sábado, 1 de abril de 2017
Como se não houvesse amanhã
Sem falar no prejuízo descomunal, todos querermos saber: num país onde o Estado babá se mete em tudo e nem permite saleiro em mesa de restaurante por alegações higiênicas, como acontece esse escândalo da carne adulterada? Como esses fiscais são nomeados? Por concurso? Como são controlados? Como há essa promiscuidade com a política e financiadores de campanhas?
Sensacionalismo à parte (e não há como negar que houve nesse caso), quanto mais descobrimos sobre a corrupção, mais constatamos que não nos roubaram só dinheiro. Estão roubando nossos valores. De forma mais evidente, pela mentira — celebrada neste 1º de abril em seu dia internacional. Mas a toda hora vemos que roubam também outros aspectos de nossa dignidade: o respeito pelo próximo, a responsabilidade de cada um se recusar a fazer o mal. O desgaste moral acarreta o menosprezo do outro como indivíduo, por mais que se adote um falso discurso de idealização dos outros como coletivo. Lorota, balela.
Como se chega a esse ponto? Como tanta gente sem caráter tem poder? Como é que alguém adultera alimentos e corrompe fiscais? Como falsificam remédios e enganam doentes? Como entregam obras de engenharia sem segurança (de ciclovias a barragens)? Como prefeituras fazem vista grossa e permitem que lugares públicos recebam centenas de jovens para se divertir sem lhes dar garantias de poder sair rápido em caso de emergência? Como qualquer um constrói nas encostas com risco de ser levado por enxurradas e deslizamentos? Como não há controle de quem derruba parede ao reformar imóvel, mesmo ao risco de que o prédio desabe ? Como perseguem quem se recusa a entrar no esquema? Como fiscal se vende dessa maneira? Como ninguém dá incertas para fiscalizar fiscais?
Há países em que a fiscalização dos fiscais fica a cargo das seguradoras — as mais interessadas em não ter de pagar indenizações milionárias se houver um desastre. Em outros, contratam-se universidades que recebem e são responsáveis pelo serviço. Mas quando não há risco de punições efetivas, ninguém se preocupa com isso. Sobretudo, em meio a tanta promiscuidade com políticos e seus apoiadores.
Não pode dar certo um país com essa rejeição dos valores morais, esse desprezo pelas consequências da ganância, esse imediatismo egoísta que trata os semelhantes como descartáveis.
Já há uns 13 anos o psicanalista Jurandir Freire Costa detectava os sinais desse processo. Alertou em livros e palestras sobre a corrosão dos valores éticos e da autoridade, definida como um poder que emana do respeito e da reverência, reconhecidos como fonte legítima pelo grupo social. Sem que em momento algum isso se confunda com autoritarismo. Seria encarnada em três instâncias: a justiça, a tradição, as figuras tutelares — como os anciãos de sociedades tribais, em condições de dar orientação ao grupo e servir de exemplo. Comentando quanto a crise moral estava ficando séria, Freire Costa a situou na raiz de nossa desordem e caos, pela falência de valores humanísticos que nos norteassem. De lá para cá, não melhorou.
Há uma percepção de que a Justiça é lenta, burocrática, ausente, serve aos poderosos e não funciona para punir políticos, já que o foro privilegiado protege a corrosão moral. Mesmo assim, ainda é a instância mais forte das esperanças éticas do país, entre o STF, a PGR, a Lava-Jato e diferentes operações policiais.
A tradição, encarnada na educação, na família, nas religiões, se esfacelou e deixou de dar limites e transmitir modelos. Também deixou de oferecer segurança e proteção, de apontar caminhos e preparar para decisões. Passou a ser vista como algo careta, a ser desrespeitado, criticado e desconsiderado, em discurso que a associa à cultura elitista e a uma execrável exploração econômica, como se houvesse relação direta entre uma coisa e outra. Mas não se execra o ideal do consumismo, a compulsão pela felicidade sensorial ou as condutas predatórias de quem quer se dar bem já, às custas dos outros.
Quanto às figuras tutelares, na sociedade midiática são substituídas por celebridades. Tudo caminha para focar apenas o instante e o imediato, sem medir consequências dos atos, como se não houvesse amanhã. É uma marcha insensata para abolir o tempo e tudo o que a ele se associe: a herança histórica, os corpos com idade, as construções lentas e progressivas, a necessidade do coletivo e gradativo, a compreensão do esforço, a elaboração do consenso, a renúncia tendo em vista um objetivo.
Para isso, a cegueira do imediatismo recusa faxinas e se preocupa em salvar a própria pele com autoanistias. Refuta matemática e se pendura em palavras de ordem e slogans. Nega a razão, combate privatizações e reformas indispensáveis. Prefere que a conta seja paga pelas crianças sem boa escola, ou pelos idosos de amanhã (talvez elas, de novo) ao barrar a viabilidade de sua aposentadoria.
Está doendo na carne, é verdade. Mas se ao menos aprendêssemos alguma coisa com este pesadelo...
Ana Maria Machado
Sensacionalismo à parte (e não há como negar que houve nesse caso), quanto mais descobrimos sobre a corrupção, mais constatamos que não nos roubaram só dinheiro. Estão roubando nossos valores. De forma mais evidente, pela mentira — celebrada neste 1º de abril em seu dia internacional. Mas a toda hora vemos que roubam também outros aspectos de nossa dignidade: o respeito pelo próximo, a responsabilidade de cada um se recusar a fazer o mal. O desgaste moral acarreta o menosprezo do outro como indivíduo, por mais que se adote um falso discurso de idealização dos outros como coletivo. Lorota, balela.
Como se chega a esse ponto? Como tanta gente sem caráter tem poder? Como é que alguém adultera alimentos e corrompe fiscais? Como falsificam remédios e enganam doentes? Como entregam obras de engenharia sem segurança (de ciclovias a barragens)? Como prefeituras fazem vista grossa e permitem que lugares públicos recebam centenas de jovens para se divertir sem lhes dar garantias de poder sair rápido em caso de emergência? Como qualquer um constrói nas encostas com risco de ser levado por enxurradas e deslizamentos? Como não há controle de quem derruba parede ao reformar imóvel, mesmo ao risco de que o prédio desabe ? Como perseguem quem se recusa a entrar no esquema? Como fiscal se vende dessa maneira? Como ninguém dá incertas para fiscalizar fiscais?
Há países em que a fiscalização dos fiscais fica a cargo das seguradoras — as mais interessadas em não ter de pagar indenizações milionárias se houver um desastre. Em outros, contratam-se universidades que recebem e são responsáveis pelo serviço. Mas quando não há risco de punições efetivas, ninguém se preocupa com isso. Sobretudo, em meio a tanta promiscuidade com políticos e seus apoiadores.
Não pode dar certo um país com essa rejeição dos valores morais, esse desprezo pelas consequências da ganância, esse imediatismo egoísta que trata os semelhantes como descartáveis.
