Nasci canhoto. Fui marcado pelo lado esquerdo. Meus irmãos chutavam bola, atiravam pedra e chupavam manga com a mão direita. Por que diabos eu não era como eles e usava com naturalidade e eficiência a sinistra, em vez da santificada direita?
— Robertinho é canhoto!
A frase ressoa na minha mente, e ela se liga às histórias nas quais o caminho da esquerda, repleto de ouro e pedras preciosas (hoje seria de nomeações, propinas e dólares), era o errado; ao passo que o da direita, pobre e cheio de obstáculos, era o escolhido pelo herói. Tudo culminando com satanás tirando com a mão esquerda a alma do estudante pobre que com ele fizera um pacto para enriquecer.
Levei um bom tempo para sair dessa “alteridade” entre os “meus”. Mais tarde, e como estudante de Antropologia, fiquei fascinado ao descobrir que um antropólogo meu xará — Robert Hertz — havia estudado o simbolismo negativo universal da mão esquerda. Até que um outro francês, Louis Dumont, reviu a polaridade esquerda/direita como um dualismo completo e hierárquico no qual a esquerda — desprezada em tudo — é, contudo, a mão (ou o lado) adequada para realizar tarefas — e isso parece até uma parábola — vedadas à direita. Abençoamos com a direita, mas a mão que segura o cálice é a esquerda. Sem ela, não há alternativa ou mudança.
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No catecismo, minhas relações com o demo ampliaram-se. Conhecedor dos Dez Mandamentos e da graduação dos pecados, não tinha mais como esconder que Deus era um interlocutor invisível e distante (mas onipresente); ao passo que o diabo era uma presença constante (mas evitável) na minha pequena vida. Qual era a minha igreja?
Lembro que o mito machadiano termina com um diabo desiludido. Afinal, a mesma hipocrisia e ingratidão devida a Deus é igualmente replicada para com o capeta, já que ambos são obrigados a conhecer a “eterna contradição humana”. Essa contradição que faz com que o bem e o mal, o ódio e o amor sejam nossos companheiros de viagem.
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Em meio a esses nobres pensamentos, aprendi (depois de levar várias reguadas na mão esquerda) a usar as duas mãos. Cheguei ao virtuosismo de poder escolher entre uma e outra e, quando descobri que o grande Leonardo Da Vinci era um canhoto que escrevia da esquerda para a direita num código que só poderia ser decifrado com a ajuda de um espelho, decidi que usaria a esquerda nos meus encontros secretos com o demônio no banheiro; enquanto a direita seria empregada para escrever.
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O diabo sempre foi individualista. Nasceu da competição e de uma revolta, e vive de projetos pessoais. Ele seduz pela confusão entre a parte e o todo, que é tão dificil de perceber na maioria dos contextos humanos e jamais foi plenamente discutida no Brasil.
A “eterna ingratidão humana” do diabo de Machado de Assis é uma expressão da ambiguidade brasileira. A ingratidão humana seria a desculpa para o malfeito e a má-fé. Ela transforma em ideologia uma enorme condescendência ao lado de um profundo sentimento de culpa.
Em outras terras, outros diabos procedem de modo diverso. Não haveria ambiguidade, e ele não teria a necessidade de fundar uma igreja e de legislar sobre isso ou aquilo conforme manda a nossa índole. Ademais, nelas o demônio não perdoa ou perde. Pactos com o demo não seriam, dizem, revogáveis.
Roberto DaMatta
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