sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Da Casa dos Mortos

Albert Speer foi o arquiteto e o ministro de armamentos e produção de guerra de Hitler. Duas características o diferenciam dos demais assassinos nazistas. Primeiro, havia nos sentimentos de Speer em relação a Hitler um núcleo de afeto desinteressado, de calor humano que ultrapassava a fascinação animal. Em 23 de abril de 1945, sendo Berlim um oceano de chamas, todas as possibilidades de escapar em segurança quase esgotadas, Speer voltou à capital para se despedir pessoalmente do Führer. A absoluta frieza na reação de Hitler o abalou. Segundo, Speer conservou dentro de si um pouco de sanidade e senso moral durante o circo absurdo do Reich, e depois durante quase vinte anos de prisão em Spandau. São esses dois elementos — o sortilégio que a pessoa de Hitler exerceu sobre ele e a decisão de emergir mantendo a saúde mental depois de duas décadas de sepultamento em vida — que dominam Spandau: O diário secreto, de Speer (tradução do alemão de Richard e Clara Winton, para a Macmillan).

Albert Speer visitando o campo de concentração de Mauthausen (1943)


Nos julgamentos de guerra em Nuremberg, Albert Speer reconheceu que tinha sido ele, em última análise, o responsável por usar os milhões e milhões de trabalhadores escravos no arsenal do Reich. Não estivera diretamente envolvido na mecânica bestial da deportação que trazia esses pobres seres humanos dos territórios ocupados, nem nos maus-tratos e no extermínio rotineiro que tantas vezes se seguiam. Mas o comando da produção e da mobilização industrial estivera a seu cargo, e nesta medida Speer admitiu — na verdade, pormenorizou longamente — sua culpa. A condenação a vinte anos de prisão pareceu brutal desde o início, e houve quem considerasse que ela refletia a insistência dos soviéticos. Logo após Nuremberg, circularam rumores de que as autoridades russas não tinham a menor vontade de ver um empresário tão brilhante no setor de armas e fornecimento de materiais passar são e salvo para as mãos ocidentais.
Speer deu entrada na prisão de Spandau em Berlim no dia 18 de julho de 1947; saiu de lá em 30 de setembro de 1966, à meia-noite em ponto. Somado o tempo que passou na cadeia de Nuremberg durante o julgamento, foram exatamente vinte anos. Speer cumpriu a segunda década da sentença com apenas outros dois homens — Baldur von Schirach, ex-líder da Juventude Hitlerista, e Rudolf Hess.

Speer entrou no caixão ressonante de Spandau aos 42 anos, no auge de suas forças e após uma carreira meteórica. Foi solto aos 61 anos. Mas, durante o cativeiro, ele escreveu: mais de 20 mil páginas de notas no diário, cartas autorizadas e clandestinas, fragmentos autobiográficos. Escrevia em folhas de calendário, em tampas de caixas de papelão, em papel higiênico (o tradicional papiro do prisioneiro). E, clandestinamente, conseguiu remeter essa prodigiosa montanha de material para fora dos muros de Spandau, apesar da vigilância atenta dos guardas americanos, russos, britânicos e franceses. Speer contrabandeou material suficiente para seu primeiro livro, Por dentro do III Reich, para este diário da prisão e, a se confirmarem algumas insinuações, para um possível estudo completo de Hitler. Como ele fez? A explicação de Speer é ao mesmo tempo arredia e curiosamente pormenorizada. Ele nos conta que precisava proteger a identidade das pessoas que o ajudaram. O canal principal foi um dos médicos assistentes da prisão, o qual, por ironia, tinha sido um dos deportados da máquina de guerra do Reich. Mas devia haver outras vias. É difícil evitar a impressão de que as autoridades, em particular as três potências ocidentais, deviam saber algo sobre o volumoso intercâmbio de Speer com o mundo externo e com o futuro. De fato, já em outubro de 1948 a esposa de um importante editor judeu em Nova York entrou em contato com uma pessoa da família de Speer, a respeito de suas memórias (se não a senhora, pelo menos Speer se sentiu enojado com a sutil indecência da proposta).

Hitler paira neste livro como uma bruma negra. Nos primeiros anos de cativeiro, Speer procurou relembrar e expor metodicamente a história de sua relação com o Führer. Há muitas vinhetas memoráveis. Vemos Hitler planejando transformar sua cidade natal de Linz num centro de arte mundial. Podemos observá-lo durante os anos de ascensão sonambúlica ao poder, entre as multidões enlouquecidas ansiando pelo furacão de sua passagem num carro aberto, ou na íntima companhia de seus capangas — discursando, zombando, pontificando e então caindo bruscamente no vórtice silencioso de suas visões. Há alguns instantâneos extraordinários de Hitler com uma disposição doméstica em Obsersalzberg, trabalhando numa socialidade espontânea entre subordinados, ajudantes, simpatizantes cuja vida dependia do ânimo do líder. Speer registra os comentários de Hitler sobre literatura (o sujeito adorava Karl May, a versão germânica de Fenimore Cooper), sobre escultura, sobre o significado da história. Traz à memória os momentos de generosidade do Führer com seus primeiros apoios e associados, e fala da obsessão de Hitler pelo fogo, pelas chamas na lareira e pelas labaredas na cidade.

