segunda-feira, 13 de junho de 2016

Se possível, sem jeitinho

É possível enumerar fatos. Colocá-los em ordem é questão de gosto. Mas é função de escolha como eles são divididos em passos que explicariam as etapas de como chegamos até aqui. Os fatos são muitos. E devidamente selecionados, dão existência a narrativa ao gosto de quem conta a historia.

Seria relativamente simples. E, como a maior parte dos raciocínios simplificados, pouco produtivo. Mais produtivo seria colocar em segundo plano o como chegamos a este ponto. O mais importante talvez seja o porque a realidade se transformou neste vale de desconfiança, desonestidade e degradação moral, ética e institucional.

Daria para explicar de varias maneiras. Mais comumente, diz-se que toda esta desonestidade seria função exclusiva da combinação de oportunidade, impunidade e recompensas financeiras. O crime, por esta versão, seria cometido por quem pode, quando fosse compensador e pouco arriscado.

Se assim fosse, ou melhor, se fosse somente isso, seria simples prevenir que tudo se repita no futuro. A chave seria combinar punição, aumentar o controle e maximizar o custo da transgressão. Bastariam leis mais severas, punições mais rigorosas e o fim da impunidade. Estas são, sim, partes importantes do diagnostico e da solução. Mas não parece ser tudo.

Não é natural que tantos escândalos, tão grandes, tão numerosos, tão importantes tenham sido ignorados por tantos anos. Em retrospecto, não faz sentido. Não explica como um país inteiro pudesse ser alheio a este volume de delitos e transgressões morais, legais, éticas. Algo maior ter acontecido.

Não foram acometidos de cegueira deliberada somente aqueles beneficiados direta ou indiretamente pelos esquemas armados. Foi mais amplo. Toda a sociedade escolheu ignorar os sintomas. E insistiu em acreditar na perpetuação de um sistema já apodrecido e que inevitavelmente entraria em colapso. Como é sempre o destino das fraudes.

Uma explicação possível seria a de que neste lugar que nunca primou pela justiça (ou mesmo pelo acesso a ela), prevaleceu sempre o jeitinho. E jeitinho é simplesmente uma maneira de dizer que corrupção é não somente inevitável, mas também necessária (e portanto até desejável) para a realização de qualquer projeto ou ambição.

Acontece que jeitinho corrói a alma. Sufoca a vontade. Apodrece projetos. Afoga sonhos. Jeitinho, portanto, destrói a cidadania. Condena cidadãos a eterna negociação na compra de facilidades vendidas por especialistas na criação de dificuldades.

Convém, portanto, que os cidadãos se comportem como tais. E assumam a sua parcela de responsabilidade pela leniência com que, por qualquer razão, tenham tratado os primeiros indícios de que havia algo de podre. Ser possível, sem jeitinho.

Pijama e tornozeleira

“Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase.” Concordo com esse verso de Drummond, mas as coisas, às vezes, se misturam com as pessoas, como o sutiã, o chapéu e os óculos. E às vezes aterrorizam a vida das pessoas como a bomba, ou anunciam novos tempos, como o transistor, computadores.

Lembro-me da aparição do ar-condicionado e de como os restaurantes brasileiros anunciavam com orgulho: temos ar-condicionado. A tornozeleira eletrônica é um dado novo no cotidiano brasileiro. Teoricamente pode ajudar o país a atenuar o problema carcerário. Permite que um pequeno número de funcionários possa controlar muitos condenados, reduzindo a superlotação e economizando os custos com tanta gente presa. Como todas as outras coisas, a tornozeleira pode ter um uso equivocado.

Para mim foi surpreendente o pedido de Rodrigo Janot para colocar tornozeleira eletrônica em José Sarney, um ex-presidente de 86 anos. O tema nos chegou pela metade. Janot pede a prisão de parte da cúpula do PMDB, inclusive Renan Calheiros e Romero Jucá. Eduardo Cunha também teve sua prisão preventiva pedida. Seu caso é óbvio. Mas os outros ainda dependem de dados que até o momento não conhecemos.

O que se sabe de Sarney, pelas gravações, é que aconselhou Sérgio Machado a falar com um amigo de Teori Zavascki, para influenciá-lo. E é contra a delação premiada para quem esteja na prisão. O que Sarney disse, nas gravações, é que um projeto de mudar a delação premiada mostraria que, realizado com presos, esse instrumento legal parece tortura.


