sábado, 29 de dezembro de 2018

Feliz 2019

Que seja feliz o ano que chega
Bem medido
Com mais de coisas boas e bem menos das más
Silêncios para pensar e calar raivas boçais
E risos para alegrar e aconchegar todos em paz

Começa a Era Bolsonaro

O governo Jair Bolsonaro, entre tantas indagações e perplexidades, oferece ao menos uma certeza: veio para mudar. Se triunfará, é outra história, que começa daqui a dois dias.

Não lhe falta lastro popular: segundo o Ibope, inicia-se sob as expectativas otimistas de nada menos que 75% da população.

Não é pouco – e é surpreendente, já que se elegeu com 59% dos votos válidos, o que significa que ou as urnas se equivocaram ou 16% dos que votaram no PT mudaram de ideia dois meses após o segundo turno, não obstante o radicalismo que marcou a campanha.

Como não há registro físico dos votos, nunca se saberá.


O que importa é que o anseio por mudança, que começou a se exteriorizar em 2013, numa sucessão de gigantescas manifestações de rua em todo o país – e que desaguou, em 2016, no impeachment de Dilma Roussef -, foi por ele capitalizado.

As mesmas multidões voltaram a se manifestar em sua campanha, sobretudo após o atentado de que foi vítima.

O fenômeno Bolsonaro não é obra individual. Ele tornou-se estuário do clamor popular por ruptura com a (des)ordem vigente, que o impeachment não aplacou. Ao contrário, intensificou.

Michel Temer, o estepe de Dilma, mesmo conseguindo a façanha de fazer com que o país parasse de piorar, não serenou o quadro. Entrega um país um pouco melhor que o que recebeu, mas, no plano moral, manteve o padrão, exposto pela Lava Jato.

Ele e Dilma, entre outros companheiros da parceria PT-MDB, devem se reencontrar em breve nos tribunais.

Desde a retomada do poder pelos civis, a partir de 1985, o país passou a seguir uma agenda de fundamentação esquerdista, em conluio com o mais deslavado fisiologismo, levado ao paroxismo a partir dos governos do PT. Não podia dar certo – e não deu.

A soma de corrupção com gestão temerária tornou-se insustentável e levou o país à ruína. À exceção do breve interstício do Plano Real, que o PT liquidou, o país patinou, entre um governo e outro, na instabilidade econômica, política, social e institucional.

A Lava Jato submeteu os três Poderes a um strip-tease moral sem precedentes. O saldo é eloquente: 14 milhões de desempregados, déficit orçamentário de R$ 150 bilhões, mais de 60 mil homicídios anuais, índice de guerra civil. Entre outras coisas.

O resultado foi a eleição de alguém que, ao longo de todo esse processo, foi o contraponto ideológico mais veemente aos sucessivos governos, com ênfase aos do PT. A princípio, era uma voz periférica, a bradar da tribuna do baixo clero da Câmara, sem audiência do grande público, ao qual só chegava de forma caricatural, nos momentos (não poucos) em que se excedia em sua retórica.

Gradualmente, porém, com a deterioração da cúpula política, passou a ser ouvido, valendo-se da intermediação das redes sociais, já que a mídia convencional o ignorou até onde pôde.

Importa dizer que a sociedade, em sua maioria, viu (e vê) nele um corpo estranho ao ecossistema político vigente, e em condições de mudá-lo. A montagem ministerial, não obstante controvérsias pontuais, foi bem avaliada, segundo o Ibope.

Os próprios adversários já admitem que não será fácil reverter o processo que se inicia. José Dirceu previu que “a Era Bolsonaro será longa”. E Fernando Haddad já declarou que o projeto liberal do novo governo “pode dar certo”. Admitir, porém, não significa se conformar.

O PT retoma sua maior habilidade: a de força predadora. Fará (já está fazendo) oposição sistemática.

Terá, porém, contra si a Lava Jato robustecida, cujo símbolo, Sérgio Moro, deixa a modesta primeira instância de Curitiba para assumir a cabine de comando do Ministério da Justiça.

O Brasil que se inicia, mesclando tecnocratas, militares, políticos e neófitos, terá múltiplos desafios e enfrentará turbulências. Terá de aprender a trocar o pneu com o carro andando.

De tédio, com certeza, não padeceremos. Apertem o cinto – a viagem vai começar.

Enxugando gelo

A estupenda reportagem de capa do Estado na edição de domingo 16 de dezembro, sobre a insolvência de milhares de municípios brasileiros, demanda uma reflexão sobre as causas estruturais da calamidade permanente das nossas finanças públicas. Os que acompanham a vida política a partir da metade do século passado podem testemunhar a velha ladainha, o repetido mantra de todo novo governo, que antes de assumir promete tomar drásticas providências para diminuir substancialmente os gastos públicos.

Tancredo Neves, por exemplo, nos dois meses anteriores à sua malograda posse, declarava, todos os dias, que acabaria com a farra dos gastos públicos. Até Dilma Rousseff, ao nomear Joaquim Levy, disse que corrigiria a política fiscal de seu catastrófico “governo”.

Acontece que tais intenções, sinceras ou insinceras, não passam de falácia, bobagem, voluntarismo primário, nada condizente com os altos saberes dos sucessivos futuros ministros da Fazenda.

Nenhum deles ataca a causa central do desperdício orçamentário, isto é, o regime de estabilidade, origem das devastadoras despesas de custeio formadas pela massa dos proventos, vantagens e verbas indenizatórias (§ 11 do artigo 37 da Constituição federal) dos mais de 12,5 milhões de servidores públicos da União, dos Estados e dos municípios, que consomem, com generosos adicionais, todos os recursos orçamentários, expandindo o respectivo déficit, nos três Poderes e nas três esferas. A estabilidade do emprego público é amparada por um bunker normativo dentro da própria Constituição. Nenhum servidor público pode ser exonerado ou dispensado, salvo se cometer gravíssimos crimes contra a administração. Mesmo nessa hipótese extrema, cabem-lhe ampla defesa em infindáveis processos administrativos e judiciais. Enquanto não for condenado com trânsito em julgado, goza o funcionário réu de todos os proventos, vantagens e verbas indenizatórias (artigo 41 da Constituição). A propósito, não se conhece mais do que meia dúzia desses processos canônicos em todo o País durante os últimos 70 anos, apesar do envolvimento de várias centenas de servidores nos casos de corrupção levantados a partir de 2014 pela Lava Jato. E quando, após décadas, sobrevém a condenação, fica o servidor em disponibilidade ou é “compulsoriamente” aposentado, com todos os proventos.

Nos países democráticos desenvolvidos somente os poucos que exercem altas funções de Estado são estáveis. Nos Estados Unidos apenas juízes da Suprema Corte e oficiais das Forças Armadas são estáveis. Já em nosso país, todos os 12,5 milhões de servidores são estáveis. Desde o manobrista da garagem do Senado até os ministros do Supremo Tribunal, desde o gari da pequena prefeitura de cidade de 6 mil habitantes até o médico do posto de saúde. Todos, simplesmente todos, exercem “funções de Estado”, e não simples atribuições administrativas. Pergunta-se: qual a função de Estado de um funcionário de município? Não importa. Os 12,5 milhões de servidores são constitucionalmente “imexíveis”.

Esse monumental contingente de funcionários públicos é obra da atual Constituição, que, ademais, no artigo 19 das suas Disposições Transitórias, declarou estáveis todas as pessoas que trabalhavam na União, nos Estados e nos municípios em 1988, mesmo sem concurso ou qualificação profissional.

Por coincidência, temos hoje no Brasil a seguinte realidade social: no setor privado 12,5 milhões de desempregados procuram um posto de trabalho há quatro anos. No setor público, dos 12,5 milhões de servidores públicos, nenhum foi despedido no mesmo período. São estáveis. Têm emprego garantido para toda a existência. No setor privado todos os empregados se submetem ao risco de perder o emprego, como agora milhões deles, por causa da recessão e da estagnação decorrentes da insanidade fiscal e da corrupção dos governos recentes.

Os novos governantes afirmam que aplicarão a Lei de Responsabilidade Fiscal para limitar as despesas de custeio da máquina pública (artigo 19 da LRF). Mas como, se os servidores públicos não podem ser exonerados? União e Estados têm mais de 70% de orçamento e déficit em gastos com servidores, incluindo os inativos. E quase todos os 5 mil municípios - grandes, médios e pequenos - têm mais de 80% de suas receitas e déficit também vinculados ao pagamento da folha dos seus ativos e inativos. Há pequenos municípios do Brasil em que 100% dos homens válidos no perímetro urbano ocupam cargos administrativos. E todos estáveis. O resto da verba orçamentária deficitária dos municípios (20%) é gasto com os portentosos aparatos dos srs. prefeitos e suas inúmeras secretarias, além das dezenas de nobres vereadores com gabinetes recheados de assessores.