Speer sabe que Hitler está intimamente entrelaçado com as raízes de sua identidade. A 20 de novembro de 1952, escreve: “Seja qual for o rumo de minha vida no futuro, sempre que meu nome for mencionado, todos pensarão em Hitler. Nunca terei uma existência independente. E às vezes vejo-me aos setenta anos, os filhos adultos faz muito tempo, os netos crescendo, e aonde eu for vão me perguntar apenas sobre Hitler”. Três anos antes, Speer reflete sobre a lógica predestinada de seu encontro com o Mestre: “Eu via Hitler acima de tudo como o preservador do mundo do século xix, contra aquele mundo metropolitano inquietante que eu temia que se estendesse no futuro de todos nós. Sob essa luz, posso ter realmente esperado por Hitler. Além disso — o que o justifica ainda mais —, ele me transmitiu uma força que me elevou muito acima dos limites de minhas potencialidades. Se assim é, não posso dizer que ele me afastou de mim: pelo contrário, foi através dele que encontrei pela primeira vez um fortalecimento de minha identidade”.

No interminável túnel dos dias na prisão, Speer tenta chegar a um retrato nítido do homem que ergueu e esmagou sua vida. Se havia crueldade — embora de uma espécie estranhamente abstrata, indiferente —, megalomania, vulgaridade grosseria, autopiedade, uma falsidade para além do âmbito humano normal, havia também o exato contrário. Speer conhecia Hitler como “solícito páter-famílias, um superior generoso, amigável, dotado de autocontrole, orgulhoso, capaz de se entusiasmar com a beleza e a grandeza”. Este último ponto persegue Speer. As políticas de Hitler nas artes e na arquitetura podiam nascer de uma miopia brutal. Mas, em outros momentos, havia clarões de um verdadeiro discernimento, altos voos de criatividade e erudição. O carisma do homem era profundo, gélido, ao mesmo tempo magnético e paralisante. E assim era também sua perspicácia intelectual em relação à tática política, ao domínio retórico, à penetração psicológica dos atores cansados ou corruptos naquele teatro de sombras, que o encaravam no país ou no exterior. “Ele realmente vinha de outro mundo. […] Todos os militares tinham aprendido a lidar com uma grande variedade de situações incomuns. Mas estavam totalmente despreparados para lidar com esse visionário.”

Não há nada de novo nisso. Outros testemunhos converteram em rotina a imagem do pesadelo. Mas, quando procura diagnosticar o antissemitismo de Hitler, Speer toca de fato em questões de primeira importância. Mal consegue lembrar uma única conversa que tenha tido com Hitler sobre o tema (no miasma nauseabundo das conversas de Hitler à mesa, dificilmente encontramos alguma alusão ao mundo dos campos de concentração). Mas, vasculhando mais detidamente os grandes destroços da memória, Speer chega à conclusão de que o ódio aos judeus era o eixo absoluto, o pivô inabalável do próprio ser de Hitler. A totalidade da política e dos planos de guerra de Hitler “era mera camuflagem deste verdadeiro fator motivador”. Refletindo sobre o testamento de Hitler, com sua visão apocalíptica da culpa dos judeus pela guerra e do extermínio do judaísmo europeu, Speer vem a entender que, para o Führer, este extermínio era mais importante do que a vitória ou a sobrevivência da nação alemã.

Os historiadores racionalistas discutem esse ponto. Têm se empenhado em encontrar um quadro econômico-estratégico “normal” para a carreira de Hitler. Speer está muito mais próximo da verdade. Não há muito como entender o fenômeno Hitler — seu feitiço venenoso e a enormidade da autodestruição — se não se concentrar rigorosamente o foco sobre o tema central do antissemitismo. De alguma maneira tenebrosa, Hitler via na união messiânica do povo judeu, em seu isolamento dos demais, na metáfora de serem “os eleitos”, um contrapeso inabalável que escarnecia de seus mais íntimos impulsos. Ao proclamar que o nazismo e o judaísmo não podiam coexistir, que um dos dois devia ser aniquilado num confronto final, estava afirmando uma verdade alucinada. Ao saber do julgamento de Eichmann e da quantidade sempre maior de provas do Holocausto, Speer anota que seu próprio desejo de sair da prisão lhe parece “quase absurdo”.