Já há uns 13 anos o psicanalista Jurandir Freire Costa detectava os sinais desse processo. Alertou em livros e palestras sobre a corrosão dos valores éticos e da autoridade, definida como um poder que emana do respeito e da reverência, reconhecidos como fonte legítima pelo grupo social. Sem que em momento algum isso se confunda com autoritarismo. Seria encarnada em três instâncias: a justiça, a tradição, as figuras tutelares — como os anciãos de sociedades tribais, em condições de dar orientação ao grupo e servir de exemplo. Comentando quanto a crise moral estava ficando séria, Freire Costa a situou na raiz de nossa desordem e caos, pela falência de valores humanísticos que nos norteassem. De lá para cá, não melhorou.
Há uma percepção de que a Justiça é lenta, burocrática, ausente, serve aos poderosos e não funciona para punir políticos, já que o foro privilegiado protege a corrosão moral. Mesmo assim, ainda é a instância mais forte das esperanças éticas do país, entre o STF, a PGR, a Lava-Jato e diferentes operações policiais.
A tradição, encarnada na educação, na família, nas religiões, se esfacelou e deixou de dar limites e transmitir modelos. Também deixou de oferecer segurança e proteção, de apontar caminhos e preparar para decisões. Passou a ser vista como algo careta, a ser desrespeitado, criticado e desconsiderado, em discurso que a associa à cultura elitista e a uma execrável exploração econômica, como se houvesse relação direta entre uma coisa e outra. Mas não se execra o ideal do consumismo, a compulsão pela felicidade sensorial ou as condutas predatórias de quem quer se dar bem já, às custas dos outros.
Quanto às figuras tutelares, na sociedade midiática são substituídas por celebridades. Tudo caminha para focar apenas o instante e o imediato, sem medir consequências dos atos, como se não houvesse amanhã. É uma marcha insensata para abolir o tempo e tudo o que a ele se associe: a herança histórica, os corpos com idade, as construções lentas e progressivas, a necessidade do coletivo e gradativo, a compreensão do esforço, a elaboração do consenso, a renúncia tendo em vista um objetivo.
Para isso, a cegueira do imediatismo recusa faxinas e se preocupa em salvar a própria pele com autoanistias. Refuta matemática e se pendura em palavras de ordem e slogans. Nega a razão, combate privatizações e reformas indispensáveis. Prefere que a conta seja paga pelas crianças sem boa escola, ou pelos idosos de amanhã (talvez elas, de novo) ao barrar a viabilidade de sua aposentadoria.
Está doendo na carne, é verdade. Mas se ao menos aprendêssemos alguma coisa com este pesadelo...
Ana Maria Machado
A verdade da pós-verdade
Há palavras que se tornam senhas. E muitos as repetem sem saber bem por quê: para se enquadrar no seu tempo, suponhamos. Agora, por exemplo, pós-verdade: ao que parece, é como se este ano os políticos tivessem começado a manipular a informação e, por meio da informação, as pessoas. Edward Bernays teria rido às gargalhadas.
Edward Bernays nascera em Viena e em 1891. Sua mãe era irmã de Sigmund Freud; seu pai, irmão da esposa de Sigmund Freud: era sobrinho de Freud por todos os lados. Mas seus pais emigraram para Nova York pouco depois; sua relação com seu grande tio foi distante e frutífera.
Muito jovem, ainda estudante em Cornell, começou a lê-lo. Dessas leituras herdou a ideia de que os homens reprimem instintos obscuros, perigosos, sempre ameaçadores – e, de outras e de si mesmo, a convicção de que é necessário conduzir os homens transformados em massa para que esses instintos não produzam as piores catástrofes. Não que não acreditasse na democracia, dizia, e no direito de escolher. Suponha que essas eleições tinham de ser guiadas por pessoas com ideias mais elevadas. Para isso era preciso desenvolver as técnicas que otimizassem essa ação.
Bernays começou a buscar maneiras de influir nas multidões. Tinha 25 anos quando propôs a Woodrow Wilson, o presidente norte-americano, que justificasse sua entrada na Primeira Guerra Mundial dizendo que a América queria “levar a democracia a toda a Europa”. Seu slogan foi um êxito absoluto. Quando a paz irrompeu, imaginou que poderia usar sua habilidade para outros fins.
Edward Bernays nascera em Viena e em 1891. Sua mãe era irmã de Sigmund Freud; seu pai, irmão da esposa de Sigmund Freud: era sobrinho de Freud por todos os lados. Mas seus pais emigraram para Nova York pouco depois; sua relação com seu grande tio foi distante e frutífera.
Bernays começou a buscar maneiras de influir nas multidões. Tinha 25 anos quando propôs a Woodrow Wilson, o presidente norte-americano, que justificasse sua entrada na Primeira Guerra Mundial dizendo que a América queria “levar a democracia a toda a Europa”. Seu slogan foi um êxito absoluto. Quando a paz irrompeu, imaginou que poderia usar sua habilidade para outros fins.
Em 1920 um fabricante de cigarros considerou que estava perdendo a metade de seu mercado –as mulheres não podiam fumar em público– e o contratou. Bernays consultou um psicanalista, que lhe disse que as mais audazes veriam o ato de fumar como uma rebelião contra o machismo. Bernays poderia ter projetado uma publicidade, mas, em vez disso, inventou uma notícia: pagou dez garotas para que fumassem em meio a um grande desfile na Quinta Avenida, disse-lhes que chamassem seus cigarros de “tochas da liberdade” e convidou jornalistas. No dia seguintem suas tochas estavam na capa de todos os jornais.
Bernays insistiu nessa linha, e avançou: montou uma empresa, ganhou muito dinheiro, escreveu livros, tornou-se uma figura de destaque –e chegou a emprestar dinheiro a seu tio em um momento de dificuldades. Não quis definir sua atividade como propaganda porque a palavra era associada com o inimigo alemão: ocorreu-lhe que poderia chamá-la de “relações públicas”. Agora, a noção de relações públicas faz parte de nossa ideia de mundo: que certas empresas ou pessoas precisam de profissionais que tornem sua imagem colorida. Bernays fazia isso para grandes corporações e, como é lógico, foi se escorando cada vez mais à direita. O anticomunismo da Guerra Fria teve nele um grande incentivador. Nos anos cinquenta trabalhou para uma empresa chamada United Fruit, que controlava países caribenhos como feudos –daí a expressão republica de bananas–, e conseguiu convencer os norte-americanos de que um presidente guatemalteco, Jacobo Árbenz, que queria cortar os privilégios dessa companhia, era um perigoso comunista. Os Estados Unidos mandaram derrubá-lo.
Edward Bernays viveu muitos anos mais e nunca deixou de escrever, aconselhar, manipular: pós-verdades de próprio punho. Morreu em 1995, aos 103 anos, entre perplexo e satisfeito: seu invento já parecia tão natural que ninguém se lembrava de que ele, certa vez, o havia inventado. (E permanece e dura: esta coluna, com seu título enganador, talvez lhe tivesse agradado).