A questão, portanto, é de natureza estrutural, está no âmbito da Constituição, pois o déficit não nasce apenas dos péssimos governos anteriores. Só a quebra da estabilidade geral e irrestrita, acompanhada da isonomia previdenciária entre os setores público e privado, é que pode diminuir o déficit público e estabelecer o equilíbrio fiscal.

E aí volta a pergunta: onde o novo governo vai cortar? Vai intervir nos milhares de municípios e nos Estados que infringem a Lei de Responsabilidade Fiscal? Ou vão enfrentar o tabu máximo da República dos privilégios, instituindo, por meio de reforma constitucional, a estabilidade para as poucas e qualificadas funções de Estado, a par de extinguir o regime especial de aposentadorias do setor público? Tais medidas reduziriam em dois terços as pantagruélicas folhas de pagamento estatais. Fora disso não há que falar em cortar despesas, abater o déficit fiscal e retomar o investimento público. Vai-se, apenas, enxugar gelo.

Que o novo governo federal e o novo Congresso tenham a coragem de resolver esse problema, para podermos retomar a prosperidade econômica em bases sólidas e permanentes.

Brasil da posse


'Este Brasil ficará nas minhas veias por muito tempo'

Há poucos dias, meu colega Tom Avendaño, que era o correspondente do EL PAÍS no Brasil, teve que retornar à redação central de Madri após dois anos de permanência na sede de São Paulo. Tom me deixou como despedida a tristeza de precisar ir embora. E isso que chegou aqui com medo de não ser capaz de ler a complexidade do país. Ao partir me fez uma confissão que representa um elogio aos brasileiros: “Este país marciano, Juan, ficará nas minhas veias por muito tempo, porque aqui me descontruíram tudo o que eu dava como certo e tornaram a me construir, talvez melhor”.


Para me explicar, literariamente, por que lhe doía ter que ir embora do Brasil, Tom, que é um esteta da palavra, escolheu a metáfora do conto Felicidade Clandestina, da escritora brasileira Clarice Lispector, considerado uma das joias da literatura mundial. Uma menina louca para ler o livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, pede a uma colega que o empreste. A pequena é malvada e a faz ir várias vezes à sua casa. A cada vez lhe dá uma desculpa para não lhe entregar o livro. Sua mãe, que tinha visto a paixão da pequena, acaba por emprestá-lo. Tamanho era o medo de ter que devolvê-lo que a menina vai resistindo a lê-lo o quanto pode. “Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”, escreve Clarice.

Tom traça um paralelo do conto com sua relação de amor pelo Brasil e a tristeza de precisar ir embora. “Como à menina de Clarice, a mim cabe agora devolver o livro”, me diz. Uma leitura do Brasil que ele gostaria de ter prolongado. Esse Brasil, do qual Tom sofreu para se despedir, é o que deixaram também com nostalgia dois outros colegas meus, Antonio Jiménez e Xosé Hermida, ambos ex-diretores da edição Brasil, hoje dirigida por Carla Jiménez.

Às vésperas da chegada do novo 2019, com todas as incógnitas que acarreta, esse “não querer ir embora do Brasil” de meus três colegas espanhóis me fez pensar que o Brasil é um e muitos ao mesmo tempo. Existe hoje o dolorido, o perplexo, o desencantado com a política, o violento, o das injustiças sociais. Existe o Brasil com medo, o envergonhado, e o de quem gostaria de ir embora dele. Mas existe outro não menos verdadeiro, que talvez sejamos capazes de detectar melhor os estrangeiros que compartilhamos suas dores e alegrias. É o Brasil que Tom diz que ficará em suas veias por muito tempo. É o Brasil, já contado nesta coluna, dos outros dois companheiros, Antonio Jiménez e Xosé Hermida. Os três, ao se despedirem, fizeram constar que tinham chegado a este país conscientes de que se tratava de um continente não fácil de abranger e analisar. O que lhes tinha ocorrido no pouco tempo de sua experiência brasileira para que acabassem fisgados e sem vontade de voltar ao seu país? Antonio foi explícito: “Este país me mudou. Agora me sinto mais leve”, e acrescentou: “No Brasil, despertou em mim quando cheguei o desejo de ser mais feliz”. Xosé também se mostrou triste de partir. O que mais tinha apreciado dos brasileiros havia sido “a capacidade que demonstram de não amargarem sua vida inutilmente”. Aqui descobriu, por exemplo, que “a Europa é mais triste que o Brasil”. Só a grande desigualdade social lhe pareceu uma das mais graves do mundo.

Esse Brasil capaz de devolver a pessoa melhor do que quando chegou, capaz de ensinar a ser feliz, é também um Brasil verdadeiro. Que ensinou meus colegas a descobrirem que aqui não existe a solidão que hoje aflige milhões na rica e culta Europa, porque o brasileiro sabe compartilhar sua vida com uma naturalidade que estranha e cativa. Sua capacidade humana de comunicação é proverbial, e uma de suas maiores riquezas naturais, mais que o petróleo. Tomara que esse Brasil hoje ofuscado pelos demônios da política possa ressurgir com sua força real, que não morreu. Está só esperando recuperar seu velho direito de cidadania.

Feliz 2019 para o Brasil que não se rende a perder o que conquista a nós, estrangeiros, quando chegamos, e que nos faz ter saudade quando chega a hora de partirmos.

A última noite de Natal

Os grandes olhos claros e aguados boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto. Esfregou-os, arrastou-se pesado e entanguido, mal seguro à bengala,sentou-se num banco do jardim, fatigado, suspirando, examinou a custo os arredores. Gastou uns minutos passeando as mãos desajeitadas na gola do casaco. O exercício penoso enfureceu-o. Resmungou palavras enérgicas e incompreensíveis, esforçou-se por dominar a tremura. Com certeza era por causa do frio que os dedos caprichosos divagavam no pano esgarçado e os queixos banguelos se moviam continuamente. Era por causa do frio, sem dúvida. Se conseguisse abotoar o casaco e levantar a gola, os movimentos incômodos cessariam.

Em que estava pensando ao chegar ali? Ia jurar que pensava em coisas agradáveis. Ou seriam desagradáveis? Pedaços de recordações incoerentes dançavam-lhe no espírito, acendiam-se, apagavam-se, como vaga-lumes, confundiam-se com os letreiros verdes, vermelhos, que se acendiam e apagavam também quase invisíveis na poeira nebulosa. Tentou reunir as letras, fixar a atenção nas mais próximas, brilhantes, enormes.

A igreja toda aberta resplandecia. O incenso formava uma neblina perturbadora. E, através dela, os altares refugiam como sóis, a luz das velas numerosas chispava nas auréolas dos santos.

Que doidice ! Não é que estava imaginando ver ali, nas transitórias claridades, a igreja vista sessenta anos antes? Tresvariava. Sacudiu a cabeça, afastou a lembrança importuna. De que servia desenterrar casos antigos, alegrias e sofrimentos incompletos?

O que devia fazer... Pôs-se a mexer os beiços, procurando nas trevas úmidas e leitosas que o envolviam o resto da frase. O que devia fazer... Repetiu isto muitas vezes, numa cantilena, distraiu-se olhando a chuva amarela, verde, vermelha, dos repuxos. Impossível distinguir as cores. Ultimamente a cidade ia escurecendo. As pessoas que transitavam junto aos canteiros sem flores eram vultos indecisos; os prédios se diluíam nas ramagens das árvores, manchas negras; os letreiros vacilantes não tinham sentido.

O que devia fazer... De repente a idéia rebelde surgiu. Bem. Devia meter os botões nas casas e agasalhar o pescoço. Depois cruzaria os braços, aqueceria as mãos debaixo dos sovacos, ficaria imóvel e tranqüilo. Mas os dedos finos e engelhados avançavam, recuavam, não havia meio de governá-los. Se pudesse riscar um fósforo, chegá-lo a um cigarro, esqueceria os inconvenientes que o aperreavam: o frio, a dureza das juntas, o tremor, a zoeira constante, sussurro de maribondos assanhados. Dores errantes andavam-lhe no corpo, entravam nos ossos e vinham à pele, arrepiavam os cabelos, fixavam-se nas pernas, esmoreciam.

Agora não estava no banco do jardim, perto das estátuas, das árvores, do coreto, dos esguichos coloridos. Estava longe, a sessenta anos de distância, ajoelhado na grama, diante da igreja da vila. Os rostos embotados, que se dissociavam, juntaram-se no largo onde um padre velho dizia a missa da meia-noite. Fervilhavam matutos em redor das barracas, num barulho de feira, e uma sineta badalava impondo em vão respeito e silêncio. Os cavalinhos rodavam. Esgueiravam-se casais pelos cantos. O padre velho dirigia olhares fulminantes àquela cambada de hereges. Uma figura pequenina cantava os hinos ingênuos, de versos curtos, fáceis. Tudo parecera de chofre muito sério, eterno. Os hinos capengas elevavam-se, estiravam-se. A mulher tinha um rosto de santa e exigia adoração. Sessenta anos. As fachadas enfeitavam-se com lanternas de papel, janelas escancaradas exibiam presépios, listas de foguetes cortavam o céu negro. A sineta badalava, zangada. E o burburinho da multidão não diminuía.