Um vice-líder do governo Dilma foi mais longe: a delação premiada é a tortura do século XXI. Tanto ele como Sarney conhecem pouco de tortura e menos do século XXI. Com a polícia investigativa e bem equipada, o preso é confrontado com tantas evidências que a delação premiada acaba sendo um alívio para ele. Sempre defendi a delação premiada, inclusive contra a bobagem de Dilma ao compará-la ao caso do delator Joaquim Silvério dos Reis. Aquilo aconteceu na Inconfidência Mineira; uma coisa são conspiradores anticoloniais, como Tiradentes, outra coisa são políticos e empreiteiros que assaltaram a maior empresa nacional. No debate sobre a delação ironizo os que se colocam contra ela, ou mesmo os que querem reduzir seu alcance. No entanto, não vejo crime ao discordarem.

A cúpula do PMDB é conhecida de todos. Muitos acham que, por alguma razão, seus expoentes deveriam estar presos. Isso não exime os procuradores de apresentarem as razões de uma forma inequívoca. Para começar, são mais hábeis que o PT e, habitualmente, não se defendem atacando, mas com base em alguns princípios do estado de Direito, como por exemplo a liberdade de opinião.

Por mais problemáticas que sejam as propostas sobre acordo de leniência e redução do âmbito da delação premiada, ambas dignas de um combate sem trégua, é impossível deixar de ver nelas o que, para mim, é a única condição em que um parlamentar merece o foro especial: o direito de falar e votar livremente.

Esperamos Janot durante todo esse tempo. Ele andou muito lentamente com a parte da Lava-Jato que lhe compete; isto é, a que envolve políticos e ministros. De repente, veio de uma forma brusca, como se quisesse compensar sua lentidão anterior.

Quem se interessa pelo futuro da Lava-Jato a vê como um excelente trabalho de combate à corrupção e um alento democrático ao demonstrar que a lei vale para todos. Qualquer deslize não é apenas ameaçador para os acusados, mas sim para aqueles que desejam o sucesso da operação e querem resguardá-la de todo tropeço inútil. A resistência é dura e bem articulada.

Nas gravações, Sérgio Machado fala da necessidade de preservar não apenas este governo, mas todos os que virão. Ele propõe uma espécie de vacina contra a Lava-Jato, para que se possa trabalhar em paz, livre de operações desse tipo. É uma espécie de sonho de consumo do sistema político brasileiro: colocar-se acima da lei.

É um sistema político que merece ser implodido. Mas nunca realizamos nossa tarefa num vazio histórico: há uma crise profunda e um esforço de reconstrução econômica. Mesmo sem esses componentes, pedidos de prisão precisam ser fundamentados e, em caso de vazamento, expostos na totalidade do texto.

Fixei-me na tornozeleira eletrônica de Sarney não só por sua história, mas também por sua idade. Aos 86 anos, a teia de limites que a própria biologia nos impõe — reumatismo, varizes, crises de gota — é muito mais eficiente do que os painéis de controle eletrônico.

Se tudo for bem apurado e processado, haverá cadeia para todos os envolvidos no processo de corrupção, inclusive o montado por Sérgio Machado que drenou milhões da Transpetro. É preciso realizar esse trabalho de depuração, em plena crise econômica e dentro dos parâmetros do estado de Direito, propostos pela Lava-Jato: a lei vale para todos. Que o diga o Japonês da Federal, que de tanto levar gente presa, acabou preso na própria PF de Curitiba.

Nem Freud conseguiria explicar a canalhice da política brasileira

A meu ver o PT e a política brasileira deveriam ser estudados por vários especialistas: Sociólogos, Psiquiatras, Psicólogos, Psicanalistas, Padres, Pastores, Rabinos … de modo que algumas conclusões fossem obtidas com relação à malignidade deste movimento! Os petistas são ladrões, corruptos por natureza, desonestos por opção, imorais pela falta de escrúpulos, antiéticos porque somente lhes interessam as conveniências e interesses pessoais. Certamente, os petistas precisavam ser analisados com rigor, para serem apuradas as razões pelas quais o movimento de fanáticos, de traidores desta pátria, de uma esquerda deletéria, podre, dotados de uma ideologia arcaica e altamente prejudicial à humanidade, continua (o partido) tendo ainda seguidores, apoiadores e até financiadores!