Bernays insistiu nessa linha, e avançou: montou uma empresa, ganhou muito dinheiro, escreveu livros, tornou-se uma figura de destaque –e chegou a emprestar dinheiro a seu tio em um momento de dificuldades. Não quis definir sua atividade como propaganda porque a palavra era associada com o inimigo alemão: ocorreu-lhe que poderia chamá-la de “relações públicas”. Agora, a noção de relações públicas faz parte de nossa ideia de mundo: que certas empresas ou pessoas precisam de profissionais que tornem sua imagem colorida. Bernays fazia isso para grandes corporações e, como é lógico, foi se escorando cada vez mais à direita. O anticomunismo da Guerra Fria teve nele um grande incentivador. Nos anos cinquenta trabalhou para uma empresa chamada United Fruit, que controlava países caribenhos como feudos –daí a expressão republica de bananas–, e conseguiu convencer os norte-americanos de que um presidente guatemalteco, Jacobo Árbenz, que queria cortar os privilégios dessa companhia, era um perigoso comunista. Os Estados Unidos mandaram derrubá-lo.
Edward Bernays viveu muitos anos mais e nunca deixou de escrever, aconselhar, manipular: pós-verdades de próprio punho. Morreu em 1995, aos 103 anos, entre perplexo e satisfeito: seu invento já parecia tão natural que ninguém se lembrava de que ele, certa vez, o havia inventado. (E permanece e dura: esta coluna, com seu título enganador, talvez lhe tivesse agradado).
Reforma com democracia
Os políticos se dividem entre os que fazem contas e os que fazem de conta. O futuro está com os primeiros. Mas se querem ser democratas, precisam convencer o povo a acreditar na aritmética e na exatidão de seus números.
Poucos fatos demonstram melhor o fracasso da classe política brasileira do que a dificuldade em levar adiante a reforma da Previdência com apoio da sociedade. Não fazer a reforma é irresponsabilidade fiscal comprometendo o futuro; fazer a reforma sem a compreensão da população é a falência política comprometendo a democracia.
Estes fracassos têm origem na atual falta de legitimidade dos políticos, seja pelos privilégios que mantemos, pelo isolamento em relação aos sentimentos da população, pela corrupção, por sucessivos estelionatos eleitorais, sobretudo pela perda na capacidade de refletir com lógica e construir entendimento.
Desapareceu a política de combinar ideias e sonhos com as equações dos recursos disponíveis. Alguns grupos se unem na defesa de ilusões sem respeito aos limites fiscais; outros optam pela frieza das equações sem respeito à opinião da população.
Desapareceu o diálogo entre os grupos: o sectarismo político e a voracidade das corporações não deixam a política formular alternativas que permitam construir o futuro justo e sustentável com o apoio do povo.
A reforma da Previdência é um exemplo. Não está havendo diálogo que permita uma convergência entre os desejos e os recursos disponíveis: alguns ajustam os dados para fazer possível vender ilusões; outros se apegam aos números sem convencer a população de que a realidade exige reforma; outros não aceitam perder vantagens; grupos que se consideram de esquerda se transformam em conservadores ao defender privilégios.
Até mesmo os que não perdem com a reforma ou estão protegidos pelas regras de transição, e os jovens que terão a previdência assegurada graças à sustentabilidade adquirida estão contra a reforma.
A culpa é dos políticos preocupados apenas em garantir a base de apoio parlamentar e sem competência para convencer a população.
Sem respeitar as finanças, estamos irresponsavelmente vendendo ilusões e provocando a falência financeira da Previdência; sem o convencimento, estamos abrindo mão da democracia. Sem as reformas que o momento e o futuro exigem, a sociedade caminha para uma catástrofe sobre a geração de amanhã, mas, sem a compreensão da população de hoje, estamos provocando uma falência política. Porque, se aprovada sem entendimento, a reforma fracassará do ponto de vista democrático, mesmo que venha a equilibrar as finanças.
A política responsável e competente deve compatibilizar os propósitos sociais com os recursos disponíveis, olhando os interesses das futuras gerações e atraindo o apoio do eleitor de hoje, mesmo quando sacrificados. Sem a reforma necessária ou com a reforma sem convencimento, a população vai sofrer porque os políticos de hoje não estivemos à altura do momento, fomos incapazes de casar ideias com equação, responsabilidade com liderança.
Poucos fatos demonstram melhor o fracasso da classe política brasileira do que a dificuldade em levar adiante a reforma da Previdência com apoio da sociedade. Não fazer a reforma é irresponsabilidade fiscal comprometendo o futuro; fazer a reforma sem a compreensão da população é a falência política comprometendo a democracia.
Estes fracassos têm origem na atual falta de legitimidade dos políticos, seja pelos privilégios que mantemos, pelo isolamento em relação aos sentimentos da população, pela corrupção, por sucessivos estelionatos eleitorais, sobretudo pela perda na capacidade de refletir com lógica e construir entendimento.
Desapareceu a política de combinar ideias e sonhos com as equações dos recursos disponíveis. Alguns grupos se unem na defesa de ilusões sem respeito aos limites fiscais; outros optam pela frieza das equações sem respeito à opinião da população.
Desapareceu o diálogo entre os grupos: o sectarismo político e a voracidade das corporações não deixam a política formular alternativas que permitam construir o futuro justo e sustentável com o apoio do povo.
Até mesmo os que não perdem com a reforma ou estão protegidos pelas regras de transição, e os jovens que terão a previdência assegurada graças à sustentabilidade adquirida estão contra a reforma.
A culpa é dos políticos preocupados apenas em garantir a base de apoio parlamentar e sem competência para convencer a população.
Sem respeitar as finanças, estamos irresponsavelmente vendendo ilusões e provocando a falência financeira da Previdência; sem o convencimento, estamos abrindo mão da democracia. Sem as reformas que o momento e o futuro exigem, a sociedade caminha para uma catástrofe sobre a geração de amanhã, mas, sem a compreensão da população de hoje, estamos provocando uma falência política. Porque, se aprovada sem entendimento, a reforma fracassará do ponto de vista democrático, mesmo que venha a equilibrar as finanças.
A política responsável e competente deve compatibilizar os propósitos sociais com os recursos disponíveis, olhando os interesses das futuras gerações e atraindo o apoio do eleitor de hoje, mesmo quando sacrificados. Sem a reforma necessária ou com a reforma sem convencimento, a população vai sofrer porque os políticos de hoje não estivemos à altura do momento, fomos incapazes de casar ideias com equação, responsabilidade com liderança.