Sessenta anos. Da cinza que ocultava os olhos frios saltou uma faísca; os alfinetes pregados na carne trêmula embotaram-se; o espinhaço curvo endireitou-se; um débil sorriso franziu os beiços murchos; os braços ergueram-se lentos, buscando a imagem de sonho.

Imagem de sonho, que doidice! Era apenas uma bonita criatura de bom coração. Ligara-se a ela. E dezenas de vezes tinham-se os dois ajoelhado ali na grama, olhando as lanternas, os presépios, os foguetes, o padre que dizia a missa da meia-noite. Algumas esperanças, muitos desgostos. Os meninos cresciam, engordavam. E no jardim da casa miúda um jasmineiro recendia.

Depois tudo fora decaindo, minguando, morrendo. Achara-se novamente só. Os filhos e os netos se haviam espalhado pelo mundo. Agora... Que extensa caminhada, que enormes ladeiras, pai do céu ! Já nem se lembrava dos lugares percorridos.

Conseguiu abotoar o casaco e levantar a gola.

Andar tanto e afinal chegar ali, arriar num banco, não perceber as letras que se acendiam e apagavam.

Certamente àquela hora, diante duma igreja aberta, outro homem novo admirava outra pessoinha ajoelhada, sentia desejos imensos, formava planos absurdos. Os desejos e os planos iam desfazer-se como a fumaça luminosa dos repuxos.
Graciliano Ramos, “Linhas Tortas”

Muita espuma ideológica

Desconvite a ditadores de Cuba e Venezuela para a posse, bravatas sobre a revisão das demarcações de terras indígenas, bate-boca com Nicolás Maduro, tititi nos bastidores do Itamaraty, gritaria em torno da tal Escola sem Partido, brigas de hooligans em cerimônias de diplomação em vários Estados.

Algumas das querelas que ocuparam futuros ministros, o próximo presidente da República, diplomatas e os novos (sic) congressistas nas últimas semanas parecem refletir a disputa entre alas de direita e de esquerda em algum grêmio estudantil, e não discussões de um grupo que se prepara para subir a rampa do Palácio do Planalto daqui a menos de dez dias.


Enquanto as alas mais ideologizadas do futuro governo promovem uma versão tosca de reality show com direito a lives nas redes sociais, os dois pilares até aqui sólidos da próxima administração montam times igualmente consistentes para as ambiciosas tarefas que terão pela frente. Mas fica a dúvida: terão Paulo Guedes e Sérgio Moro respaldo do restante do governo e, principalmente, de Jair Bolsonaro, para encaminhar sua pauta com foco, articulação política, prioridade e estratégia diante de tanta espuma que seus colegas e os aliados no Legislativo já deram mostra de que são capazes de produzir?

O segundo escalão do Ministério da Economia é primoroso. Eu, que já questionei a falta de experiência anterior de Paulo Guedes no setor público e sua falta de traquejo verbal para a negociação política, neste caso não tenho reparos: trata-se de uma das equipes mais bem compostas da área econômica nos últimos tempos, aproveitando nomes experimentados e montando uma estrutura que parece altamente capaz de enfrentar, ao mesmo tempo, o ajuste fiscal necessário e o desejado e tão adiado destravamento do crescimento.

Mas os temas econômicos estão tendo menos atenção de Bolsonaro e seu entorno da articulação política, nas manifestações públicas que fazem, que o besteirol ideológico.

Tome-se a tal cúpula conservadora realizada em Foz do Iguaçu há algumas semanas. Ali se gastou mais saliva discutindo ideologia de gênero, o fantasma da volta do comunismo e outras quimeras do que a necessidade de um ajuste liberal de fato na economia. Mesmo no painel dedicado ao tema, um economista da equipe de transição lacrou ao ensinar como berrar na cara de um esquerdista, e não ao aproveitar o evento para deixar claro à plateia conservadora que ou se faz a reforma da Previdência ou já era.

No Itamaraty, o clima de caça às bruxas às antigas gerações e a pregação de um trumpismo cristão se sobrepõem à montagem de uma estratégia moderna, inteligente e sem maniqueísmo que permita ao Brasil se posicionar num mundo que não deixará de ser multipolar e cuja complexidade geopolítica vai muito, mas muito além do que as tuitadas recheadas de mistificação do futuro chanceler sugerem.

Bolsonaro foi eleito prometendo banir o viés ideológico de esquerda da máquina federal, depois de 13 anos de domínio petista. Eis um bom propósito: o aparelhamento, visível desde os primórdios de Lula, com a ascensão novo-rica de uma casta sindical às delícias do poder, foi a gênese da roubalheira que se viu ao longo dos anos.

Mas substituir a ideologização de esquerda por outra igualmente atrasada, jeca e talvez até interessada em aparelhar tudo que houver pela frente não é, decididamente, o caminho para um País que o mesmo PT quase levou à falência.

Que os lacradores deixem Guedes e Moro trabalhar e que Bolsonaro perceba que é no sucesso desses dois, e não nos likes da turba direitista hidrófoba, que mora suas chances de sucesso a partir de 1.º de janeiro.

A campanha já acabou faz tempo.

Pensamento do Dia


Bic de Bolsonaro já aceita ministro com pesticida

Em campanha, Jair Bolsonaro prometera elevar o teto de exigências morais e éticas de sua Presidência. Eleito, rebaixou o pé-direito do seu futuro governo ao empurrar para dentro do primeiro escalão ministros que enfrentam questionamentos na área dos bons costumes. A equipe de Bolsonaro tem 22 ministros. Desse total cinco convivem com suspeitas - uma taxa de encrencados de 22,7%.

Henrique Mandetta, da Saúde, responde a denúncia por fraude em licitação, tráfico de influência e caixa dois. Tereza Cristina, da Agricultura, é citada numa transação esquisita com a JBS. Paulo Guedes, da Economia, é investigado por transações feitas com fundos de pensão de estatais. Onyx Lorezoni, da Casa Civil, molha o paletó para livrar-se de uma acusação de caixa dois.


Para complicar, Ricardo Salles, do Meio Ambiente, acaba de ser condenado por improbidade administrativa. Bolsonaro vinha dizendo que nenhum dos seus escolhidos era réu. Agora, convive com um condenado. Há duas semanas, Bolsonaro fez uma declaração categórica: "Havendo qualquer comprovação ou denúncia robusta contra quem quer que seja do meu governo, que esteja ao alcance da minha caneta 'bic', ela será usada".

Às vésperas de vestir a faixa presidencial, Bolsonaro guarda obsequioso silêncio sobre o selo de improbidade administrativa que foi colado em Ricardo Salles. Sua 'bic' permanece imóvel. Será acionada no dia da posse, não para afastar, mas para sacramentar a nomeação do auxiliar tóxico. Pode-se argumentar que ainda cabe recurso contra a condenação do titular do Meio Ambiente. Beleza. Mas o que Bolsonaro havia prometido aos seus eleitores era um primeiro escalão sem pesticidas. Essa mercadoria ele não vai entregar.

Josias de Souza

Consumidor não é cidadão

Conseguimos, até certo ponto, ajudar essa gente (pobres) a se tornar bons consumidores. Mas não conseguimos transformá-los em cidadãos
José Mujica, ex-presidente do Uruguai

Uma pequena dose de Jânio

O futuro ministro da Cidadania, Osmar Terra, falou em proibir o álcool em algumas circunstâncias e provocou polêmica. Creio que as pessoas entenderam que Terra queria proibir o álcool de forma geral.

A experiência no Brasil, no entanto, já mostrou que em certos momentos é possível controlar o consumo com êxito na redução da violência. Para isso é necessário um mapa preciso dos incidentes violentos, indicando hora e lugares onde acontecem.

Não concordo com a visão geral de Osmar Terra sobre política de drogas. Mas também não concordava com a visão proibicionista do velho e saudoso Elias Murad. Uniam-me a Murad, assim como a Osmar Terra, não só a amizade cotidiana, mas uma certa humildade diante desse complexo problema, para o qual ninguém pode dizer que tenha todas as únicas respostas certas.

Basta ver, no momento, a devastação humana que o consumo de opiáceos está provocando nos Estados Unidos. É um desafio para o governo Trump, mas suas raízes o antecedem.