Não existe na História do Brasil algo parecido, sequer próximo, aos danos e prejuízos que o PT ocasionou ao Brasil e seu povo.

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Desde a falência moral à econômica, o PT vinha dizimando com o País e população de forma arrasadora, como um trator que empurrava qualquer resistência que se tentasse fazer, até o surgimento da Lava Jato.

Pois, agora, os petistas querem eleições, imaginando que o ladrão maior, Lula, consiga vencer mentindo e enganando o povo mais uma vez, e que eles continuem neste objetivo de roubar o país e suas estatais conforme vinham fazendo sem qualquer empecilho, sem qualquer admoestação.

A Operação Lava Jato resgatou uma parte muito pequena do orgulho nacional, evidenciando o maior golpe contra uma estatal da história moderna no mundo, porém não é o suficiente para que o PT seja enterrado, pois seus dirigentes continuam soltos, livres e gozando as delícias dos roubos praticados.

E mesmo que a Lava Jato conseguisse prender todos os envolvidos, haveria a corrupção parlamentar, imbatível, instituída, pois o Congresso Nacional é simplesmente o antro da canalhice e corrupção, a casa dos negócios espúrios, das vantagens, das chantagens, dos ladrões fantasiados de terno e gravata.

E não escapa quase ninguém, e não estou cometendo o pecado da generalização neste caso, basta que analisemos as contas de cada um dos deputados federais e senadores para constatarmos que quase todos são mesmos ladrões, desonestos e merecem punições exemplares.

O deputado Osmar Terra, por exemplo, PMDB/RS, foi flagrado cobrando em sua verba parlamentar um saco de pipocas, como despesa ligada à função de congressista, devidamente registrada no Portal da Transparência.

Da mesma forma, a deputada Maria do Rosário, PT/RS, cuja anatomia feminina é elogiada por Lula, teve o descaramento de cobrar em sua verba parlamentar os gastos com estacionamentos em shoppings, cujas quantias são de R$ 2,50!!!

Pois esses são os “representantes do povo”, meros gatunos, reles ladrões do dinheiro público, que Sérgio Moro e Lava Jato jamais resolverão, salvo se o povo tomar para si as decisões neste sentido, que deverão ser radicais, violentas, pois os políticos devem ter medo do povo, e não nós estarmos sendo vassalos desses porcos imundos, canalhas, inescrupulosos, bandidos, criminosos!

Fábrica de humildes

Curitiba favorece a humildade
O Antagonista

Querida, deu errado!

Primeiramente... Se Dilma tivesse chances de voltar ao cargo do qual foi afastada, ela não acenaria, como o fez em entrevista à TV Brasil, com a proposta de convocação de um plebiscito para que os brasileiros digam se são favoráveis a uma eleição presidencial antecipada. Caso ocorresse, a eleição serviria à escolha de um presidente para completar o mandato de Dilma. O que significa...

Dilma a Joana d'Arc (Foto: Antonio Lucena)
Antonio Lucena
Que Dilma tem plena consciência de sua impossibilidade de governar até o dia 31 de dezembro de 2018, como deveria. O impeachment passou na Câmara com os votos de 71,5% dos 513 deputados, obrigando-a a se afastar do cargo. Foi admitido no Senado com os votos de 67,9% dos 81 senadores. Esse percentual tem tudo para ser maior no ato final do julgamento dela.

Dilma caiu porque pedalou contra o Tesouro, fez um governo desastroso e perdeu apoio político. Quer voltar por pouco tempo, preocupada apenas com sua biografia. “Querida, deu errado. Você só tem de escolher por qual porta sair”, ensinou Lula a Dilma no dia em que ela se despediu do Palácio do Planalto. Hoje, refugiada no Palácio da Alvorada, espera que a sorte mude seu destino.

Para ela, bem que os brasileiros poderiam se encantar outra vez com a ideia de Diretas, já! Ou seja: nem Dilma, nem Temer, mas um terceiro. E já! E assim, devolvida temporariamente ao poder, Dilma sairia mais tarde dali pela porta de quem abdicou de direito adquirido pensando acima de tudo no país – Dilma, a generosa; Dilma, a abnegada; Dilma, a estadista.

