domingo, 8 de junho de 2025

Pensamento do Dia

 


De trem, vapor e saudade


Nada jamais acontece duas vezes do mesmo modo. Mas há dias em que as lembranças voltam com a precisão de um apito: cortam o ar, e nos atravessam.

Wislawa Szymborska, "Poemas"

Houve um tempo em que Pirapora era mais travessia que destino. Década de 1960: cidade encruzilhada, acostumada a despedidas. Os trilhos e o rio eram suas veias abertas. Trens e vapores chegavam, apitavam, partiam. Conduziam sonhos, malas, esperanças, desassossegos. Muitos iam, outros voltavam. Alguns ficavam. Esses últimos plantavam raízes na areia do tempo e transformavam o próprio suor em cimento de cidade.

Era uma terra que vivia ao som dos chamados. O apito do trem, despontando no Cerradinho. O apito do vapor, na curva do São Francisco. A cidade se movia conforme esses sons. Cada embarque era uma cena. Cada chegada, um alvoroço. A lógica dos trilhos era razoavelmente previsível. A do rio, jamais: vapor tem hora de partir, não de chegar. E quem esperava, aprendia a esperar.

Nos sobrados e nas varandas, corações batiam em compasso com os passos. Esperava-se o pai, o noivo, o filho. A mãe, o irmão, a esposa. Notícias vinham às vezes em radiograma — redigido com sobriedade por seu Vigilato Chagas, radiotelegrafista da Navegação, decifrado com ansiedade por todos nós. Era pouco, mas bastava: sabíamos o dia, podíamos imaginar a hora onde o vapor passara, onde estaria. E com esse cálculo, corríamos a avisar familiares de outros tripulantes.

Por um tempo, os vapores obedeciam à cadência dos dias para as partidas para Juazeiro: o “São Francisco”, no dia 7; o “Antônio Nascimento”, no 14; o “São Salvador”, no 21; o “Benjamim Guimarães”, no 28. O “Otávio Carneiro”, o do apito mais bonito, ficava em alerta, como sentinela do cais. O “Wenceslau Braz”, resguardando-se para os turistas. E havia o “Siqueira Campos”, sempre no dia 4, partindo com altivez para o Rio Corrente, rio de águas claras, rumo a Santa Maria da Vitória. Ainda vejo a reinauguração desse vapor: meu pai e a tripulação em fardas brancas, impecáveis, passadas a ferro de brasa. A garrafa de champagne estilhaçada pela esposa do Capitão Esmeraldo — cujo nome, infelizmente não lembro, mas cujo gesto permanece. Também presente, e parecia feliz, o Comandante Ramalho, diretor presidente da Franave.

A estação ferroviária era, por si só, um universo. O trem, ora madrugador, ora noturno, desenhava rotinas, o percurso era longo demais para que não se atrasasse. Táxis, carroças, meninos de pés rachados correndo atrás de malas. Um cruzeiro e um sorriso — pagamento insuficiente para carregar o pesado mundo de alguém. Daquelas janelas saíam rostos cansados e felizes. Lá no Cerradinho, o apito ecoava e surgiam moradores, figuras de um tempo encantado, nossos maluquinhos: Jacarepaguá, Angu-sem-sal, Porco Batuta, Joana Tantã, Júlia Doida… Gente da rua e do sonho, que nos acenava com a alma, figuras eternamente lembradas.

A mim, cabia-me uma honra: buscar o “Estado de Minas” no “Bar e Mercearia Colúmbia”, do Sr. Waldemar Guimarães. Era o trem quem o trazia, sempre atrasado, mas aguardado com fé. Enquanto o jornal não chegava, meus olhos se perdiam nos gibis — que meu pai, generoso, comprava sem hesitar. Comprava também a Revista do Esporte, a Revista do Rádio, a Vamos Cantar, que trazia as letras das canções que ouvíamos no rádio da sala.

Foi assim que aprendi a ler o mundo. E a me despedir dele. Pois da mesma estação partia o trem que levava minha mãe, tantas vezes, para o Sanatório Imaculada Conceição, em Belo Horizonte, ou ao Santa Tereza, no longínquo Rio de Janeiro. A tuberculose não levava só pulmões — levava presenças, instalava o preconceito, a segregação, impedia o contato. Quando era ela que partia, ficávamos com as mãos no ar, tentando deter o inevitável. Quando era meu pai que ia ao seu encontro, o adeus era com lágrimas e silêncios. Intuíamos, ainda sem conhecer Hermann Hesse, que “cada vez pode ser a última”.

Depois, tudo mudou. O progresso não pede licença. Vieram as rodovias. Os caminhões. Os ônibus. A pressa. O silêncio. Trem e vapor foram vencidos. Pirapora, enfim, ficou quieta.