Mas a democracia nos faz experimentar. No Brasil, com a vitória conservadora, é razoável que a política de Terra seja desenvolvida. No Canadá, por exemplo, o governo rumou noutro sentido, legalizando a maconha. Dizem os jornais que a Marlboro entrou no negócio e suas ações subiram mais que as da Bombardier, a correspondente canadense da Embraer.

Não sou ingênuo a ponto de apresentar uma única variável, o sucesso econômico, como critério para analisar uma política dessa envergadura. Apenas registro: a democracia abre o caminho para diferentes experimentos.

Esse pequeno debate em torno do anúncio de Osmar Terra me fez refletir sobre o passado, mais especificamente o período Jânio Quadros. Sem querer comparar governos, registro apenas que naquela época havia também uma combinação entre temas conservadores nos costumes e medidas amargas na economia.

Nos costumes, os temas são muito mais voláteis do que a constância insuperável do preceito econômico que nos proíbe de gastar mais do que produzimos, ao longo de muito tempo. Nenhum governo federal se importaria hoje em proibir brigas de galo, como Jânio fez. Mesmo temas mais amplos, como as vaquejadas e os rodeios, deslocam-se para o Congresso e o STF.
O que diria, então, da proibição do biquíni? Isso provocaria um movimento maior que a revolta das vacinas nos tempos de Osvaldo Cruz. Talvez nem isso, apenas uma explosão nacional bem-humorada.

O interessante em Jânio não era a coexistência dessas duas pautas, que, em outro nível, existem também no governo Bolsonaro. O interessante era como Jânio as combinava.

Sempre que era forçado a tomar medidas econômicas impopulares, Jânio lançava uma dessas proibições que eletrizam a opinião pública. Era muito mais confortável canalizar as atenções para o biquíni do que para as combalidas finanças nacionais.

Não creio que Bolsonaro siga o mesmo caminho. Nada neste período preparatório sugere o cinismo e a sofisticação de Jânio. Além do mais, parece-me que Bolsonaro realmente acredita nos temas de comportamento que defende e vai brigar por eles com o entusiasmo de quem se batizou no Rio Jordão.

Mais que semelhanças, vejo no governo Bolsonaro o fim de algo que surgiu no governo Jânio: a chamada política externa independente, que estabeleceu relações diplomáticas com países socialistas, Cuba incluída. Ainda sem julgar o mérito dessas políticas, tudo indica que o peso ideológico na gestão Ernesto Araújo vai revolucionar as bases do trabalho de Afonso Arinos. Portanto, as comparações entre os governos Jânio e Bolsonaro não podem ignorar essa descontinuidade.

Por falar em Afonso Arinos, recebi nas vésperas do Natal o monumental livro de memórias, intitulado A Alma do Tempo. Um verdadeiro ato de heroísmo do editor José Mario Pereira, da TopBooks. O livro tem 1.790 páginas. Ainda não cheguei à metade do caminho. Cuidarei dele em outros textos.

Os últimos anos foram muito focados na experiência do PT, no máximo, no governo tucano, que lhe antecedeu. Com a ajuda de Arinos e, certamente, de Joaquim Nabuco, ambos atores e intérpretes da saga política familiar, é possível olhar um pouco mais para trás, puxar fios mais longos da meada histórica.

A primeira tarefa, e nisso creio que as memórias de Arinos ajudam, será examinar a experiência de Jânio. Não cheguei no livro plenamente a ela. Mas já no início há referências à instabilidade de Jânio.

Collor foi também uma experiência conservadora. Mas parecia voltado para a economia, para um consumo cosmopolita, uma clássica defesa do meio ambiente.

Bolsonaro pertence aos tempos modernos, em que, segundo Umberto Eco, se desenha um populismo qualitativo de TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz do povo”. A diferença é que ele chegou ao poder não pela resposta emocional de um grupo selecionado, mas pela vontade da maioria do povo brasileiro. Em outras palavras, até aqui, tudo bem.

Até onde minha vista alcança, os primeiros sobressaltos estão ao norte. Maduro assume dia 10 e a Colômbia propõe que os outros países não reconheçam seu novo governo. Por sua vez, o próprio Maduro andou apreendendo um navio da Guiana, reavivando aquele velha querela em torno de Essequibo, problema que vem desde o século 19 e envolve uma região rica em minérios e um mar potencialmente com muito petróleo. E ainda por cima disse que o general Mourão tem cara de louco. Mourão serviu na Venezuela, conhece a gênese do bolivarianismo.

Vai ser preciso cabeça fria naquela fronteira, concentrar no trabalho humanitário. Provocações podem surgir. Maduro está precisando de inimigos para garantir a coesão interna.

O Brasil só precisa de paz para se reconstruir.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O muito que falta no caso Queiroz

A versão de Fabrício Queiroz é evidentemente insatisfatória. Mesmo com toda a boa vontade do mundo é difícil considerar o caso encerrado. É preciso mostrar os registros de carros vendidos e comprados, explicar os depósitos dos funcionários do gabinete, justificar a presença dos seus familiares empoleirados na equipe de Flávio Bolsonaro, e ainda ter a comprovação bancária do empréstimo do presidente eleito Jair Bolsonaro em sua conta.

Há falhas demais nessa história. O Brasil foi muito bem treinado nos últimos anos pelos procuradores e juízes da Lava-Jato a não aceitar versões com peças faltantes. Até seu semblante na entrevista concedida ao “SBT” parecia saudável demais para justificar o seu não comparecimento à convocação do Ministério Público Estadual. Ele pode mesmo ter as enfermidades que disse ter, mas não parecia estar em estágio agudo ao conceder a entrevista. No final da noite de ontem, a defesa apresentou atestados sobre a “grave enfermidade” de Queiroz e disse que ele passará por “cirurgia urgente”.

O que temos visto no país nos últimos anos é o desvio de milhões e bilhões, e alguém pode argumentar que é pequeno o movimento atípico na conta do ex-assessor do senador eleito e amigo da família Bolsonaro. O problema é que não há malfeito pequeno ou grande. Há malfeito. E foi contra eles que a família que assumirá o poder dentro de alguns dias fez a cruzada que a levou à vitória.
Uma velha lei da política é que a exigência sobre uma autoridade é maior exatamente no quesito que foi usado como bandeira para a eleição.


O ex-presidente Fernando Collor foi eleito dizendo que combateria os marajás. Ele caiu não por ter provocado uma grave recessão com seu plano desastrado, mas porque fantasmas de PC Farias movimentavam dinheiro que davam a ele um luxo de marajá, como as cascatas da Casa da Dinda. A ex-presidente Dilma negou a crise econômica e prometeu crescimento no seu segundo mandato. A recessão e o desemprego explodiram na cara dos eleitores.

O ponto mais vulnerável do futuro governo será o do combate à corrupção, até porque o presidente eleito dobrou a aposta quando convocou o ícone da Lava-Jato, Sérgio Moro, para o cargo de ministro da Justiça. A versão de Queiroz é muito fraca. As movimentações atípicas podem ser mesmo o resultado da sua habilidade em “fazer dinheiro", mas documentos, registros bancários, e testemunhos precisam acompanhar as palavras.

Sobre o dinheiro na conta de Michele Bolsonaro, a explicação do presidente eleito pode ser suficiente. É normal empréstimos entre amigos. Contudo, o financiamento foi dado de maneira informal, deve ter transitado através de um cheque, ou de depósito em conta, de Bolsonaro a Queiroz, porque R$ 40 mil em espécie, na mão, não é comum. As frequentes idas do presidente eleito ao caixa do banco mostram o saudável hábito de saques de valor pequeno suficientes para as despesas do dia a dia.


O Brasil viu casos escabrosos nos últimos anos, e as entradas e saídas de dinheiro na conta de Fabrício Queiroz não têm a mesma dimensão. Mas carecem de explicações que respeitem o grau de sofisticação que o país aprendeu a ter diante do comportamento de autoridades e seus assessores. O ex-presidente que saiu do governo com a mais alta popularidade já vista no Brasil está preso porque na sentença de Moro, confirmada em tribunal de segunda instância, receberia a vantagem de um apartamento da OAS com benfeitorias feitas sob medida. Lula jamais habitou o apartamento, mas o Brasil aprendeu a ler o artigo 317 do Código Penal. Ele diz que nem precisa receber algo. Corrupção é também “aceitar a promessa de vantagem”.

O problema não desaparecerá se não for bem explicado. Não vai adiantar alegar que em outros gabinetes da mesma Assembleia houve movimentações atípicas até maiores. Inútil culpar a imprensa. O que funciona é a explicação boa, sólida, documentada. Se ao senador eleito Flávio Bolsonaro a justificativa dada por Queiroz pareceu plausível e sem ilegalidade, como ele disse, o seu ex-assessor precisa ser instado a apresentá-la diante das autoridades que querem ouvir seu depoimento. O assunto pode, então, deixar de incomodar. E em quaisquer futuras dúvidas da mesma natureza será importante dar explicações sempre sólidas. Este é o ônus do poder, e o resultado de ter sido eleito com um discurso de combate à corrupção.