Haveria outra porta pela qual a ex-presidente poderia sair: a do rotundo fracasso do governo provisório de Temer. Ela nunca admitirá que torça para que Temer fracasse, mas não faz outra coisa, não deseja outra coisa. Dane-se o país se esse for o preço a pagar para dar um lustro no que se dirá de Dilma no futuro. Golpeada, Dilma caiu, mas o golpista-mor, também. Vítima e algoz. Lorota!

Temer é visto com muita desconfiança, e é natural que seja. Ele é do PMDB, partido tão encrencado na Lava-Jato quanto o PT. Por duas vezes foi vice de Dilma, responsável, assim como Lula, pela dramática situação econômica, política e moral que o país atravessa. Temer é uma esfinge. Mas Dilma, não. Decifrada, a maioria dos brasileiros deu-lhe as costas.

Lula está perdido. E disso dão testemunho os que convivem com ele, e os que o escutam falar nos raros atos públicos a que comparece. No da última sexta-feira, que lotou apenas quatro quadras da Avenida Paulista, no centro de São Paulo, nem Lula nem ninguém perdeu tempo em comentar a proposta de plebiscito com diretas, já. Daqui a dois anos haverá diretas. Antecipá-las para quê? Para o PT perder?

Agora a derrota seria certa. Este ano ou em 2018, não se sabe se o PT contaria com Lula como candidato. Sérgio Moro deve saber. Ou o ministro Teori Zavaski, do Supremo Tribunal Federal. Lula poderá escapar de ser preso para que não se dê ao PT um aspirante a mártir. Não mais uma jararaca de vida curta, talvez um São Sebastião flechado. Mas livrar-se da Lava-Jato, esqueça. Ele não se livrará.

Se Temer não for alvejado por uma bala perdida ou, pior, certeira, dessas que ultimamente produziram severo estrago na imagem de influentes caciques do PMDB, seguirá capengando na direção do seu Santo Graal – um ajuste nas contas públicas e a aprovação de algumas reformas econômicas. É pouca ambição? Não, não é. Nas atuais circunstâncias, é muita.

Excelência já foi elogio, mas faz tempo

Excelência, em Brasília, é principalmente uma palavra usada por deputados e senadores antes de xingar outro congressista. Pode-se empregá-la com muita elegância em frases do tipo “vossa excelência é uma cavalgadura”. Poucos devem lembrar-se, mas esse termo serviu, em outros tempos, para indicar qualidades positivas encontradas – podem acreditar – até no setor público. Vale a pena lembrar esse velho emprego da palavra, quando se discute a profissionalização das chefias de estatais. Muito antes de ser envolvido no mensalão, o Banco do Brasil foi apontado, mais de uma vez, como centro de excelência. De seus quadros saíram funcionários para o recém-criado Banco Central, nos anos 60, e para muitos postos importantes do governo. Quem desconhece esses fatos pode ter dificuldade para acreditar nessa história. Afinal, tudo parece negá-la. Saqueada durante mais de dez anos, a Petrobras tornou-se uma empresa superendividada, incapaz de manter seu programa de investimentos e forçada a vender uma porção de ativos para fazer caixa.

A Eletrobras, segunda maior estatal brasileira, continua devendo ao mercado de capitais de Nova York a publicação do balanço de 2014. Os Correios, acumulando prejuízos desde 2013, poderão precisar de financiamento no segundo semestre para pagar salários e outras despesas operacionais. O prejuízo de 2015, como informou o Estadão na quinta-feira, pode ter chegado a R$ 2,12 bilhões. Faltava, ainda, a publicação do balanço do ano passado, embora já se tenha chegado à metade de 2016.

Bancos federais foram convertidos, contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, em financiadores do Tesouro, por meio das famosas pedaladas. Foram levados, além disso, a servir a interesses partidários e eleitorais. Em alguns casos, assumiram riscos excessivos e tiveram de aumentar consideravelmente suas provisões para devedores duvidosos, ou muito duvidosos, como a Sete Brasil, criada para fornecer sondas à Petrobras e forçada a pedir recuperação judicial. Foram levados a apoiar grupos escolhidos pelo poder para tornar-se campeões nacionais.