A faca e o queijo
A condenação de Eduardo Cunha a mais de 15 anos de prisão e o dobro de afastamento de atividades públicas obviamente fará suas excelências apressarem a votação de restrições a atividades de investigadores e juízes (a dita lei de abuso de autoridade) e retardarem, ou fecharem na gaveta, propostas de redução do alcance do foro por prerrogativa de função. Por óbvio: a sentença proferida no célere prazo de seis meses na primeira instância faz com que deputados e senadores necessitem do foro privilegiado como quem precisa de ar para viver. No caso deles, sobreviver pelo maior tempo possível longe de condenações.
E aqui é que o eleitorado pode fazer barba, cabelo e bigode em 2018, quando estarão em jogo as 513 cadeiras da Câmara e dois terços das vagas no Senado. Tanto importante quanto a tradicional “cola” com o nome dos candidatos em quem pretendem votar, os eleitores devem elaborar uma lista daqueles que não merecem ser votados porque buscam fazer do mandato um verdadeiro esconderijo. Nunca terá sido tão fundamental prestar atenção ao voto quanto na próxima eleição.
Caixa 2 e caixa 1
Discute-se hoje o caixa 2: seria crime ou prática tolerável, pelo costume político? Chegou-se a minimizar, no julgamento do mensalão, o caixa 2 como fato irrelevante, chamado eufemisticamente de “recursos não contabilizados”.
Trata-se, contudo, de conduta prevista no Código Eleitoral, artigo 350, como crime de falsidade ideológica na forma omissiva, consistindo o delito em “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar (...), para fins eleitorais”. A norma tutela a fidedignidade, a transparência, da contabilidade nas eleições. Visa a revelar quanto se arrecadou, a proveniência do dinheiro e como se gastou, para controle do abuso do poder econômico.
Segundo a legislação vigente por ocasião dos pleitos de 2010 e 2014 – Lei n.º 9.504/97, alterada em 2015 –, duas diversas disciplinas regravam, respectivamente, a eleição majoritária (presidente, governador e senador) e a proporcional (deputados federal e estadual). Essa lei, em seu artigo 28, § 1.º, determinava que as prestações de contas dos candidatos às eleições majoritárias deveriam ser feitas por comitê financeiro, enquanto, de acordo com o § 2.º do mesmo artigo, as prestações de contas dos candidatos às eleições proporcionais caberiam ao comitê financeiro ou ao próprio candidato.
Todavia o artigo 21 da mesma lei estabelecia haver plena solidariedade entre o candidato a cargo majoritário ou proporcional e a pessoa por ele designada para administrar financeiramente a campanha. Estatuía, então, o artigo 21: “O candidato é solidariamente responsável com a pessoa indicada na forma do art. 20 desta Lei pela veracidade das informações financeiras e contábeis de sua campanha, devendo ambos assinar a respectiva prestação de contas”.
Havia, portanto, na forma da legislação então incidente, o dever de ser feita uma prestação de contas com a indicação dos valores sabidamente recebidos e de quem, bem como das importâncias despendidas. Se assim não fosse, caracterizava-se o crime na forma omissiva, o qual constitui um não fazer o devido, tendo por objeto do querer o não realizar aquilo que reconhecidamente cabia ser feito. Todas as quantias recebidas cumpria ser contabilizadas, assim como os gastos havidos. A não contabilização constitui uma omissão relevante para fins eleitorais.
Por que se omite o registro de entrada e saída de dinheiro?
Em geral há uma coincidência de interesses. De um lado, a empresa pode pretender esconder que contribui em eleição, afastando novos pretendentes; pode, também, buscar ocultar o fato para não se indispor com candidatos concorrentes.
De sua parte, o candidato tem interesse em receber dinheiro não contabilizado para suprir gasto a se realizar por fora, no pagamento de compromissos não passíveis de ser registrados, como diárias pagas a vereadores ou a presidentes de associação de bairro na condição de cabos eleitorais. O candidato precisa de dinheiro por fora para despender por fora. Mas pode-se também deixar de contabilizar para esconder o uso de uma fortuna considerável na eleição, em valor excessivo, além do permitido. Essa forma constitui o primeiro grau do caixa 2. Há o crime de falso, sem conexão com nenhum outro tipo de delito, cuja pena pode ser de um dia a três anos de reclusão.
Mas a contribuição não contabilizada de uma empresa pode ter sido um meio de distribuição de propina, como retribuição por apoio político prestado pelo deputado, por exemplo, na aprovação de medida provisória. Aí continua o caixa 2, mas com uma agravante: a origem do dinheiro é ilícita.
Sobressai, no caso, nesse grau mais elevado de reprovabilidade do caixa 2, o crime de corrupção passiva, com a percepção de vantagem indevida para a prática de ato funcional. A propina, ao ser distribuída em período eleitoral, pode constituir, ademais, manobra tendente à ocultação do caráter ilícito da contribuição, disfarçada em doação eleitoral por fora, caracterizando eventualmente lavagem de dinheiro.
E há finalmente uma forma mais grave, objeto de julgamento recente e importante no Supremo Tribunal Federal. Trata-se do pagamento de propina por meio de contribuição eleitoral oficial (caixa 1), devidamente contabilizada. Configura-se, na hipótese, corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
O fato delituoso precedente – corrupção – constitui a fonte geradora das vantagens ilícitas, criando-se, então, relação genética entre esse crime em seus resultados financeiros e o fato posterior de ocultação ou dissimulação dessa origem, por via de doação oficial.
A ação delituosa de “lavagem de dinheiro” consiste, então, em ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, movimentação ou os valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime, visando a dar-lhes aparência de legalidade.
Assim, o comportamento consiste em tentar escamotear o caráter ilícito do bem, de forma a permitir que dele se usufrua, promovendo sua reintrodução no mercado como se lícito fosse.
Ao se fazer doação legal com dinheiro de propina, correspondente, por exemplo, a parcela de sobrepreço de contrato de estatal com empreiteira, transforma-se importância suja em valor limpo, utilizando a Justiça Eleitoral como lavanderia. A aprovação das contas pelo Tribunal Eleitoral apenas comprova o sucesso da operação de branqueamento do valor contaminado pela corrupção. O dinheiro sujo vem a ser reintroduzido no mercado mediante uso indevido da Justiça Eleitoral.
Pior é fazer pagamento fictício a gráficas para depois delas receber a importância dada.
Por via desses delitos são atingidos valores do processo democrático. Mas, agora, parlamentares anistiarem a si mesmos ou a seus chefetes, em face desses fatos, é uma afronta ao princípio da moralidade, um dos pilares da República.
Segundo a legislação vigente por ocasião dos pleitos de 2010 e 2014 – Lei n.º 9.504/97, alterada em 2015 –, duas diversas disciplinas regravam, respectivamente, a eleição majoritária (presidente, governador e senador) e a proporcional (deputados federal e estadual). Essa lei, em seu artigo 28, § 1.º, determinava que as prestações de contas dos candidatos às eleições majoritárias deveriam ser feitas por comitê financeiro, enquanto, de acordo com o § 2.º do mesmo artigo, as prestações de contas dos candidatos às eleições proporcionais caberiam ao comitê financeiro ou ao próprio candidato.
