre o corpo da mulheres.

Sugere-se o que fazer com o corpo, enquanto recusa-se a aceitar a educação sexual como um direito básico. Retira-se o direito de saber para garantir autonomia sobre seu corpo e, ao mesmo tempo, uma campanha é promovida para dizer quando a mulher deve manter relações sexuais.


A abstinência pode eventualmente fazer parte de um programa de saúde e planejamento. De fato, a Sociedade para a Saúde e Medicina do Adolescente, nos EUA, admite que adiar o início de relações sexuais pode ter um impacto “saudável”. Mas jamais como uma solução recheada de carga moral ou religiosa. E muito menos sendo o carro-chefe da estratégia em que, ao mesmo tempo, a educação sexual é combatida em fóruns internacionais.

Neste caso, a abstinência se transforma num instrumento de poder. E não em uma opção de saúde pública. A escolha da idade não é do Estado, nem da família ou dos parceiros. Mas da mulher.

Pelo mundo, diferentes governos ultra-conservadores vêm promovendo políticas “pró-família”. Mas, em cada uma delas, a única que parece ser ignorada é a posição da mulher. Seu corpo, na maioria das vezes, se transforma em um meio para atingir outros objetivos políticos.

Na Hungria de Viktor Orban, por exemplo, o Governo passou a dar incentivos para garantir o nascimento de mais crianças húngaras. O país de fato vive uma redução de sua população. Mas, para evitar ter de aceitar imigrantes, Budapeste optou por pagar famílias para manter a “coesão nacional” e, de quebra, a cor da pele e a cruz.

Enquanto famílias são conduzidas a ter mais de três filhos, Budapeste insiste em atacar a lei de aborto que existe e ergue muros contra a “invasão” de imigrantes.

O ventre da mulher, neste caso, faz parte de uma estratégia nacional, supremacista e profundamente xenófoba.

Os húngaros não são os primeiros a adotar tal postura. Nos EUA, a tradicional ideia de nação ―branca e cristã― andou de mãos dadas com movimentos Pró-Vida. Sociólogos apontaram como, ao longo dos anos, a ansiedade da população branca americana cresceu, enquanto sua participação na demografia do país passou de 90% em 1950 para 60% no início deste século.

Com mais de 60% dos abortos sendo realizados por mulheres brancas, uma das teses é de que, com novas leis para impedi-las de interromper uma gravidez, se impediria que a população negra ou mestiça superasse a parcela branca dos EUA.

Na Polônia, em 2016, o Governo de extrema-direita propôs endurecer ainda mais as leis anti-aborto. Pelo projeto, mulheres poderiam ser presas se buscassem serviços para realizar um aborto. A proposta não vingou, diante dos protestos. Mas, nos bastidores, não são poucos os grupos que avaliam que a medida poderia voltar a ser apresentada, com uma nova roupagem. Também preocupa a ofensiva do Governo sobre os Judiciário.

No caso do Brasil, a recusa em aceitar a educação sexual em textos oficiais da ONU aproximou o Brasil da Arábia Saudita, um país “exemplar” no controle sobre o corpo da mulher. Riad, rapidamente, saiu a aplaudir o novo posicionamento do Governo de Bolsonaro.

Longe de dar uma solução para uma legítima e profunda crise de saúde pública, Brasil e outros governos optam por ignorar o que os dados científicos mostram. Em levantamentos realizados por alguns dos principais institutos de pesquisa, poucas são as evidências que mostram que a criminalização da autonomia do corpo da mulher tenha gerado resultados positivos.

De acordo com uma pesquisa publicado na revista The Lancet, 25 milhões de abortos inseguros foram realizados no mundo entre 2010 e 2014, a cada ano. Além desses, 7 milhões de mulheres foram hospitalizadas por conta de abortos ilegais. De acordo com a Anistia Internacional, 215 milhões de mulheres no mundo não tem acesso à métodos contraceptivos, ainda que não queiram ter filhos. Segundo dados da ONU, 22.000 mulheres morrem a cada ano como consequência de abortos inseguros.

Pelo mundo, ainda são dezenas as leis que mantêm um padrão inaceitável de controle do Estado ou dos homens sobre o corpo da mulher. Em alguns casos, quem comete o estupro pode evitar ser preso se casar com a vítima. Em outros lugares, clínicas apenas podem dar métodos contraceptivos a uma mulher se ela chegar acompanhada de seu marido.

Na Irlanda, o aborto é ilegal. Mas, entre 1980 e 2012, em média doze mulheres viajaram ao Reino Unido para interromper uma gravidez. E isso a cada dia.

Fora de seu útero, as barreiras não deixam de ser profundas. Em mais de 30 países, mulheres continuam precisando de autorização de seus maridos para ter um passaporte, enquanto na Nigéria o código penal mantém referências sobre “caráter imoral” de uma mulher. No ritmo que vamos, a igualdade entre homens e mulheres no mercado laboral será obtido em mais de cem anos.

Portanto, se o Governo brasileiro quer falar em abstinência, terá de falar primeiro em autonomia da mulher, educação sexual, direitos e saúde reprodutiva. E, enfim, não estaremos tratando do dilema do poder da mulher sobre seu marido ou sobre os objetivos do Estado. Mas estaremos promovendo uma política pública para que mulheres, parafraseando Mary Shelley, tenham o poder sobre elas mesmas.

E isso, provavelmente, seria a maior revolução na história da humanidade.
Jamil Chade