Políticas desse tipo, sem nenhum sentido estratégico, renegaram os melhores padrões de políticas de desenvolvimento inauguradas ainda na época da 2.ª Guerra Mundial. Na avaliação mais benigna, resultaram em enorme desperdício de recursos, desviados de aplicações muito mais úteis à modernização da economia brasileira e à elevação geral da competitividade. Para alimentar esse mau uso de dinheiro público, o Tesouro ainda bombeou para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) cerca de R$ 500 bilhões. Para isso, emitiu títulos e endividou-se, tornando cada vez mais complicada a situação das contas públicas.

Até os fundos de pensão das estatais foram envolvidos no jogo das decisões de interesse político-partidário. Para atender a objetivos muito estranhos à sua função, comprometeram bilhões em maus investimentos, como títulos de valor duvidoso emitidos por países vizinhos e ações de empresas perigosas, como – novamente – a Sete Brasil.

O mais vistoso dos desastres, o da Petrobras, foi amplamente mostrado tanto pelas investigações da Operação Lava Jato quanto por análises de especialistas e até de funcionários da empresa. O enorme esquema de corrupção apontado pela Polícia Federal e pela Promotoria mostra apenas uma parte da história. Ao lado desse esquema, e com ele entrelaçado, houve uma lista de investimentos mal programados, mal executados e subordinados a objetivos partidários e a critérios ideológicos.

O exemplo mais notório é o da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. Esse empreendimento nasceu de um plano de cooperação (jamais concretizado) entre a Petrobras e a PDVSA, ainda no tempo do presidente Hugo Chávez. Nunca entrou dinheiro venezuelano e, além disso, o projeto foi mal feito, os custos foram escandalosamente subestimados e a obra continua incompleta.

O desastre foi produzido, em todos esses casos, pela subordinação dos objetivos de empresas, bancos e fundos de pensão aos planos de poder do grupo governante, a seus objetivos eleitorais e à voracidade de seus aliados. Aparelhamento e loteamento foram muito mais que processos de corrupção. Foram formas de apropriação do sistema estatal, em todas as suas dimensões, para usufruto dos governantes e remuneração de seus asseclas.

A administração pública brasileira é conhecida muito mais por seus defeitos do que por suas virtudes. Isso é compreensível e justificável. Ao iniciar seu governo, o presidente Juscelino Kubitschek criou uma administração paralela, formada pelos famosos grupos executivos, para implantar o Plano de Metas. A alternativa, como lembrou o professor Celso Lafer num belo trabalho, seria gastar muito tempo, talvez todo o mandato, num esforço de reforma administrativa.

Apesar de tudo, sempre houve núcleos de competência na administração. Centro de excelência, assim como o Banco do Brasil, foi também a velha CFP, a Comissão de Financiamento da Produção. Essa empresa foi fundida em 1990 com a Cobal e a Cibrazem para a formação da Conab, a Companhia Nacional de Abastecimento, vinculada ao Ministério da Agricultura. Integrou o mesmo clube o velho Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (seu nome original), onde conviveram, durante décadas, profissionais conhecidos pela diversidade ideológica e pela capacidade. A Embrapa é outro exemplo, especialmente notável por ter sobrevivido à ingerência petista.

O governo do PT, desde o mandato inicial do presidente Lula, condenou as ideias de competência e de produtividade na administração como preconceitos neoliberais. A boa política seria empregar companheiros e aliados e tudo sujeitar a um projeto de poder. Crise fiscal, estatais em crise e Operação Lava Jato são alguns dos desdobramentos.

Depois da Lava Jato

Milão, Itália. De fora da cena se enxerga a cena. Na Itália a operação Mani Pulite (Mãos Limpas), na década de 90, teve como grande intérprete o procurador da República Antonio di Pietro. Atanazou o mundo político, revirou armários e túmulos, encontrou os butins dos assaltos à coisa pública, fez cair políticos de todos os partidos que empulhavam a cena.

Aniquilou quase por inteiro uma geração que se cimentou no poder e parecia eterna.

A corrupção exposta à luz foi notável, embora não tão gigantesca como a revelada pela Lava Jato, do juiz Sergio Moro. Tirou boa parte da cobertura de lama. E, como um jato de alta pressão, tinha a pretensão de devolver brilho à coisa pública.