Bolsonaro já deu errado, mas pode sobreviver a si mesmo

O governo Bolsonaro vai dar certo? Não. Mas seria um erro concluir, a partir dessa resposta, que vai ser necessariamente malsucedido. Estamos falando de esferas distintas da experiência pública.

Um liberal considera que um governo é eficiente quando consegue melhorar a vida da população, otimizando os recursos disponíveis, transferindo mais responsabilidades à sociedade, domando o Estado para que este regule as relações de troca, de modo a que esse ente estatal corrija, por meio da igualdade perante leis democráticas, o que desigualaram as circunstâncias que não foram escolhidas pelos indivíduos: em alguns casos, é preciso controlar os apetites; em outros, compensar as inapetências.

Pareceu excesso de abstração? Um liberal acredita, em suma, que o palavrório da política é o melhor instrumento para manter e aprimorar o pacto civilizatório que nos leva a uma concordância entre desiguais sobre o método de discordar.

“Um petista ou um bolsonarista não teriam dificuldade em adotar essa divisa, Reinaldo”. Pois é... Ocorre que a minha formulação repudia a vocação missionária e o horizonte disruptivo, sem o qual essas forças perdem razão de ser. Essa definição de eficiência é avessa à tentação da hegemonia.

Governos não devem se estabelecer, nas democracias, para colonizar consciências, de sorte que sua eficácia, no fim das contas, seja medida pela depauperação das forças que se opõem a seu projeto ou a suas ações.

Lula e os petistas sabem que boa parte dos crimes cometidos pelo PT se deveu à determinação de usar um sistema poroso à corrupção para comprar partidos e políticos. O objetivo era aniquilar a oposição ou reduzi-la à caricatura.

Não deu certo. Mas quem há de negar que o petismo foi bem-sucedido durante um largo período? E o ciclo estava destinado a ter duração muito mais longa se a tentação disruptiva não tivesse atingido também a matemática. A morte do projeto hegemônico se deu nas jornadas de 2013. E os petistas ainda tentaram liderar, basta recuperar a crônica do período, o berreiro contra o establishment, ignorando qual era seu papel no teatro de operações.

A Lei 12.850, obra inequívoca do governo Dilma, é de agosto daquele ano. Pôs o ovo da Lava Jato e instituiu Sua Excelência o Delator como o condutor dos nossos destinos. A ironia, velha dama de companhia da história, fez com que o PT criasse o marco legal que iria conduzir o partido à deposição.

Aquele essencialismo que havia se alevantado em 2013 contra a política, os políticos e “tudo isso daí” ganhava corpo, rosto, expressão. Surgia o Leviatã de Toga, para o qual boa parte da imprensa passou a fazer assessoria sob o manto de jornalismo investigativo. O monstro se apresentou para ser o lobo do lobo. Apontei precocemente, convenham, tal disposição aqui e em toda parte, o que me rendeu não poucos dissabores.

Voltemos ao ponto de partida. Dados os critérios aqui estabelecidos, o arranjo não dará certo porque nem mesmo haverá um governo. Três partidos —o da Polícia, o de Chicago e o da Caserna— disputarão a primazia de conduzir o Estado, enquanto o chefe caça cavalos de Troia em provas do Enem, vigia os meninos para que não brinquem com bonecas nem façam esquisitices com os primos, vitupera contra Cuba, faz sinal de arma com os dedos e pendura roupas no varal.

Mas cabe a pergunta: se a economia tiver um desempenho ao menos medíocre, é preciso muito mais do que isso para manter o poder?

O ódio à política eliminou os espaços de interlocução de contrários e ocupou o território da contestação ao establishment, que perdeu os marcos de economia política para se expressar como moralismo estridente. Não se deve cometer o erro de achar que Bolsonaro acabará se acomodando ao molde institucional, que está, de resto, avariado.

O político só existe como tal, com a sua estupefaciente soma de inabilidades, porque se apresenta como o homem comum, excluído pelo sistema. O poderoso continuará a ambicionar o lugar da vítima vingadora. Os marcos do Estado democrático e de Direito continuarão a ser seus alvos. E conta, para tanto, com Sergio Moro como seu “sniper”.

“Mas o que fazer, Reinaldo?” Depende. Você quer o quê?

Heresia

A Divina Providência uniu as ideias de Olavo de Carvalho à determinação e ao patriotismo do presidente eleito
Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores no governo Bolsonaro

Medindo os presentes

No dia de hoje, você pode estar inventariando os presentes ou, quem sabe, indo mais longe ainda: refletindo mais uma vez sobre o presente momento. E vivendo em cheio e constrangido o peso do surto sociopsicológico do país.

E, no entanto, o Natal é o momento de receber presentes e, no fundo, todo momento proporciona um presente. Viver é estar presente e, simultaneamente, ser presenteado — ganhar ou perder alguma coisa ou pessoa.

No curso de uma vida, a ocasião natalina é mestra em proporcionar inventários e comparações. Certamente porque o Natal é uma festa obrigatória no sentido coercitivo. “Do Natal e do carnaval, diz um amigo, a gente pode fugir, mas ninguém escapa!”.

Como toda repetição com extraordinária força coletiva, ele, de um lado, abole o tempo conjuntural mas, de outro, faz com que se observem os natais de hoje em relação com os de “antigamente”.


Meus natais originais trazem de volta os “presentes” mais do que a “árvore enfeitada com uma neve que eu só fui conhecer aos vinte e pouco anos, no Natal de 1963, em Cambridge, Massachusetts, quando na janela de minha humilde casa de uma vila de estudantes harvardianos eu fui presentado com grossos flocos brancos que lentamente caíam de um céu de púrpura aos borbotões, e — eis meu sobressalto — não faziam barulho como as chuvaradas do Brasil. O clima do Natal no norte era diverso. No nosso, o sorvete, ainda visto como artigo de luxo em casas sem geladeira, era servido como algo especial; coisa impossível de conceber naquele momento em que se via o gelo caindo do céu, pintando de branco o asfalto da rua — congelando o mundo.

Para nós, os cinco meninos e a menina com os quais compartilhei os anos decisivos de minha vida, o Natal significava basicamente presentes. E para cada menino daqueles tempos uma fantasia que só os Reis Magos (corre a lenda que foram eles que inventaram os presentes de Natal) poderiam tornar real. Durante anos eu sonhei com uma máquina de telegrafia igual à que vi na estação de trem de Rio Largo, Alagoas. Depois passei a freudianamente fantasiar uma pistola automática das que eram usadas nos filmes policiais. Um dia, o prêmio passou ao aperto de mãos e o suave beijo da namorada já sentidos e antecipados pelo carinho do pai, da mãe, de tia Amália, de vovó Emerentina e pela austeridade de vovô Raul.

Hoje ainda quero ver, e vejo que, a despeito de tudo — e acima de tudo, da burrice emocional, pomposa, onipotente, narcisística, autocrática e jurídica que pode nos levar ao suicídio nacional — o Natal ainda é o tempo do riso feliz.

Não é a festa das gargalhadas dos carnavais que não podem durar muito porque matam. Mas é a festa do sorriso discreto e contente com ele mesmo. De um tempo no qual a felicidade entra, mesmo espremida, em nossas pequena vidas e nos faz viver as nossas plenitudes. E o menino dentro do velho avô Beto, cujo amor o faz chorar de felicidade pelas netas e netos, e pelo filho perdido, mas sempre achado nos outros. Sorrir e sonhar com todo o amor que teima em nascer da raiva, da frustração, da má-fé e da resistência a um Brasil que resiste a ser igualitário.

Os presentes de Natal concretizam a invisibilidade do lixeiro, do porteiro e dos empregados. Dos que fazem coisas para nós com honra e competência, garantindo a nossa (falsa) visão superior de nós mesmos. O presente revela os presentes de nossas vidas. Medidos uns contra os outros, avaliamos onde estamos e quem somos. É quando nos damos conta da consciência e da vida e de quanto devemos uns aos outros é o nosso milagroso presente.

Brasil de fim de ano


Otimismo pré-posse é coisa altamente perecível


Ás vésperas da posse de Jair Bolsonaro, o Datafolha informa que é grande, muito grande, enorme o otimismo do brasileiro com o futuro da economia: 65% avaliam que a situação vai melhorar nos próximos meses. Trata-se de um nível recorde de esperança, comparável ao que havia no alvorecer do primeiro mandato de Lula. Para tirar proveito da conjuntura, o novo governo precisa correr, pois o otimismo pré-posse costuma ter prazo de validade curto.