Todavia o artigo 21 da mesma lei estabelecia haver plena solidariedade entre o candidato a cargo majoritário ou proporcional e a pessoa por ele designada para administrar financeiramente a campanha. Estatuía, então, o artigo 21: “O candidato é solidariamente responsável com a pessoa indicada na forma do art. 20 desta Lei pela veracidade das informações financeiras e contábeis de sua campanha, devendo ambos assinar a respectiva prestação de contas”.
Havia, portanto, na forma da legislação então incidente, o dever de ser feita uma prestação de contas com a indicação dos valores sabidamente recebidos e de quem, bem como das importâncias despendidas. Se assim não fosse, caracterizava-se o crime na forma omissiva, o qual constitui um não fazer o devido, tendo por objeto do querer o não realizar aquilo que reconhecidamente cabia ser feito. Todas as quantias recebidas cumpria ser contabilizadas, assim como os gastos havidos. A não contabilização constitui uma omissão relevante para fins eleitorais.
Por que se omite o registro de entrada e saída de dinheiro?
Em geral há uma coincidência de interesses. De um lado, a empresa pode pretender esconder que contribui em eleição, afastando novos pretendentes; pode, também, buscar ocultar o fato para não se indispor com candidatos concorrentes.
De sua parte, o candidato tem interesse em receber dinheiro não contabilizado para suprir gasto a se realizar por fora, no pagamento de compromissos não passíveis de ser registrados, como diárias pagas a vereadores ou a presidentes de associação de bairro na condição de cabos eleitorais. O candidato precisa de dinheiro por fora para despender por fora. Mas pode-se também deixar de contabilizar para esconder o uso de uma fortuna considerável na eleição, em valor excessivo, além do permitido. Essa forma constitui o primeiro grau do caixa 2. Há o crime de falso, sem conexão com nenhum outro tipo de delito, cuja pena pode ser de um dia a três anos de reclusão.
Mas a contribuição não contabilizada de uma empresa pode ter sido um meio de distribuição de propina, como retribuição por apoio político prestado pelo deputado, por exemplo, na aprovação de medida provisória. Aí continua o caixa 2, mas com uma agravante: a origem do dinheiro é ilícita.
Sobressai, no caso, nesse grau mais elevado de reprovabilidade do caixa 2, o crime de corrupção passiva, com a percepção de vantagem indevida para a prática de ato funcional. A propina, ao ser distribuída em período eleitoral, pode constituir, ademais, manobra tendente à ocultação do caráter ilícito da contribuição, disfarçada em doação eleitoral por fora, caracterizando eventualmente lavagem de dinheiro.
E há finalmente uma forma mais grave, objeto de julgamento recente e importante no Supremo Tribunal Federal. Trata-se do pagamento de propina por meio de contribuição eleitoral oficial (caixa 1), devidamente contabilizada. Configura-se, na hipótese, corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
O fato delituoso precedente – corrupção – constitui a fonte geradora das vantagens ilícitas, criando-se, então, relação genética entre esse crime em seus resultados financeiros e o fato posterior de ocultação ou dissimulação dessa origem, por via de doação oficial.
A ação delituosa de “lavagem de dinheiro” consiste, então, em ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, movimentação ou os valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime, visando a dar-lhes aparência de legalidade.
Assim, o comportamento consiste em tentar escamotear o caráter ilícito do bem, de forma a permitir que dele se usufrua, promovendo sua reintrodução no mercado como se lícito fosse.
Ao se fazer doação legal com dinheiro de propina, correspondente, por exemplo, a parcela de sobrepreço de contrato de estatal com empreiteira, transforma-se importância suja em valor limpo, utilizando a Justiça Eleitoral como lavanderia. A aprovação das contas pelo Tribunal Eleitoral apenas comprova o sucesso da operação de branqueamento do valor contaminado pela corrupção. O dinheiro sujo vem a ser reintroduzido no mercado mediante uso indevido da Justiça Eleitoral.
Pior é fazer pagamento fictício a gráficas para depois delas receber a importância dada.
Por via desses delitos são atingidos valores do processo democrático. Mas, agora, parlamentares anistiarem a si mesmos ou a seus chefetes, em face desses fatos, é uma afronta ao princípio da moralidade, um dos pilares da República.
O diabo brasileiro
Reli, com meus alunos, “A igreja do diabo”, um dos contos mais brilhantes de Machado de Assis. Durante a discussão, tive plena consciência de como o diabo tem sido uma figura presente na minha vida.
Nasci canhoto. Fui marcado pelo lado esquerdo. Meus irmãos chutavam bola, atiravam pedra e chupavam manga com a mão direita. Por que diabos eu não era como eles e usava com naturalidade e eficiência a sinistra, em vez da santificada direita?
— Robertinho é canhoto!
A frase ressoa na minha mente, e ela se liga às histórias nas quais o caminho da esquerda, repleto de ouro e pedras preciosas (hoje seria de nomeações, propinas e dólares), era o errado; ao passo que o da direita, pobre e cheio de obstáculos, era o escolhido pelo herói. Tudo culminando com satanás tirando com a mão esquerda a alma do estudante pobre que com ele fizera um pacto para enriquecer.
Levei um bom tempo para sair dessa “alteridade” entre os “meus”. Mais tarde, e como estudante de Antropologia, fiquei fascinado ao descobrir que um antropólogo meu xará — Robert Hertz — havia estudado o simbolismo negativo universal da mão esquerda. Até que um outro francês, Louis Dumont, reviu a polaridade esquerda/direita como um dualismo completo e hierárquico no qual a esquerda — desprezada em tudo — é, contudo, a mão (ou o lado) adequada para realizar tarefas — e isso parece até uma parábola — vedadas à direita. Abençoamos com a direita, mas a mão que segura o cálice é a esquerda. Sem ela, não há alternativa ou mudança.
No catecismo, minhas relações com o demo ampliaram-se. Conhecedor dos Dez Mandamentos e da graduação dos pecados, não tinha mais como esconder que Deus era um interlocutor invisível e distante (mas onipresente); ao passo que o diabo era uma presença constante (mas evitável) na minha pequena vida. Qual era a minha igreja?
Lembro que o mito machadiano termina com um diabo desiludido. Afinal, a mesma hipocrisia e ingratidão devida a Deus é igualmente replicada para com o capeta, já que ambos são obrigados a conhecer a “eterna contradição humana”. Essa contradição que faz com que o bem e o mal, o ódio e o amor sejam nossos companheiros de viagem.
Em meio a esses nobres pensamentos, aprendi (depois de levar várias reguadas na mão esquerda) a usar as duas mãos. Cheguei ao virtuosismo de poder escolher entre uma e outra e, quando descobri que o grande Leonardo Da Vinci era um canhoto que escrevia da esquerda para a direita num código que só poderia ser decifrado com a ajuda de um espelho, decidi que usaria a esquerda nos meus encontros secretos com o demônio no banheiro; enquanto a direita seria empregada para escrever.