Enfrentou forças que não queriam que o brilho prevalecesse e deu margem a incontáveis especulações.

Tomando, agora, a experiência italiana como base, podemos imaginar que o vazio de figuras “intocáveis”, em processo de extinção com as delações, dará espaço a novas peças ainda sem nome.

De onde eu escrevo, já se viveu o dia “depois” de o jato arrancar a lama. Passaram-se 20 anos e muitos processos; tem-se como reconhecer a possibilidade de algumas situações, por analogia, acontecerem em breve no Brasil.

Vive-se, neste mês, um segundo turno das eleições municipais nas principais capitais, como Roma e Milão, e algo inimaginável, apenas dez anos atrás, já está acontecendo.

Os partidos e as castas políticas que oligopolizavam o cenário desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, desapareceram. Como papel amassado, serviram de matéria-prima para a produção de folhas recicladas sobre as quais, ainda, se escreve uma nova história.

No dia “depois” da Itália, registrou-se uma expressiva adesão ao principal intérprete da operação “Mãos Limpas”, o promotor Antonio di Pietro (inspirador de Sergio Moro), que com a fama moralizadora fundou seu partido, Itália dos Valores. Atraiu polêmicas, figuras da magistratura e, mais, expoentes da “legalidade acima de tudo”, os “moralistas por excelência”. O mote soava como “Não há felicidade sem que a justiça prevaleça”, só que justicialismo é uma condição, não é um motor da sociedade. Um ingrediente usado pelos antigos romanos, que entenderam a lei e seu triunfo, a condição “sine qua non” do sucesso de uma sociedade. “Dura lex, sed lex”, a lei em primeiro lugar, respeitada tanto pelo cidadão mais proeminente como pelo último dos barnabés.

Embora a política não possa prescindir da justiça, ainda exige trabalho, experiência e competência para atender o anseio nacional. Justiça é a regra do jogo, não é certamente a capacidade de vencer o jogo e o desafio de governar.

Di Pietro brilhou e atraiu uma cota expressiva de eleitorado, mas se encrencou ao aparecer um patrimônio questionável que estaria acima de suas rendas legais. Em 2014, incinerado, desfiliou-se do partido que tinha fundado em 1998.

Precisou esperar que as novas tecnologias motivassem “comunidades virtuais”, “ad latere” das estruturas hierarquizadas dos “partidos profissionais”. Assim, fora do controle se deu uma revolução de pensamentos e de atitudes.

O exaurimento dos partidos permitiu que um ator cômico, barbudo como um Enéas e satírico como um intérprete do “CQC”, da Band, montasse seu partido, dando-lhe o nome de Movimento Cinco Estrelas, M5S. A síntese e o programa partem da constatação de que o cidadão/contribuinte paga caro e merece um tratamento de excelência, de hotel cinco estrelas. O poder público efetivamente a serviço do cidadão soberano, e não vice-versa.

O início do M5S foi de gargalhadas, até que um grupo de jovens tomou emprestada a bola levantada para fazer um primeiro gol em 2012, na rica cidade de Parma, secularmente dividida entre esquerda e direita. O eleitor cansado dos chavões de um lado e do outro, e das cores da corrupção, optou por um jovem prefeito, sem tradição e sem compromissos com financiadores de campanha, que encantou prometendo a coisa mais simples, transparência e honestidade. Ainda conseguiu em três anos de governo atender a expectativa.

A vitória de Parma encheu de credibilidade a “piada” para, poucos meses depois, as eleições gerais darem estrondosos 22% de cadeiras no Congresso Nacional. Neste mês de 2016, no primeiro turno das municipais em Roma, a candidata das “estrelas”, advogada de 37 anos, Virginia Raggi (ou Virgem dos Raios), muito bonita, que se expressa como um ser normal, nasceu numa família normal, trabalha normalmente, sem ranço de tradição e passado político, tirou 35% dos votos. Dificilmente deixará de ser a prefeita da capital dos papas, de Júlio César, de Adriano e de Marco Aurélio.