O economista Mário Henrique Simonsen ensinou que "o brasileiro só é otimista entre o Natal e o Carnaval." Nesse trecho do calendário, o otimismo é um processo mental que faz com que tudo pareça lindo, inclusive o feio. Tudo bom, especialmente o ruim. Tudo certo, mesmo quando errado. De resto, num instante em que a economia está sedada e o país convive com 12 milhões de desempregados, o otimismo tem o tamanho e a audácia do desespero.

Se tiver juízo, Bolsonaro aproveita a onda para apressar a aprovação de reformas no Congresso, especialmente a da Previdência. Segundo o Datafolha, 67% dos brasileiros acham que sua situação econômica pessoal vai melhorar. Em março de 2013, sob Dilma Rousseff, 68% achavam a mesma coisa. Três meses depois, o asfalto ferveu na célebre jornada de junho de 2013. Deflagrou-se ali um processo de derretimento político que desaguaria no impeachment.

Os únicos lugares onde o otimismo e a esperança vêm antes do trabalho são as pesquisas de opinião e o dicionário. Ao discursar na cerimônia em que foi diplomado pela Justiça Eleitoral, o próprio Bolsonaro sintetizou com muita precisão o que o brasileiro espera do governo dele: "Nossa obrigação é oferecer um Estado eficiente, que faça valer a pena os impostos pagos pelo contribuinte". Se demorar, o capitão logo descobrirá que, em política, a esperança, por perecível, é a última que mata.

Solução simplista

O futuro ministro da Cidadania, Osmar Terra, manifestou a intenção de limitar o funcionamento de bares e restaurantes para a venda de bebidas alcoólicas. Segundo ele, a medida contribuiria para a redução dos homicídios e acidentes de trânsito no país.

Trata-se de uma proposta controvertida, sem comprovação em casos reais, com a exceção de alguns exemplos isolados. Ele cita o caso da cidade de Diadema, em São Paulo, que reduziu a taxa de homicídios após obrigar os bares a fecharem às 23h.

O Brasil é campeão em assassinatos e acidentes de trânsito, em parte devido ao abuso de bebidas alcoólicas. No entanto, há outros fatores motivadores, tanto que em países que não proíbem o álcool essas tragédias não acontecem nas mesmas dimensões.


Se adotada, mesmo que limitada a regiões mais violentas, a proposta impactaria a economia, o emprego e até o ambiente social. O setor de bares e restaurantes movimenta perto de 1 milhão de estabelecimentos, empregando 6 milhões de trabalhadores.

Além disso, bares e restaurantes são lugares onde os cidadãos exercem a sociabilidade, que não seria a mesma se não tivesse esse combustível criado pela cultura. Na escuridão das cidades, bares e restaurantes são sinais de vida depois de certas horas.

A proibição não é solução. Se for proibido de beber em lugares abertos, o cidadão vai beber em casa e em lugares fechados. Durante os anos da Lei Seca, nos EUA, a violência e o crime explodiram, antecipando o que ocorre hoje com as drogas no mundo.

A paz social tem a ver com a educação. Os hábitos sociais têm relação com a cultura. Ambos indicam o grau de civilidade de uma sociedade. No entanto, os governantes ainda acreditam que podem resolver os problemas com medidas de força.

Já deveríamos ter aprendido que soluções simplistas não resolvem problemas complexos.

Quem é quem no governo

Concluída a formação de sua equipe de governo, a chave para que o presidente eleito Jair Bolsonaro consiga implementar as medidas mais importantes do seu programa, a começar pelo ajuste fiscal e a reforma da Previdência, é a sua relação com o Congresso. Até agora, sustentou a promessa de não ceder ao toma lá, dá cá, loteando a Esplanada dos Ministérios entre os partidos que o apoiam, mas não conseguiu ainda viabilizar candidaturas robustas para o comando do Senado e da Câmara. A conversa de que não vai interferir na disputa é lorota: se tiver força, viabilizará aliados de confiança no comando do Congresso.

Bolsonaro montou um governo com cinco eixos: o militar, o econômico, o político, o ideológico e o técnico. Por enquanto, quem dá as cartas na administração são a troica de generais Augusto Heleno (GSI), Carlos dos Santos Cruz (Secretaria de Governo) e Fernando de Azevedo e Silva (Defesa); na equipe econômica formada pelo ministro da Fazenda, Paulo Guedes, destacam-se o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, o presidente do BNDES, Joaquim Levy, e o presidente da Petrobras, Roberto Castelo Branco, todos muito bem blindados na política. No núcleo técnico, o superministro da Justiça, Sérgio Moro; o ministro de Minas e Energia, Bento Costa e Lima, e o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, os dois últimos, militares.


A muvuca no governo será protagonizada pelos núcleos político e ideológico, que são os principais eixos da articulação com a política e a sociedade, e dos problemas com o Congresso. No núcleo político, o ministro da Casa Civil, que coordena a transição, ainda não conseguiu formar uma base suficientemente robusta e coesa para aprovar o ajuste fiscal e a reforma da Previdência. Os ministros do Desenvolvimento Social, Osmar Terra (PMDB-RS); da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MT); e da Saúde, Luiz Mandeta (DEM-MS); têm amplo apoio político no Congresso à frente das respectivas pastas, mas são porta-vozes de interesses segmentados e/ou corporativistas. Além disso, não darão muito pitaco na relação com o Congresso, a cargo de Lorenzoni e do general Santos Cruz.

O grande balacobaco é a pauta ideológica do governo, na qual as estrelas serão os ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e o ministro da Educação, Ricardo Velez Rodrigues. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, condenado por improbidade administrativa, já foi abatido na pista. Ambos são pautados pelo filósofo Olavo de Carvalho e pelos filhos de Jair Bolsonaro, principalmente o deputado federal eleito por São Paulo com a maior votação do país, Eduardo Bolsonaro. Flávio Bolsonaro, senador eleito pelo Rio de Janeiro, teve que baixar a bola por causa do escândalo protagonizado por seu ex-assessor Fabrício Queiroz, que mantinha uma caixinha fabulosa no seu gabinete parlamentar na Assembleia Legislativa fluminense. Vivíssimo, Queiroz tomou chá de sumiço, já faltou a dois depoimentos e ninguém sabe por onde anda.

Do ponto de vista eleitoral, a pauta ideológica do governo Bolsonaro mira o PT como inimigo principal. É extremamente conservadora do ponto de vista dos costumes, mas continua sendo uma pauta identitária, com sinal trocado. A pauta do país são a violência, o desemprego e a saúde pública, a infraestrutura e o ajuste fiscal, principalmente, temas sobre os quais o governo precisará dar respostas objetivas. Nesse aspecto, a relação com o Congresso é fundamental. A pauta ideológica tem combustão espontânea no parlamento, mas o mesmo não acontece com as demais tarefas do governo. As raposas políticas que sobreviveram ao tsunami eleitoral de outubro passado sabem disso, entre as quais, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que sonha com a reeleição, e o ex-presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que está costeando o alambrado para voltar ao comando do Congresso.

Um capítulo à parte no jogo político são os três filhos de Bolsonaro, Eduardo, Flávio e Carlos, que cuida da comunicação, que terão protagonismo político imprevisível. Até agora, não desceram do palanque eleitoral e volta e meia criam constrangimentos para o pai, mas nem por isso perderam a condição de interlocutores diretos do presidente da República. A bancada do PSL também vai dar trabalho, porque chega com muita gana de dar as cartas no Congresso, o que naturalmente não é fácil para quem ainda está arrumando a mudança.

Bolsonaro montou um governo em bases inéditas, sem compartilhar o poder com os partidos. Está à sombra das Forças Armadas, em razão da forte presença militar no Palácio do Planalto. Não está claro se gerenciará o governo pela demanda da sociedade, o que depende muito do desempenho dos ministros das atividades-fim, ou se adotará uma estrutura vertical, na qual os ministros da área meio, sobretudo os militares, funcionarão como correias de transmissão. Uma coisa, porém, é certa: continuará se relacionando diretamente com seus eleitores pelas redes sociais, e se digladiará com a imprensa sempre que for criticado.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Hamlet do Brasil

O bode na sala

No final de ano, costumo tirar uma semaninha de descanso. Continuo lendo e escrevendo. Mas tento me libertar dessa gigantesca máquina de informação que nos bombardeia, incessantemente, com notícias, imagens, logotipos, memes, posts e tuítes. É uma forma de sobreviver ao estresse, à produção de cortisol que inibe a glicose no hipocampo e danifica a memória. Com o tempo, um cérebro absolutamente informado corre o risco de ser um cérebro em pandarecos.

Mas, como sou brasileiro, tomo minhas precauções. No início do mês, escrevi um artigo intitulado “Cuidado com dezembro”. É o mês que os políticos preferem para suas decisões absurdas, pois há férias, e o espírito de Natal embala as pessoas comuns. O artigo era resultado de uma experiência de meio século, pois seu ponto de partida foi o AI-5, em 13 de dezembro de 68.