Como seria o diabo em outras sociedades e culturas? Em sociedades tribais, ele surge como um feiticeiro canibal que troca a noite pelo dia e pratica um egoísmo negativo que impede e destrói os elos sociais. O projeto individual sem peias canibaliza o todo. O diabo, tal como o conheço, é um simbolo das antifronteiras e das regras. Ele é um motor que enlouquece individualizando, pois entre a negativa da moralidade e o sim do interesse individual, ele dá licença para realizar todos os desejos. No caso da sociedade brasileira, o diabo é símbolo de um enriquecimento brutal, sem trabalho e por meio de propinas inacreditáveis e, por isso mesmo, diabólicas!
Basta ser eleito para enricar. O mecanismo que deveria igualar traz de volta a hierarquia. Aqui, o diabo se manifesta majoritariamente na “política”, no companheirismo e na “arte” de fazer e desfazer leis pensando nos nossos interesses.
O diabo sempre foi individualista. Nasceu da competição e de uma revolta, e vive de projetos pessoais. Ele seduz pela confusão entre a parte e o todo, que é tão dificil de perceber na maioria dos contextos humanos e jamais foi plenamente discutida no Brasil.
A “eterna ingratidão humana” do diabo de Machado de Assis é uma expressão da ambiguidade brasileira. A ingratidão humana seria a desculpa para o malfeito e a má-fé. Ela transforma em ideologia uma enorme condescendência ao lado de um profundo sentimento de culpa.
Em outras terras, outros diabos procedem de modo diverso. Não haveria ambiguidade, e ele não teria a necessidade de fundar uma igreja e de legislar sobre isso ou aquilo conforme manda a nossa índole. Ademais, nelas o demônio não perdoa ou perde. Pactos com o demo não seriam, dizem, revogáveis.
Roberto DaMatta
Nasci canhoto. Fui marcado pelo lado esquerdo. Meus irmãos chutavam bola, atiravam pedra e chupavam manga com a mão direita. Por que diabos eu não era como eles e usava com naturalidade e eficiência a sinistra, em vez da santificada direita?
— Robertinho é canhoto!
A frase ressoa na minha mente, e ela se liga às histórias nas quais o caminho da esquerda, repleto de ouro e pedras preciosas (hoje seria de nomeações, propinas e dólares), era o errado; ao passo que o da direita, pobre e cheio de obstáculos, era o escolhido pelo herói. Tudo culminando com satanás tirando com a mão esquerda a alma do estudante pobre que com ele fizera um pacto para enriquecer.
Levei um bom tempo para sair dessa “alteridade” entre os “meus”. Mais tarde, e como estudante de Antropologia, fiquei fascinado ao descobrir que um antropólogo meu xará — Robert Hertz — havia estudado o simbolismo negativo universal da mão esquerda. Até que um outro francês, Louis Dumont, reviu a polaridade esquerda/direita como um dualismo completo e hierárquico no qual a esquerda — desprezada em tudo — é, contudo, a mão (ou o lado) adequada para realizar tarefas — e isso parece até uma parábola — vedadas à direita. Abençoamos com a direita, mas a mão que segura o cálice é a esquerda. Sem ela, não há alternativa ou mudança.
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No catecismo, minhas relações com o demo ampliaram-se. Conhecedor dos Dez Mandamentos e da graduação dos pecados, não tinha mais como esconder que Deus era um interlocutor invisível e distante (mas onipresente); ao passo que o diabo era uma presença constante (mas evitável) na minha pequena vida. Qual era a minha igreja?
Lembro que o mito machadiano termina com um diabo desiludido. Afinal, a mesma hipocrisia e ingratidão devida a Deus é igualmente replicada para com o capeta, já que ambos são obrigados a conhecer a “eterna contradição humana”. Essa contradição que faz com que o bem e o mal, o ódio e o amor sejam nossos companheiros de viagem.
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Em meio a esses nobres pensamentos, aprendi (depois de levar várias reguadas na mão esquerda) a usar as duas mãos. Cheguei ao virtuosismo de poder escolher entre uma e outra e, quando descobri que o grande Leonardo Da Vinci era um canhoto que escrevia da esquerda para a direita num código que só poderia ser decifrado com a ajuda de um espelho, decidi que usaria a esquerda nos meus encontros secretos com o demônio no banheiro; enquanto a direita seria empregada para escrever.
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O diabo sempre foi individualista. Nasceu da competição e de uma revolta, e vive de projetos pessoais. Ele seduz pela confusão entre a parte e o todo, que é tão dificil de perceber na maioria dos contextos humanos e jamais foi plenamente discutida no Brasil.
A “eterna ingratidão humana” do diabo de Machado de Assis é uma expressão da ambiguidade brasileira. A ingratidão humana seria a desculpa para o malfeito e a má-fé. Ela transforma em ideologia uma enorme condescendência ao lado de um profundo sentimento de culpa.
Em outras terras, outros diabos procedem de modo diverso. Não haveria ambiguidade, e ele não teria a necessidade de fundar uma igreja e de legislar sobre isso ou aquilo conforme manda a nossa índole. Ademais, nelas o demônio não perdoa ou perde. Pactos com o demo não seriam, dizem, revogáveis.
Roberto DaMatta
Prefeito esquecido
Havia em Palmeira innumeros prefeitos: os cobradores de impostos, o commandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Municipio tinha a sua administração particular, com prefeitos coroneis e prefeitos inspectores de quarteirões. Os fiscaes, esses, resolviam questões de policia e advogavam.
Para que semelhante anomalia desapparecesse luctei com tenacidade e encontrei obstaculos dentro da Prefeitura e fóra della — dentro, uma resistencia molle, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, obliqua, carregada de bilis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam tres mezes para levar um tiro.
Dos funccionarios que encontrei em Janeiro do anno passado restam poucos: sahiram os que faziam politica e os que não faziam coisa nenhuma. Os actuaes não se mettem onde não são necessarios, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Dêvo muito a elles.
Graciliano Ramos, (Relatórios, 1929)
Cuidado com o vão
Quem já se aventurou pelo metrô de Londres certamente ouviu o aviso “mind the gap” que se repete quando uma composição para – particularmente em estações onde a plataforma de embarque é curva. Como quase todos sabem, o aviso remete ao vão entre a porta dos vagões e a plataforma, maior que o usual, que pode levar a acidentes se a recomendação não for levada devidamente a sério.
Inspirado por esse alerta, o sueco Hans Rosling escolheu o nome da Gapminder Foundation, que ele criou com seus dois filhos, em 2005. A Gapminder tem como principal objetivo ajudar na análise e compreensão de dados estatísticos dos mais diversos países e contribuir para o alcance das metas de desenvolvimento do milênio da ONU. Dentre os principais patrocinadores da Gapminder estão a Ikea Foundation e a Bill & Melinda Gates Foundation.