Milagre? O Brasil seguirá os passos da Itália? Pode ser que sim, como aconteceu algumas vezes. Depois do tsunami da Lava Jato, haverá uma revolução sem violência, empurrada pelo somatório de pensamentos comuns que determinarão a extinção da política jurássica. Isso é o sonho de muitos.

Já surgiu contrabandeando a ideia a Rede de Marina Silva. Aquela que parece, mas não é, impulsionada pela espontaneidade e diverge do M5S pelas origens e pela companhia de políticos, que, como ela, estavam no meio de tudo sem se oporem a nada do que desgraçou o país.

Apesar da angústia dos que querem um novo Brasil, mais capítulos deverão ser escritos para um raio de virgindade atender a esperança.

Os afastados e os provisórios

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Há muito de ridículo nesta briga entre o governo afastado e o governo provisório. Basta ver o vídeo que a atriz Tássia Camargo postou na internet pedindo que o povo leve comida à “exilada” Dilma para ficar claro que não estou exagerando. Mas quase nada é tão ridículo quanto a questão que se instalou na TV Brasil. Dilma deve ser chamada de “presidenta” ou de “presidente”?

Criada em 2007, pelo governo Lula, a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) tinha a missão de gerir as emissoras de rádio e televisão públicas federais. Gerir, como tudo no governo Lula, significou “aparelhar”. E foi assim que a Rádio MEC perdeu importância, a Rádio Nacional... ainda existe a Rádio Nacional? E a TVE virou TV Brasil. Aqui no Rio, o rosto mais evidente da EBC é a TVE. Ou TV Brasil. Para ser justo, ela nunca soube muito bem para que servia. Tentou ser educativa, tentou ser cultural. De qualquer maneira, sempre houve o empenho de manter no ar uma programação classuda. Imagino que a TVE... ops... TV Brasil tenha um excelente acervo de música popular, embora não o use para nada. Com a honrosa exceção do sempre ótimo “Sem censura”, comandado por Leda Nagle, a TV Brasil foi arrendada para “amigos” do governo, amadores em questão de televisão. Chegou ao absurdo de comprar uma telenovela angolana dentro da política de boa vizinhança que Lula implantou com os países africanos. Com se sabe, sobrava dinheiro no governo do PT até para comprar telenovelas africanas. O resultado foi o que se esperava: traço de audiência. Agora, a EBC vive um momento em que espelha a situação do país: um presidente afastado, levado ao cargo pelo governo provisório, e um presidente em exercício, que chegou lá por uma canetada do governo afastado. O presidente afastado baixou uma norma exigindo que Dilma fosse chamada de “presidente”. Quando o presidente em exercício retomou o poder, baixou outra norma exigindo que Dilma voltasse a ser chamada de “presidenta”. Por mim, enquanto ela continuar sendo chamada de “afastada”, está tudo bem. O problema é qualquer governo manter a TVE com essa programação medíocre.

Artur Xexéo

Único pedido


Tudo o que peço aos políticos é que se contentem em mudar o mundo sem começar por mudar a verdade
Jean Paulhan

A Hidra de Lerna

Ainda não se produziram os tão desejados efeitos que a sociedade esperava com a mudança do timoneiro no Planalto; entusiasmos à parte, o presidente interino Michel Temer luta com as mesmas dificuldades que sua antecessora para alinhar um caminho que possa criar uma perspectiva real de transformação do desgoverno, do marasmo e que resgate o Brasil da “vil e apagada tristeza” em que ele foi mergulhado”, especialmente nesse último mandato de Dilma Rousseff. Se os três governos do PT à frente da Presidência da República foram vendidos (e comprados pelos eleitores) como um projeto de transformação social do Brasil, a inabilidade política e a incompetência de Dilma foram o bastante para, devidamente conjugadas, motivar seu impeachment. Os argumentos jurídicos do processo que a afastou, em discussão no Senado, estão longe do entendimento dos cidadãos comuns, os mesmos que bateram panelas e se vestiram de bandeira nacional para gritar nas ruas o “fora, Dilma”. O desemprego, a fome, o retrocesso econômico despacharam Dilma. Temer está tentando costurar ações que possam significar algum avanço, em especial da economia, mas na antessala estão os partidos da sua base de apoio com goelas larguíssimas, a inflexibilidade e a vigilância incansáveis de Sergio Moro, Rodrigo Janot e da Polícia Federal.

