sábado, 29 de dezembro de 2018

'Este Brasil ficará nas minhas veias por muito tempo'

Há poucos dias, meu colega Tom Avendaño, que era o correspondente do EL PAÍS no Brasil, teve que retornar à redação central de Madri após dois anos de permanência na sede de São Paulo. Tom me deixou como despedida a tristeza de precisar ir embora. E isso que chegou aqui com medo de não ser capaz de ler a complexidade do país. Ao partir me fez uma confissão que representa um elogio aos brasileiros: “Este país marciano, Juan, ficará nas minhas veias por muito tempo, porque aqui me descontruíram tudo o que eu dava como certo e tornaram a me construir, talvez melhor”.


Para me explicar, literariamente, por que lhe doía ter que ir embora do Brasil, Tom, que é um esteta da palavra, escolheu a metáfora do conto Felicidade Clandestina, da escritora brasileira Clarice Lispector, considerado uma das joias da literatura mundial. Uma menina louca para ler o livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, pede a uma colega que o empreste. A pequena é malvada e a faz ir várias vezes à sua casa. A cada vez lhe dá uma desculpa para não lhe entregar o livro. Sua mãe, que tinha visto a paixão da pequena, acaba por emprestá-lo. Tamanho era o medo de ter que devolvê-lo que a menina vai resistindo a lê-lo o quanto pode. “Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”, escreve Clarice.

Tom traça um paralelo do conto com sua relação de amor pelo Brasil e a tristeza de precisar ir embora. “Como à menina de Clarice, a mim cabe agora devolver o livro”, me diz. Uma leitura do Brasil que ele gostaria de ter prolongado. Esse Brasil, do qual Tom sofreu para se despedir, é o que deixaram também com nostalgia dois outros colegas meus, Antonio Jiménez e Xosé Hermida, ambos ex-diretores da edição Brasil, hoje dirigida por Carla Jiménez.

Às vésperas da chegada do novo 2019, com todas as incógnitas que acarreta, esse “não querer ir embora do Brasil” de meus três colegas espanhóis me fez pensar que o Brasil é um e muitos ao mesmo tempo. Existe hoje o dolorido, o perplexo, o desencantado com a política, o violento, o das injustiças sociais. Existe o Brasil com medo, o envergonhado, e o de quem gostaria de ir embora dele. Mas existe outro não menos verdadeiro, que talvez sejamos capazes de detectar melhor os estrangeiros que compartilhamos suas dores e alegrias. É o Brasil que Tom diz que ficará em suas veias por muito tempo. É o Brasil, já contado nesta coluna, dos outros dois companheiros, Antonio Jiménez e Xosé Hermida. Os três, ao se despedirem, fizeram constar que tinham chegado a este país conscientes de que se tratava de um continente não fácil de abranger e analisar. O que lhes tinha ocorrido no pouco tempo de sua experiência brasileira para que acabassem fisgados e sem vontade de voltar ao seu país? Antonio foi explícito: “Este país me mudou. Agora me sinto mais leve”, e acrescentou: “No Brasil, despertou em mim quando cheguei o desejo de ser mais feliz”. Xosé também se mostrou triste de partir. O que mais tinha apreciado dos brasileiros havia sido “a capacidade que demonstram de não amargarem sua vida inutilmente”. Aqui descobriu, por exemplo, que “a Europa é mais triste que o Brasil”. Só a grande desigualdade social lhe pareceu uma das mais graves do mundo.

Esse Brasil capaz de devolver a pessoa melhor do que quando chegou, capaz de ensinar a ser feliz, é também um Brasil verdadeiro. Que ensinou meus colegas a descobrirem que aqui não existe a solidão que hoje aflige milhões na rica e culta Europa, porque o brasileiro sabe compartilhar sua vida com uma naturalidade que estranha e cativa. Sua capacidade humana de comunicação é proverbial, e uma de suas maiores riquezas naturais, mais que o petróleo. Tomara que esse Brasil hoje ofuscado pelos demônios da política possa ressurgir com sua força real, que não morreu. Está só esperando recuperar seu velho direito de cidadania.

Feliz 2019 para o Brasil que não se rende a perder o que conquista a nós, estrangeiros, quando chegamos, e que nos faz ter saudade quando chega a hora de partirmos.

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