Para tornar viável essa missão os Roslings desenvolveram um software chamado Trendalyser, capaz de trabalhar dados de mais de 200 países. O Trendalyser permite a visualização gráfica dos dados e da evolução dos países ao longo do tempo. A ferramenta é interativa e podemos criar os gráficos de nosso interesse no site www.gapminder.org. O software mostrou-se tão impressionante que foi adquirido pelo Google, em 2007.
E por que falar de Hans Rosling neste momento? Primeiro, porque por um desses infortúnios que levam embora precocemente alguns muito bons e deixam imbecis perniciosos muito mais longevos sobre a face da Terra, ele faleceu algumas semanas atrás, aos 68 anos. Parece ser um momento adequado para ajudar a divulgar seu valioso e interessante legado. Inconformado com a ignorância sobre os fatos concretos relativos aos mais diferentes países, Rosling dizia que “a primeira coisa necessária para se pensar o futuro é conhecer o presente”. Um segundo motivo para o resgate de seu trabalho nesta hora é que essas estatísticas podem auxiliar-nos na reflexão sobre o que tem sido a evolução do Brasil nas últimas décadas e como ela pode desenrolar-se – ou não – nas próximas.
Alguns ótimos insights, não suficientemente difundidos, se nos apresentam quando observamos alguns dos gráficos que o Trendalyser nos permite criar, tais como: 1) O desenvolvimento geral da expectativa de vida e do GDP per capita tem sido enorme, principalmente ao longo das últimas cinco décadas; 2) não há mais um fosso entre países ricos e pobres, mas uma distribuição contínua de riqueza; 3) não se podem comparar os países pelas médias sem grandes ressalvas, pois diferenças regionais internas podem ser maiores que as diferenças entre nações; 4) todos os países evoluem significativamente, mas a velocidade de avanço tem sido muito diferente entre eles.
São inúmeras as análises que podem ser feitas no Trendalyser. Seguem alguns exemplos: 1) A Argentina, por volta de 1910 e novamente no início dos anos 30, tinha GDP per capita – ajustado pela inflação e paridade de preços – equivalente ao dos Estados Unidos e do Reino Unido. Hoje a renda média dos argentinos é metade da dos britânicos e um terço da renda dos americanos; 2) a província de Shanghai, na China, tem GPD per capita igual ao da Itália; 3) vários países apresentam expectativa de vida e GDP per capita muito similares aos do Brasil: Irã, Tailândia, Venezuela, Bulgária, Argentina, México, China, Líbia, Azerbaijão e Argélia; 4) a Rússia tem hoje praticamente a mesma expectativa de vida e GDP per capita que os Estados Unidos tinham há 50 anos (1967); 5) quase todos os países da Europa Ocidental apresentam índice de mortes violentas por 100 mil habitantes/ano menor que 1; Reino Unido e Japão, 0,4; China, 1,7; Índia e Estados Unidos, 6; Rússia, 22; Brasil, 24; e África do Sul, 70. Esses exemplos mostram que as possibilidades de análises e insights da Gapminder para legisladores, Poder Executivo, acadêmicos e influenciadores são estupendos.
Para nós, brasileiros, essas regras e esses dados se contextualizam em particular da seguinte forma: o Brasil tem evoluído muito em seus indicadores, mas sabemos que tem evoluído de maneira não uniforme. Além disso, nosso país progride como tantos outros, mas muito longe da velocidade dos com maior evolução. Um exemplo de observação que pode ser feita sem dificuldade no site da Gapminder: ao construir as curvas de evolução do GDP per capita de Brasil, Japão e Coreia do Sul, podemos notar que em 1960 o Brasil tinha o mesmo índice que o Japão e quatro vezes a renda per capita da Coreia do Sul. Os coreanos ultrapassaram os brasileiros em 1989 e hoje têm um GDP per capita praticamente igual ao dos japoneses, valendo mais que o dobro da renda dos brasileiros. Tudo isso num intervalo de menos de 60 anos. Esses números não são de modo algum novidade, mas nos ajudam a evidenciar o óbvio que muitos no Brasil insistem em ignorar: as decisões e ações políticas, econômicas e sociais tomadas ao longo dos anos moldam as trajetórias dos países e determinam seu futuro.
Os desastres econômicos, políticos e éticos dos últimos 12 anos certamente não nos ajudaram a avançar. Agora temos na pauta, mais uma vez, as reformas previdenciária, trabalhista, política e fiscal, bastante discutidas e com sugestões valiosas apontadas, por exemplo, em editoriais e artigos publicados recentemente no Estadão. Entretanto, sabemos que as chances de essas reformas serem feitas adequadamente e causarem o impacto necessário são diminutas, dados o fisiologismo e a falta de altruísmo que imperam nos diferentes Poderes da República, onde muitos estão muito mais preocupados em escapulir do alcance da Lava Jato do que em pensar o futuro do País.
E se essas reformas, mais uma vez, não forem devidamente encaminhadas, o vão que nos separa dos países mais avançados e civilizados por certo vai novamente aumentar. Mind the gap...
Falta de opção a Temer mantém as ruas vazias
A coisa poderia estar melhor para Michel Temer. Ele governa praticamente sem oposição. Até aqui, aprovou tudo o que quis no Congresso. Acaba de adoçar o bolso dos brasileiros com a liberação do dinheiro que estava retido nas contas inativas do FGTS. Mas o Ibope informa que o prestígio do governo Temer definha. A taxa de reprovação do governo subiu de foi de 46% para 55%. E o índice de aprovação caiu de 13% para 10%. Dois fenômenos ajudam a explicar o desprestígio da gestão Temer: a demora da economia em reagir aos estímulos de Brasília e a proximidade do presidente com o lixão da Lava Jato.
O Ibope revela que entre as notícias mais lembradas pela população estão a reforma da Previdência e a corrupção. No noticiário sobre a reforma, a plateia é informada de que governo exige uma cota de sacrifícios da sociedade para fechar o rombo nas contas previdenciárias. No noticiário sobre a corrupção, a arquibancada fica sabendo que permanecem dentro do campo o mesmo time que se habituou a fazer gol na mão grande dentro dos cofres públicos. Uma coisa não combina com a outra.
O desemprego bateu novo recorde. Está na casa de 13,2%. Há na praça 13,5 milhões de brasileiros sem um contracheque. Todos parecem sujeitos a perder o emprego, exceto os ministros de Temer investigados na Lava Jato. Esse contraste tira de Temer a autoridade para exigir da sociedade os sacrifícios embutidos em reformas como a da Previdência. As manifestações do último final de semana evidenciaram o esvaziamento das ruas. Mas o Ibope informa que o descontentamento permanece em casa. Só não chega ao meio fio porque não enxerga uma alternativa ao mal menor que Temer passou a representar.