Mas o desejo persistiu, claro. Este é o ponto central de toda a literatura do cárcere: a esperança contra todas as esperanças de que mais de 7 mil dias inalteráveis vão se passar e será possível atribuir ao tempo algum sentido ou algum feitio consolador num vácuo de vinte invernos. A asfixia de Speer apenas piorava com os surtos de boatos que se sucediam. John McCloy, o alto-comissário dos eua para a Alemanha, estava fazendo pressão para a soltura ou a redução da pena; Adenauer estava solidário com ele; o Departamento de Relações Exteriores da Inglaterra tinha abordado os russos. Certamente a Guerra Fria levaria à evacuação de Spandau e a uma avaliação mais oportuna dos crimes de Speer. Por que as potências ocidentais deixariam o grande gênio dos armamentos alemães apodrecer na cadeia, quando elas mesmas estavam remilitarizando a Alemanha? Mas, uma a uma, as esperanças se revelavam falsas, e Speer veio a se resignar com a certeza de que teria de cumprir sua pena até a última e quase inimaginável meia-noite.

Ele manteve a sanidade por meios consagrados nos anais do sepultamento em vida. Diariamente fazia caminhadas vigorosas pelos terrenos de Spandau, mantendo uma contagem exata das distâncias percorridas. No final, ele tinha andado 31.936 quilômetros. Mas essa marcha forçada não se resumia a um exercício abstrato. Speer se imaginava andando pelo globo, saindo da Europa, passando pelo Oriente Médio, chegando à China e ao estreito de Bering, então descendo e atravessando o México. Enquanto andava, invocava com os olhos do espírito tudo o que sabia sobre as paisagens, a arquitetura, o clima dos lugares por onde estava passando imaginariamente. “Já estou bem adiantado na Índia”, diz uma anotação típica do diário, “e segundo a programação chegarei a Benares em cinco meses.” E havia também o jardim da prisão. Da primavera de 1959 em diante, Speer passou a devotar cada vez mais tempo e energia ao trabalho de jardinagem. Cada arbusto, cada canteiro se converteu em objeto de persistente atenção e dedicação: “Spandau se tornou um sentido em si. Muito tempo atrás, tive de organizar minha sobrevivência aqui. Não é mais necessário. O jardim se apoderou totalmente de mim”.

Speer era um leitor incansável: história, filosofia, literatura e, algo um tanto sinistro, livros sobre acontecimentos nos quais ele mesmo tinha desempenhado papéis drásticos. Depois de lhe permitirem o acesso a revistas de arquitetura e engenharia, ele se esforçou em retomar suas habilidades e em manter alguma espécie de contato com o mundo em transformação lá fora. Speer fazia projetos residenciais, muito apreciados por seus carcereiros russos, perfis e contornos de monumentos agora em ruínas, e de vez em quando desenhava estranhas cenas alegóricas, de uma solidão gritante. Mais que tudo, ele escrevia, milhares e milhares de páginas. Foi esse fio sólido que lhe sustentou a razão.

Mesmo assim, era acometido de acessos de desespero e chegava à beira da loucura: no final do décimo ano, quando os almirantes Dönitz e Raeder foram libertados depois de cumprir a pena; em junho de 1961, quando o medo de ter perdido uma de suas cartas clandestinas se converteu em pânico descontrolado. Quando parecia iminente o colapso nervoso, Speer se entregava a uma “cura pelo sono”, permitindo-se três semanas de soníferos que lhe garantiam noites bem dormidas e dias vagos e indistintos. Mas ele recorria principalmente à sua tremenda resistência. Depois de uma semana numa solitária, sentado imóvel durante onze horas diante das paredes nuas, Speer saiu “disposto como no primeiro dia”.

Os expedientes usados pelas autoridades aliadas — agindo, claro, em nome da humanidade ultrajada — nem sempre são de leitura edificante. Depois de onze anos de encarceramento, Speer pediu tela e tinta a óleo. Essa perigosa solicitação foi negada. Os prisioneiros nunca eram tratados pelo nome — apenas pelo número que traziam nas costas —, pois chamar um homem pelo nome é honrá-lo em sua humanidade. As visitas dos parentes eram curtas e esparsas. Deviam ocorrer na presença de observadores soviéticos, americanos, franceses e britânicos.