Hoje, resta o eco. A memória do “Otávio Carneiro”, e o som do seu apito cortando a curva do rio. A imagem do trem surgindo no horizonte, como se ainda nos buscasse. Nos trilhos vazios viajam fantasmas bondosos, puxando vagões de lembranças. E, se escutarmos com atenção, ainda ouviremos a locomotiva, assombrando docemente nossos sonhos.

Talvez um dia a ferrovia retorne. Não será a mesma — e nem poderia. Mas não importa. O que importa é tê-la vivido. E tê-la amado, como se ama um tempo que não volta.

José Carlos Costa

Brasilidade é apelo forte à nação

Em meio à impressão desoladora de que o país possa estar perdendo o trem da história por decomposição de um Estado cansado, carente de profunda transformação subjetiva e objetiva, a dinâmica nacional revela-se animadora. São fatos de superestrutura, despercebidos nas análises de macroestrutura, eventualmente corretas, mas alheias à rica totalidade do ser social, que inclui criatividade de formas de vida e de formatividade estética.

Pelo menos é o que acorre à mente depois de assistir ao espetáculo extraordinário de João Bosco e seu quarteto, em que se reaviva o sentimento de brasilidade, invocado por Machado de Assis no século 19. Nada do nacionalismo fechado das autocracias, mas comunhão afetiva com o território. Antes, as performances de Chico, Gil, Caetano e Betânia nos palcos já pareciam ultrapassar a categoria show de entretenimento para se configurarem como convocações à partilha da alegria coletiva que ajuda a definir brasilidade. Ao mesmo tempo, filmes como "Ainda Estou Aqui", "O Agente Secreto" e "Malês" renovam a projeção do cinema nacional.


Há quem considere superficiais abordagens desse tipo, confrontadas com crise política, penúria econômica e corrosão social por criminalidade avassaladora. Mas existe também a falência das palavras e, logo, do pensamento. O conceito de formatividade (Luigi Pareyson, "Problemas da Estética"), que dilui o rigor da diferença arte/não-arte e aproxima vida cotidiana de atividade simbólica, sugere que o acontecimento criativo possa ser uma fresta no enquadramento com que se pensa o status-quo. Às elites cevadas no usufruto patrimonialista do Estado não importa o que mudou em termos de classes e de história. Cada vez mais ricas, hoje cúmplices de religiosos fake nutridos por corrupção e lavagem, aquecem-se com brasas do pior passado.

Mas o território sempre resistiu ao Estado pela "verdade" representativa com matriz no sentimento de nação, politicamente indeterminado, embora estável em termos históricos, culturais e psicológicos. Uma estabilidade próxima da identidade humana, ou seja, do complexo vinculativo que situa o indivíduo na intersecção de sua história individual com a do grupo. No século 19, o influente intelectual francês Ernest Renan definiu nação como "princípio espiritual".

Entre nós, acontecimentos reais na dinâmica nacional apontam para brasilidade, a celebração da diversidade, como modo subjetivo de ação. Ainda sem alcance eleitoral, mas com perspectiva diferente do uso genocida que o capitalismo atual faz da degradação do Estado: show de horrores dos Poderes, com o Legislativo na vanguarda da corrupção fisiológica. Nada disso dissolve a brasilidade, o "saber manejar sonhos e catalisar energia" (Marina Silva).

A formatividade ascendente (música, audiovisual, jogos cênicos, periferias criativas, literatura, intelectualidades afros e indígenas), e não patriotismo bélico, implica sinergia do espírito do tempo com o princípio espiritual aberto à compreensão, bloqueada por conceitos anacrônicos, dos acontecimentos proativos. Esses que são guiados por ideias com lugar próprio. O Estado brasileiro formou-se sem nação, mas nela vige hoje o que no povo é de fato potente.

Gaza: o novo holocausto

Se em tempos a Faixa de Gaza era considerada uma prisão a céu aberto, hoje, em resultado dos últimos desenvolvimentos, toda a gente compreende que se transformou num cemitério a céu aberto. Há um genocídio indiscutível a decorrer em Gaza, promovido pelas forças israelitas, que estão a eliminar sistematicamente a população palestiniana, quer à bomba quer pela fome e subnutrição.

O ataque terrorista do Hamas contra israelitas e pessoas de diversas nacionalidades, a 7 de outubro de 2023, e do qual resultaram mais de 1200 mortos e 251 reféns, foi o pretexto de que Netanyahu apoiado pelos extremistas de direita precisava para iniciar o projeto de aniquilar os palestinianos do enclave.