Vivendo e aprendendo. As táticas parecem cada vez mais sofisticadas. Marco Aurélio decidiu numa canetada libertar 169 mil presos (segundo a Procuradoria-Geral da República), Lula inclusive. Não deu certo. Era claro que não daria. Lula nem chegou a arrumar as malas.

No meio do ano, acompanhei da Rússia uma tentativa semelhante. Para mim, era evidente que não daria, mas a cena política teve sua dose de drama. A decisão de Marco Aurélio era tão absurda que durou apenas algumas horas. Foi derrubada, e todos que a temiam respiraram aliviados.


O que há de novo neste dezembro é a tática do bode na sala. A libertação de 169 mil presos cumpriria esse papel. O bode foi retirado, e poucos se deram conta de que Lewandowski autorizou um aumento do funcionalismo, que Rodrigo Maia promulgou uma lei que permite às cidades gastar mais, e os deputados deitaram e rolaram nos projetos de isenção fiscal e aumento do Fundo Partidário. Eles sabem que isso tudo resulta em quebradeira, mas contam, como sempre contaram, com alguma forma de aumentar impostos.

A relativa frieza não é incapacidade de me indignar. Apenas tento economizar energia, sobretudo depois de um ano tão intenso como foi 2018.

Se mergulhar acriticamente no turbilhão de notícias e polêmicas nacionais, estou perdido. De um modo geral, tenho acesso a elas depois de um dia de trabalho na rua ou no mato.

Às vezes, consigo uma precária conexão no hotel e caio num intenso debate sobre Jesus na goiabeira. Sinceramente, por mais calorosos que sejam os argumentos, minha pergunta não faz sentido, apesar de falarmos o mesmo idioma: eram goiabas brancas ou vermelhas?

Isso porque andei lendo um texto sobre Karl Barth, e sua mensagem é clara: traduzir a revelação divina em termos que não são os da fé está destinado ao fracasso.

Na infância, a árvore de preferência é a jabuticabeira. Havia a chácara de um turco, e subíamos para colher algumas jabuticabas. Os empregados às vezes respondiam com tiro de sal e atingiam o bumbum dos meninos. Doía.

Assim como no sertão de Guimarães Rosa, Deus, se vier, terá de vir armado; na chácara do turco, Jesus teria de vir acolchoado.

Observo que, nos Estados Unidos, alguns escritores acham que o ano de 2018 foi de muita raiva. Isso aconteceu também no Brasil. Eles propõem a catarse e a reconciliação como antídoto.

É um remédio fácil de receitar. O difícil é encontrar a fórmula. Em dois lugares importantes, Minas e São Paulo, a diplomação dos deputados, que sempre é uma cerimônia tediosa, resultou em pancadaria.

Um livro chamado “Seis propostas para o próximo milênio” aconselhou a leveza como uma das qualidades para o século XXI. No Brasil de hoje, consigo apenas uma semaninha para levezas. Perco uma parte de dezembro advertindo sobre armadilhas da época e entro janeiro com um pé atrás, desde o naufrágio do Bateau Mouche e o deslizamento na Enseada do Bananal, em Angra.

Muito possivelmente, teremos um ano melhor. Se não houver reconciliação, apenas um pouco mais de tolerância já pode ajudar. O resto são chuvas de verão, seu potencial destruidor, e cerca de 500 cidades brasileiras com um índice absurdo de infestação de Aedes aegypti, o mosquito de dengue e chicungunha.

Mas isso já e falar de volta às aulas, em pleno período de férias. Por enquanto, vamos saudar o bode na sala: não soltaram 169 mil criminosos. Cobraram apenas alguns bilhões pela gentileza.

Um país em tempos bicudos

O Brasil chega ao fim de 2018 em tempos bicudos. A polarização política se aprofundou, e a sociedade ficou mais dividida e intolerante. O país passou a viver uma situação de “mal-estar constitucional”, com ameaças à democracia e ao equilíbrio entre os poderes. O diagnóstico é do professor Oscar Vilhena Vieira, diretor da FGV Direito em São Paulo.

Em “A Batalha dos Poderes” (Companhia das Letras), ele situa o início da crise nas manifestações de 2013, que “colocaram em xeque a estabilidade de um sistema político que parecia consolidado”. De lá para cá, passaram-se cinco anos de turbulências. É difícil acreditar que estejam perto do fim.

O livro sustenta que a eleição de 2014 mudou para pior os padrões da disputa política. A petista Dilma Rousseff admitiu que poderia “fazer o diabo” para vencer, e produziu uma crise fiscal que acabou em recessão. O tucano Aécio Neves não aceitou a derrota, e contestou o resultado para “encher o saco”.

Depois viriam o impeachment de Dilma, que o autor define como “controvertido”, e a posse de Michel Temer, que se salvou de duas denúncias de corrupção e agora enfrenta a terceira.

Vieira afirma que o avanço da Lava-Jato acirrou a disputa entre a classe política e o estamento jurídico. A operação rompeu uma tradição de impunidade dos poderosos, mas abriu espaço a acusações de abuso e parcialidade. O Supremo Tribunal Federal não conseguiu escapar dos mesmos desgastes.

O professor escreve que a Constituição de 1988 deu superpoderes à Corte, abrindo caminho ao que ele chama de “supremocracia”. Na sua visão, o tribunal manteve uma atitude “omissa e reticente” na Era Collor, foi “deferente ao governo e ao Congresso” sob Itamar e FHC e se deslocou para o centro da arena política nos anos do PT.

Hoje é chamado para dar a palavra final sobre quase tudo. “Desconheço outro tribunal supremo do mundo que faça plantão judiciário para solucionar quizílias que os parlamentares não são capazes de resolver”, critica.

Para Vieira, a atuação do STF na proteção de direitos fundamentais é “bastante positiva”, mas o tribunal erra ao se meter demais em disputas políticas. Ele critica as decisões que derrubaram a cláusula de barreira e impuseram a perda de mandato por infidelidade partidária, estimulando a criação de novas siglas: “Sob a pretensão de corrigir falhas no sistema político, o STF contribuiu para torná-lo mais ininteligível”.

O professor defende que as decisões monocráticas deveriam ser “reduzidas ao máximo”, e pede uma atuação “mais colegiada, imparcial e com certa discrição”. “A autoridade do STF não pode ser exercida de forma fragmentada por cada um de seus ministros”, escreve. O noticiário dos últimos dias mostra que ele tem razão.

O livro foi concluído antes da eleição, mas o autor registrou sua preocupação com o favoritismo de Jair Bolsonaro, “líder de extrema direita com posições explicitamente contrárias à Constituição”. Em outro trecho, ele deixou um alerta: “O fato de a Constituição ter sobrevivido a esse período de forte turbulência não significa que sairá ilesa do novo ciclo da política brasileira”.

Pensamento do Dia


Populistas versus humanistas

Para enfrentar a crise ambiental, não bastam a cidadania e a democracia, inventadas para administrar cidades. Será preciso criar um sentimento de “planetania”, que vá além da cidadania, e uma prática de “humanocracia”, que vá além da democracia

Dificilmente um prefeito convence seus eleitores a elevar hoje o preço da gasolina, para evitar que o nível do mar suba no final do século. Ainda que tivessem solidariedade com as próximas gerações, os eleitores sabem que o problema climático é planetário, não é provocado apenas pelos carros de sua cidade.



Com seus interesses locais e visão de curto prazo, o eleitor de um país não representa a humanidade, de hoje e do futuro. Promessas de emprego, renda e consumo no presente representam melhor a vontade dos eleitores do que a ideia de salvar a Terra no futuro. Por isso, quando os governantes elaboram pactos internacionais, eles têm dificuldades em ratificar e cumprir essas decisões por seus eleitores, na hora em que os sacrifícios ficam conhecidos.

O mesmo ocorre com outros problemas do mundo global, como a imigração. O fechamento de fronteiras atrai mais apoio do que a proposta de aceitar imigrantes. Os eleitores não gostam de sacrifícios para proteger o meio ambiente, nem medidas de abertura de fronteiras para receber imigrantes que vão ocupar suas ruas, seus empregos, suas escolas. Para o eleitor, “nós” representa a família, a cidade ou o país, não a humanidade e o planeta.

Daí a dificuldade em obter simpatia popular para acordos como de Paris, sobre meio ambiente, e o de Marrakech, sobre migração, assinados por presidentes nacionais que serão substituídos por novos presidentes, quase sempre com ideias contrárias, quando os eleitores elegem populistas nacionalistas. A democracia, nacional e imediatista, não tem visão de longo prazo, nem é solidária internacionalmente: não é humanista.