Passaram-se dezesseis anos antes que Speer, graças a um bondoso descuido, pudesse ter um momento a sós com a esposa. Na ocasião, ele estava entorpecido demais até para lhe tocar a mão. Há vários estereótipos nacionais caracterizando os diversos carcereiros e encarregados da prisão (o controle de Spandau tem um rodízio mensal entre as quatro potências ocupantes). Os ingleses são meticulosos. Os franceses ostentam uma arrogância fácil. A inocência e a espontaneidade americana frequentemente têm uma ponta de brutalidade. Em todo “mês russo”, a dieta da prisão despenca verticalmente. Mas o pessoal soviético é avidamente letrado. Enquanto os colegas ocidentais folheiam histórias de detetives ou cabeceiam de sono em cima de palavras cruzadas, os russos em Spandau estudam química, física e matemática, ou leem Dickens, Jack London e Tolstói. Dependendo das oscilações da Guerra Fria, as relações entre os aliados no cárcere ficam tensas ou se distendem, e os prisioneiros são tratados de acordo com essas variações. Na crise dos mísseis em Cuba, a tensão dá aos prisioneiros um centro de gravidade. É o guarda russo que traz as notícias de paz.

São instantâneos como estes, risíveis e trágicos, que tornam suportáveis essas páginas claustrofóbicas. Speer tem olho treinado. Em Nuremberg, ele passa pelas celas de seus colegas à espera da forca: “Como prescrevem as regras, estão na maioria deitados de costas, as mãos por cima do lençol, a cabeça virada para o outro lado. Uma visão fantasmagórica, todos eles na imobilidade; é como se já estivessem no caixão”. No inverno de 1953, o prisioneiro número 3, Konstantin von Neurath, por algum tempo ministro das Relações Exteriores de Hitler, recebe uma poltrona (a saúde do velho estava se deteriorando). Speer reconhece a poltrona: era uma peça que ele tinha projetado para a Chancelaria de Berlim, em 1938. “O forro adamascado está em farrapos, o brilho desbotado, o verniz riscado, mas ainda gosto das proporções, sobretudo da curva das pernas de trás.” As orgulhosas monstruosidades que Speer tinha construído para o Reich, os pilares em vermelho vivo e os pórticos do triunfo em mármore, caíram no esquecimento. Restam duas coisas: a lembrança da impalpável “catedral de gelo” que Speer criou usando as faixas de luz de 130 holofotes durante uma reunião do partido em Nuremberg, e essa poltrona.

Conforme se aproxima a data da libertação, o espírito de Speer começa a lhe pregar peças sinistras. Deixa de ouvir rádio. Manda que a família interrompa toda a correspondência. Sonhos vívidos lhe dizem que nunca voltará ao lar, que a vida que não viveu nunca poderá se converter em algo bom. Faltam três dias: mais uma vez arranca as ervas daninhas do jardim, para que tudo fique em perfeita ordem. Ele sente, como todo prisioneiro de sentença longa, que o relacionamento com a prisão se tornou “semierótico”, que, de alguma maneira absurda, não quer mais sair do caixão do qual se assenhoreou. No último dia, aguardando sua soltura e a de Schirach, Speer acrescenta dez quilômetros à sua viagem pelo mundo. O clímax é um toque de terror e desolação humana que supera qualquer ficção. Estão descarregando grandes montes de carvão no pátio da prisão. Speer fica ao lado de Hess, olhando: “Então Hess disse: ‘Tanto carvão. E a partir de amanhã só para mim’”. Era 30 de setembro de 1966. O velho rufião alucinado, que não chegou a se envolver na pior das atrocidades nazistas pois tinha fugido para a Escócia, ainda está em Spandau, sozinho, guardado por quatro exércitos em miniatura e 38 mil metros cúbicos de espaço murado. As potências ocidentais insistem há tempos que seja libertado. A União Soviética não aceita, para não perder o único ponto militar que ocupa em Berlim Ocidental. Nossa aquiescência à chantagem russa em tal nível de desumanidade está além de qualquer comentário.

Mas dito isso, e reconhecida a força da narrativa e da sobrevivência de Speer, cumpre frisar mais um ponto. Em Spandau havia livros, música, cartas da família, atendimento médico. Em três de quatro meses, a comida era excelente. Havia água quente para o banho, um jardim para cuidar. Ninguém era açoitado, ninguém era mergulhado em excrementos, ninguém era queimado pedacinho por pedacinho até se converter em cinzas. Em suma, vinte anos em Spandau eram literalmente um paraíso em comparação a um único dia em Belsen, Majdanek, Auschwitz ou qualquer uma das centenas de antecâmaras do Inferno construídas pelo regime a que Albert Speer serviu com tanto garbo. A força, a dor deste livro consiste em termos de lembrá-lo a nós mesmos, se não a ele (que agora afirma saber disso). Mas lembrar não basta. Não é apenas em comparação a Belsen que Spandau parece uma estação de repouso: em comparação ao gulag, às prisões psiquiátricas soviéticas, aos cárceres do Chile e aos indizíveis campos de morte da Indonésia, Speer foi apenas um dos construtores — mesmo que, talvez, o mais severamente punido. A arquitetura da morte ainda prospera.
George Steiner, "Tigres no Espelho e Outros Textos"