Aliás, o projeto passa por expulsar todos os palestinianos da sua terra, mesmo na Cisjordânia, para que Israel possa apossar-se da totalidade do território, como se vê pela política dos colonatos judeus. À intenção já antes manifestada de Israel expulsar o povo palestiniano de Gaza – talvez para oferecer a Trump e à trupe que o acompanha a tal “Riviera” – acresce a ameaça de anexar partes da Cisjordânia caso a comunidade internacional prossiga na intenção de reconhecer o estado da Palestina.


A louca fuga em frente do primeiro-ministro israelita assenta em duas razões essenciais. Primeiro, a tentativa de Netanyahu escapar à prisão, devido a uma eventual condenação por corrupção, e também para manter de pé o apoio da extrema-direita religiosa que sustenta o governo. O primeiro-ministro mostra não estar minimamente interessado em negociar a libertação dos reféns que estão nas mãos do Hamas, ao contrário do que diz.

Apesar de tudo, é claro que a sociedade americana mantém uma simpatia muito especial por Israel, não só devido à influência judaica nos EUA mas sobretudo nos meios cristãos devido a uma teologia abstrusa. A ideia é que aquela terra foi dada por Deus aos descendentes de Abraão, por isso aceitam com alguma naturalidade a expulsão dos palestinianos da sua terra – que, afinal, não é deles, segundo esta visão – ou mesmo o seu extermínio. Mas incorrem em dois erros de análise básicos.

Desde logo, os antigos israelitas interpretaram o exílio babilónico, a perda de soberania para outros povos ao longo da sua história e a dispersão pelo mundo como castigo de Deus devido à sua desobediência. Ora, se o Deus de Abraão estabeleceu com ele uma aliança, ela implica direitos e deveres. Partindo do princípio de que Deus não falha, os israelitas é que falharam repetidamente para com Deus rasgando assim o antigo pacto com Abraão.

Em segundo lugar já não vivemos nos tempos do Antigo Testamento e o moderno estado de Israel, fundado em 1948, nada tem que ver com o povo hebreu dos tempos neotestamentários da lei e dos profetas. Assim, o atual país chamado Israel não tem qualquer direito divino à posse daquela terra, e ainda menos terá o direito de expulsar dela os seus habitantes.

O direito internacional tem pugnado pelo princípio dos dois estados, coisa que Israel tem sempre recusado, o que revela a sua má-fé. Apesar de os extremistas palestinianos quererem lançar os judeus ao mar, isso não é mais do que o desespero de se sentirem prisioneiros na sua própria terra.

Na carnificina de Gaza, depois de assassinar famílias inteiras e gente de todas as idades, depois de matar dezenas de milhares de crianças com as bombas israelitas e à fome e subnutrição pela recusa de deixar entrar alimentação básica, fornecida pela comunidade internacional, o governo israelita tem as mãos manchadas de sangue. A macabra contabilidade já vai em mais de 54 mil mortos e 123 mil feridos. Talvez fosse boa ideia lerem o que escreveu o profeta Jeremias: “A língua do que mama fica pegada pela sede ao seu paladar, os meninos pedem pão, e ninguém lho reparte” (Lamentações 4:4).

É estranho que o povo que sofreu um holocausto brutal há oitenta anos pela besta nazi esteja agora a fazer o mesmo a outro povo. É estranho que um povo que se saúda com a palavra Shalom (Paz) esteja a bombardear escolas, hospitais, habitações e a reduzir a escombros toda uma comunidade étnica. E é estranho que um povo que viu o seu primeiro-ministro Yitzhak Rabin ser assassinado em 1995 por um jovem judeu extremista, apenas por ter iniciado o caminho da paz, esteja agora a justificar o genocídio palestiniano com os extremistas do Hamas.

Se o mundo se está a tornar um lugar cada vez mais estranho, é igualmente estranho não conseguir ver que Gaza é, de facto, o novo holocausto.

O homem, a guerra, o desastre e o infortúnio

Que estranho bicho o homem. O que ele mais deseja no convívio inter-humano não é afinal a paz, a concórdia, o sossego coletivo. O que ele deseja realmente é a guerra, o risco ao menos disso, e no fundo o desastre, o infortúnio. Ele não foi feito para a conquista de seja o que for, mas só para o conquistar seja o que for. Poucos homens afirmaram que a guerra é um bem (Hegel, por exemplo), mas é isso que no fundo desejam. A guerra é o perigo, o desafio ao destino, a possibilidade de triunfo, mas sobretudo a inquietação em ação. Da paz se diz que é podre, porque é o estarmos recaídos sobre nós, a inatividade, a derrota que sobrevém não apenas ao que ficou derrotado, mas ainda ou sobretudo ao que venceu. O que ficou derrotado é o mais feliz pela necessidade iniludível de tentar de novo a sorte. Mas o que venceu não tem paz senão por algum tempo no seu coração alvoroçado. A guerra é o estado natural do bicho humano, ele não pode suportar a felicidade a que aspirou. Como o grupo de futebol, qualquer vitória alcançada é o estímulo insuportável para vencer outra vez.