Mesmo autores que falam dos riscos da democracia analisam a fragilidade do regime democrático na ótica dos problemas internos dos países, e não pelo fato de que a democracia não oferece solução para os problemas contemporâneos, globais e de longo prazo. Para estes autores, os problemas da democracia decorrem da maneira como líderes e partidos agem em suas disputas internas; não porque o Planeta e a Humanidade se transformaram em temas políticos, não mais apenas filosóficos, ainda que os eleitores não captam o novo sentimento e a nova lógica. A democracia ficou atrasada em relação aos avanços tecnológicos e sociais em escala global. Os limites nacionais das regras democráticas não permitem cuidar, de maneira plena, dos limites da ecologia, nem da expansão da migração.

Por isso, o debate político não está mais entre as velhas “direita” e “esquerda”, mas entre utópicos humanistas e populistas pragmáticos. E estes tendem a ganhar, até quando a pedagogia da catástrofe transformar o eleitor provinciano em um humanista. Mas quando isto acontecer, já pode ser tarde.

Para enfrentar a crise ambiental, não bastam a cidadania e a democracia, inventadas para administrar cidades. Para cuidar desse Novo Mundo será preciso criar um sentimento de “planetania”, que vá além da cidadania, e uma prática de “humanocracia”, que vá além da democracia. Mas o futuro visível não nos permite prever um eleitor globalizado em uma democracia planetária. A “humanocracia” vai exigir respeitar o voto do eleitor local e imediatista, mas sob um escudo humanista, contando com valores éticos universais que pairem acima das decisões eleitorais nacionais e imediatistas: o equilíbrio ecológico, a sobrevivência das espécies, a sustentabilidade do processo produtivo e de consumo, a solidariedade humana, independentemente da nacionalidade.

Preso como vendilhao do templo, Lula exalta Jesus

Em seu primeiro Natal no cárcere de Curitiba, Lula endereçou uma carta aos participantes de uma vigília por sua libertação. A certa altura, escreveu como se tentasse traçar uma analogia qualquer entre o seu martírio e o suplício de Jesus, “um marceneiro que foi perseguido pelos vendilhões do templo, pelos soldados e pelos promotores dos poderosos…”

Oito meses de cadeia não foram suficientes para convencer Lula de que seu histórico penal o aproxima mais dos vendilhões do templo do que do Cristo. Tomando-se o Estado brasileiro como um templo, o presidiário petista é, hoje, o principal símbolo da usurpação desse espaço sacrossanto.

Sob Lula, biografias épicas foram trocadas por pequenos confortos; autoridades ajustaram propinas dentro do templo; líderes partidários converteram repartições públicas e estatais em centros de coleta de verbas roubadas; congressistas venderam apoio congressual; ministros da Fazenda trocaram desonerações por propinas; dirigentes de bancos públicos morderam pedaços dos empréstimos que liberaram; gestores de fundos de pensão de estatais lucraram com a ruína alheia.

“A luta por um mundo melhor continua”, escreveu Lula. Tem razão. No caso do Brasil, a melhoria passa pelo encarceramento de vendilhões que fingem ser divindades.

No Supremo, pela porta dos fundos

A lambança do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello a poucos minutos do expediente de fim de ano do Poder Judiciário, ao tentar soltar 169 mil presos condenados pós-segunda instância, entre eles Lula, despertou mais uma vez a fúria popular. E com ela emergiu também a criatividade das fórmulas desejadas para substituir a atual indicação de seus componentes pelo presidente da República, com aval do Senado Federal após sabatina. Eleição direta dos ministros, concurso público para admissão e indicação por notáveis ou mesmo associações da classe jurídica são, entre elas, as mais citadas.


Como dizia minha avó, “devagar com o andor, que o santo é de barro”. E seguindo instruções de Jack, o Estripador, “vamos por partes”. Quem tem conhecimento mínimo do resultado de eleições diretas, principalmente para ocupantes de colegiados, como o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais, não pode nutrir a mínima esperança de que o voto direto livre os tribunais superiores dos vícios de sempre com a escolha dos mais sábios e mais justos. Concurso público pode escolher mais membros com mais conhecimentos para lidarem com informações sobre determinada área, mas não há prova, oral ou escrita, que escolha entre os pares o mais habilitado a dirimir questões sobre a adequação de determinada lei ao texto constitucional vigente. Não há notáveis ou instituições isentas da interferência de lobbies e que tais na escolha de um profissional para ocupar um cargo de tal relevância e que representa o mais elevado posto na carreira de um profissional do Direito.

A vida do protagonista citado no início deste texto dá a oportunidade de indicar caminhos mais seguros para levar gente mais capacitada e equilibrada para ocupar o topo. Marco Aurélio Mello é o exemplo perfeito de como o patrimonialismo atravessou incólume todas as tentativas de superá-lo e resiste, como entulho, no terreno das instituições republicanas, acentuando suas imperfeições e demolindo a reputação de seus agentes. Ele entrou na carreira pública como procurador na Justiça do Trabalho, invenção de Getúlio Vargas depois da Revolução de 1930, para funcionar como elo no aparelho de poder de um tipo de populismo latino-americano, o trabalhismo. Uma espécie de fascismo cucaracho, também estrelado por Juan Domingo Perón, na Argentina, e Haya de la Torre, no Peru.


O cargo não foi obtido por concurso público, mas por nomeação patrocinada pelo pai, Plínio Affonso de Farias Mello, patrono até hoje reverenciado no ambiente do sindicalismo patronal como uma espécie de benemérito da classe dos representantes comerciais. O prestígio de Plínio Mello era tal que o último presidente do regime militar, João Figueiredo, manteve aberta a vaga no Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro para o filho dele, Marco, completar 35 anos, em 1981, e com isso cumprir preceito legal para assumi-la. O prestígio paterno levou-o ao Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, onde Fernando Affonso Collor de Mello o encontrou para promovê-lo – tcham, tcham, tcham, tcham! – para o Supremo Tribunal Federal (STF).

Neste caso, em que se entrelaçam parentela, compadrio e interesses corporativos, Fernando merece citação especial, pois seu avô materno, Lindolfo Collor, revolucionário de 1930, foi ministro do Trabalho. É também uma história com marcas de chumbo e sangue: Arnon, pai do ex-presidente, irmão de Plínio e tio de Marco Aurélio, atirou em Silvestre Péricles de Góes Monteiro, seu inimigo em Alagoas, no plenário do Senado e matou, com uma bala no coração, o acriano José Kairala, que entrou na tragédia como J. Pinto Fernandes, citado no último verso do poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade: “que não tinha entrado na história”. É um caso comum na era dos “pistolões” e pistoleiros.

No STF Marco Aurélio sempre foi voto vencido e um espírito de porco até que encontrou um rumo depois que a ex-presidente Dilma Rousseff nomeou sua filha Letícia desembargadora no Tribunal Regional da 3.ª Região, no Rio, demonstração de como o nepotismo se perpetua. Foi desde então que o campeão das causas perdidas abraçou cruzadas que atendem aos interesses petistas e aos de nababos da advocacia de Brasília, que defendem a troco dos dólares que ganharão, quando for, se é que vai ser, extinta a jurisprudência que autoriza a prisão de condenados em segunda instância. Foi em nome dela que cometeu o tresloucado gesto.

O antagonista no episódio, Dias Toffoli, presidente do STF, mas adepto da mesma cruzada, até tentou ser juiz por concurso, mas foi reprovado em dois. Como defensor de José Dirceu e do PT e advogado-geral da União de Lula, contudo, ascendeu ao cargo que hoje ocupa. O posto, aliás, já tinha pertencido antes, com graves danos para a Constituição, rasurada por ele na ocasião do impeachment de Dilma, a Ricardo Lewandowski. Este foi nomeado pelo quinto constitucional para o Tribunal de Alçada Criminal por indicação de seu então chefe, Aron Galant, prefeito de São Bernardo do Campo. Extinto o órgão, foi transferido para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e chegou ao STF por mercê de suas ligações de compadrio e amizade com o casal Marisa e Lula da Silva. O monturo patrimonialista só será desmanchado se forem fechadas a porta dos fundos do STF, pela qual entram os quintos, e a Justiça trabalhista.

Este conto de trancoso terá um final feliz se loucuras como a de Marco Aurélio e do desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, em Porto Alegre, não forem sequer tentadas. Toffoli marcou a sessão plenária do STF para decidir sobre a jurisprudência da possibilidade de prisão em segunda instância para 10 de abril. Mas só haverá solução final se Bolsonaro e Moro levarem à aprovação do Congresso uma lei para determiná-la. O resto é lero.

sábado, 22 de dezembro de 2018

Feliz Natal


Voltamos depois de um spa natalino com ventilador, K-suco e grumete 


Organiza o Natal

Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.


Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.

A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.

A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.

Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.

O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.

A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.

O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.
Carlos Drummond de Andrade, “Cadeira de Balanço”