O desemprego bateu novo recorde. Está na casa de 13,2%. Há na praça 13,5 milhões de brasileiros sem um contracheque. Todos parecem sujeitos a perder o emprego, exceto os ministros de Temer investigados na Lava Jato. Esse contraste tira de Temer a autoridade para exigir da sociedade os sacrifícios embutidos em reformas como a da Previdência. As manifestações do último final de semana evidenciaram o esvaziamento das ruas. Mas o Ibope informa que o descontentamento permanece em casa. Só não chega ao meio fio porque não enxerga uma alternativa ao mal menor que Temer passou a representar.
Acontece a 3 km
Hoje faremos um exercício mental. Imagine-se em pleno centro de qualquer capital de estado brasileira. Qualquer uma. Em um dia útil, e sob a luz do sol. Aliás, quanto mais claro o dia, melhor - tudo fica mais visível sob o brilhar da luz intensa.
Contemple, agora, a sede do Poder Judiciário local. Um Tribunal de Justiça, repleto de brasões e insígnias. Acompanhe, então, um Oficial de Justiça, em sua missão de intimar alguém. A apenas 3 km daquele vetusto prédio, ele só conseguirá cumprir seu mandado, pleno de expressões como "Excelência" e "determina", após negociar com traficantes portando fuzis pelas ruas.
Lance seu olhar a uma Secretaria de Educação. Nela planeja-se a formação da geração que nos sucederá. Pois é. E a 3 km dela as escolas e seus professores estão sob as garras de criminosos, que não raramente decretam "toque de recolher" quando algum comparsa morre trocando tiros com policiais.
Falando em policiais, contemple uma Delegacia de Polícia. Prédio austero, decorado por distintivos. Enquanto isso, a 3 km dele, os agentes da lei só podem transitar pelas ruas se em grupo e pesadamente armados, como que para um conflito - inclusive, em alguns locais, somente a bordo de um tanque de guerra.
Passe em frente da Assembleia Legislativa. Sede de um poder constituído. Ali, autoridades munidas da legitimidade do voto popular elaboram as leis que regem o Estado - e a 3 km dali muitas destas leis de nada valem para comunidades reféns de bandidos. Aliás, se lei há nestes cinturões de pobreza, seja a da selva.
Olhe, finalmente, para algum fino bairro residencial. Maravilhe-se com os prédios modernos, símbolo de progresso e pujança. Ofusque sua vista com o brilho das fachadas de vidro sob a luz do sol - mas que sua cegueira não o impeça de ver o pânico dos moradores, materializado em grades e alarmes, diante da audácia de criminosos gerados a apenas 3 km de suas residências.
O mais incrível é que tudo isso acontece à luz do dia. Às claras. Cotidianamente. E todo mundo sabe disso - só não quer conversar sobre isso, preferindo encontrar conforto na "sensação de segurança" dos muros e barreiras policiais montadas "do lado de cá" e na aparência de um falso progresso. Afinal, como filosofava Victor Hugo, "as ilusões sustentam a alma como as asas a um pássaro".
Pedro Valls Feu Rosa
Contemple, agora, a sede do Poder Judiciário local. Um Tribunal de Justiça, repleto de brasões e insígnias. Acompanhe, então, um Oficial de Justiça, em sua missão de intimar alguém. A apenas 3 km daquele vetusto prédio, ele só conseguirá cumprir seu mandado, pleno de expressões como "Excelência" e "determina", após negociar com traficantes portando fuzis pelas ruas.
Lance seu olhar a uma Secretaria de Educação. Nela planeja-se a formação da geração que nos sucederá. Pois é. E a 3 km dela as escolas e seus professores estão sob as garras de criminosos, que não raramente decretam "toque de recolher" quando algum comparsa morre trocando tiros com policiais.
Falando em policiais, contemple uma Delegacia de Polícia. Prédio austero, decorado por distintivos. Enquanto isso, a 3 km dele, os agentes da lei só podem transitar pelas ruas se em grupo e pesadamente armados, como que para um conflito - inclusive, em alguns locais, somente a bordo de um tanque de guerra.
Passe em frente da Assembleia Legislativa. Sede de um poder constituído. Ali, autoridades munidas da legitimidade do voto popular elaboram as leis que regem o Estado - e a 3 km dali muitas destas leis de nada valem para comunidades reféns de bandidos. Aliás, se lei há nestes cinturões de pobreza, seja a da selva.
Olhe, finalmente, para algum fino bairro residencial. Maravilhe-se com os prédios modernos, símbolo de progresso e pujança. Ofusque sua vista com o brilho das fachadas de vidro sob a luz do sol - mas que sua cegueira não o impeça de ver o pânico dos moradores, materializado em grades e alarmes, diante da audácia de criminosos gerados a apenas 3 km de suas residências.
O mais incrível é que tudo isso acontece à luz do dia. Às claras. Cotidianamente. E todo mundo sabe disso - só não quer conversar sobre isso, preferindo encontrar conforto na "sensação de segurança" dos muros e barreiras policiais montadas "do lado de cá" e na aparência de um falso progresso. Afinal, como filosofava Victor Hugo, "as ilusões sustentam a alma como as asas a um pássaro".
Pedro Valls Feu Rosa
Entre os conselhos humanitários do pai, Cabral optou pela organização criminosa
Reza a lenda que um dia Sérgio Cabral, não o filho corrupto, mas o pai, fundador do Pasquim, vascaíno, jornalista, pesquisador... chamou a atenção de Natal, presidente da Portela, para o fato de ele, Natal, não ter uma casa 'decente' para morar e deixar para a família, quando partisse dessa para uma melhor.
Natal era uma figura lendária do samba carioca. Afinal, ninguém chega à presidência da Portela sem méritos.
À época, as escolas eram dominadas por 'bicheiros'. Poderosos. O Rio não era violento como hoje. Começou a mudar quando adentraram ao gramado as parcerias do governador Brizola com o tráfico de drogas...
Os militares, a qualquer pretexto, mandavam prender os 'suspeitos de sempre'.
Os 'suspeito de sempre' eram os bicheiros.
Era uma época romântica. A fina flor da sociedade carioca frequentava os ensaios das escolas e desfilavam 'no maior espetáculo da terra' - ainda não havia o Sambódromo.
Pois é, Natal, aconselhado por Sérgio Cabral, não o corrupto... teve finalmente uma mansão. A moradia digna dos familiares estava assegurada.
O filho medonho do vascaíno Cabral deve ter ouvido os ensinamentos do pai. Tinha que formar um patrimônio. E como formou!
Com alzheimer, aos 81 anos, Sérgio Cabral não tem consciência da situação do filho. As más companhias, a começar por Luiz Inácio Lula da Silva, certamente fizeram o inquilino de Bangu esquecer os ensinamentos humanitários do pai e passar a integrar a organização criminosa concebida e comandada pelo petista.
Essas lembranças devem atormentar Cabral nas noites mal dormidas em Bangu.
Será?
Lula diz que não dorme... Será que Cabral dorme?
Tomaz Filho
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