Imaginar o mundo pacificado em aceitação e contentamento consigo é apenas o mito que justifique a continuação da guerra. A paz é insuportável como a pasmaceira. Nas situações mais vulgares, nós vemos a imperiosa necessidade de desafiar, irritar, provocar, agredir, sem razão nenhuma que não seja a de agitar a quietude, destruir a estagnação, fazer surgir o risco, a aventura. É o que leva o jogador a jogar, mesmo que não necessite de ganhar, pelo puro prazer de saborear o poder perder para a hipótese de não perder e ganhar. A excelência de nós próprios só se entende se se afirmar sobre o que o não é.

Numa sociedade de ricaços ninguém era feliz. Seria então necessário que por qualquer coisa houvesse alguns felizes sobre a infelicidade dos outros. O homem é o lobo do homem para que este possa ser o cordeiro daquele. Nenhuma luta se destina a criar a justiça, mas apenas a instaurar a injustiça. O homem é um ser sem remédio. Todo o remédio que ele quiser inventar é só para sobrepor a razão ao irracional que de fato é. Toda a história das guerras é uma parada de comédia para iludir a sua invencível condição de tragédia. A verdade dele é o crime. E tudo o mais é um pretexto para o disfarçar. A fábula do lobo e do cordeiro já disse tudo. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais imaginação para inventar razões. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais hábitos de educação. E a razão é uma forma de sermos educados.

Vergílio Ferreira, "Conta-Corrente IV"

A ideologia do Fascismo

A Democracia vem de ideias. Rousseau disse que a única maneira do homem fugir da “barbárie” é o “Contrato Social”, com representatividade e distribuição de renda, em objetivos não alcançados. E Marx preconizou o Socialismo, onde, na plenitude da igualdade social, o homem iria “caçar de manhã, pescar à tarde, criar gado à noite, e exercer a crítica após o jantar”, na utopia que nunca ocorreu. E quando os dois falham, surge o Fascismo, do Socialismo que não levou à igualdade, e da Democracia que não distribuiu renda.

O Fascismo não tem ideologia própria, mas o pragmatismo, que se apropria de ideias conjunturais. O Fascismo ocorre quando as classes médias são comprimidas, como hoje, sujeitas à fúria de líderes despóticos.


Georg Simmel, um dos mais importantes teóricos do pensamento social, contemporâneo de Freud, em “Philosophie des Geldes” (“A Filosofia do Dinheiro”), diz que o liderado precisa de um líder para que possa “se eximir da responsabilidade da ação social”. E que, às vezes, “o mestre torna-se escravo de seus próprios escravos”, na simbiose entre o líder e os liderados.

Compatível com este paradigma, Albert Speer, Arquiteto e Ideólogo da Alemanha Nazista, em “Inside the Third Reich”, escreveu que “Hitler e Goebbels foram, de fato, moldados pela própria multidão. Certamente, as massas rugiam ao ritmo da batuta de Hitler e Goebbels; mas eles não eram os verdadeiros maestros. A multidão determinava o tema. Para compensar a miséria, a insegurança, o desemprego e a desesperança, essa assembleia anônima chafurdava por horas a fio em obsessões, selvageria e licenciosidade. A infelicidade pessoal causada pelo colapso da economia foi substituída por um frenesi que exigia vítimas. Ao atacar seus oponentes e difamar os judeus, eles deram expressão e direção a ferozes paixões primárias”.

O Fascismo se antepõe à cultura e ao raciocínio lógico. Como expresso na fala de Hans Jost, durante a ascensão do Nazismo, “quando ouço alguém falar em cultura, lanço logo a mão a minha arma”. E Goebbels, Ministro da Propaganda de Hitler, disse que “uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”.

As ações de Trump contra a cultura e Harvard expressam a profunda anemia na maior Democracia que a história já teve, tão admirada por tantos nós. Harvard expressa o projeto de uma nação, com 21 mil Alunos, 2.400 Professores, e 163 Prêmios Nobel. Lá estudaram David Rockefeller, Bill Gates, Mark Zuckerberg, Frank D. Roosevelt, John Kennedy, George Bush, Barack Obama, Pierre Trudeau (Primeiro Ministro do Canadá), Mary Robinson (Presidente da Irlanda), Oppenheimer, T. S. Eliot, Talcott Parsons, Leonard Bernstein, Jack Lemmon, Matt Damon, e outros tantos. Harvard é grande porque ali está o mundo. By the way, lá estudam a futura Rainha da Bélgica e a filha do Primeiro Ministro do Canadá, hoje com os seus vistos ameaçados.


E assim vamos nós, da frente pra trás.

“Oh Deus, oh dor”!