Nessa semana convivemos com a perplexidade do STF e da PGR pelo vazamento de trechos de delações premiadas e até dos pedidos de prisão de nomes até então de prestígio no poder de Brasília: Sarney, Collor, Renan, Jucá e Eduardo Cunha já se acham com as medidas tiradas para receber aquele uniforme listrado da penitenciária. Na verdade, a família Eduardo Cunha, em ala especial para mulher e filha, aquelas que gastaram a bagatela de U$ 1 milhão comprando sapatos e bolsas na Europa, quantia retirada de uma conta na Suíça que não é dele; é do Tesouro Nacional, é do povo brasileiro.

Fora dessa mixórdia, o povo sacode nas ruas apelos de “fora, Temer”, “Eleições já”. Na mitologia grega se destaca a figura da Hidra de Lerna, monstro com corpo de Dragão e três cabeças de serpente; quando atacada em uma de suas cabeças, dela surgiam outras duas, com igual poder letal, que a fazia vitoriosa diante de seus combatentes. Custou a Héracles (o Hércules da mitologia romana) duas batalhas para conseguir matá-la. De Brasília, hoje, se poderia dizer o mesmo. Lá vive Hidra de Lerna, com suas infindáveis cabeças. Saiu Dilma, entrou Temer. Saiu Cunha, veio Maranhão. Espera-se para os próximos dias que, da lavra do ministro Teori Zavascki, surjam novidades em relação a algumas cabeças; não teremos resolvidos nossos problemas, mas o Brasil amanhecerá melhor. Bater por novas eleições, hoje, sem o êxito de Héracles, o risco ‘ser-nos-á’ o império da Hidra. Infelizmente, faltam-nos nomes de boas cabeças, confiáveis e de bons compromissos.

Faltam-nos estadistas, não bandidos com prontuário policial.

A ameaça de Lula

Hábil na escolha das frases e na mixagem dos tons -- do sério ao indignado, do didático ao malandro --, o ex-presidente Lula ainda tem domínio de palco. Mas, definitivamente, já não é o mesmo. Se consegue empolgar a torcida, o faz com uma fórmula gasta e repetitiva, incapaz de ultrapassar os limites da fé cega de seus fãs. E, como sempre, excede na torção dos fatos a seu bel prazer e conveniência, nos impropérios ou na simples mentira.

Foi o que se viu, mais uma vez, na sexta-feira, no ato “Fora Temer” na Avenida Paulista. Ao rol de mesmices sobre o “golpe” contra a presidente afastada Dilma Rousseff e a ilegitimidade do presidente interino Michel Temer, Lula se valeu de sandices, desacato, agressões pessoais, desapreço à democracia e desrespeito à Constituição.


A ele, pouco importa o “Fora Temer” ou o “Volta Dilma”. O que vale é o palanque para manter viva a candidatura em 2018.

Depois de expor uma visão muito particular do golpe de 1964 e da campanha das Diretas-Já, e de embrenhar-se em uma danada confusão ao comparar a revolução de Fidel Castro e o governo Michel Temer, Lula voltou-se ao seu papel predileto de benfeitor único dos pobres. Essa fonte inesgotável de votos, que, pragmaticamente, é melhor que permaneça na pobreza.

Em flagrante afronta à Carta, que estabelece o Parlamento como único fórum legal para processar o impedimento de um presidente, surrupiou a legitimidade dos deputados federais, afirmando que “só o povo que elegeu Dilma pode tirar Dilma”. E incluiu os parlamentares pró-impeachment na lista ampliada dos 300 picaretas a que se referira nos anos 1990.

Falando muito mais de si e de seu governo do que da pupila sucessora que só deu dor de cabeça a ele e ao país, Lula berrou contra privatizações que nem de longe estão na mira do governo Temer. “Vão querer vender a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa, a Eletrobras, a Transpetro. Vão vender tudo.” E, para delírio da plateia, arrematou: “Vão querer vender a mulher e até a família”.

Nada de novo. A ladainha contra a privatização está no discurso do PT desde sempre. Mas Lula agudizou: “para privatizar não precisa de governo, só de agiotas”.

Em outro momento, inspirado em Hugo Chávez, mas na versão piorada, mais semelhante ao desconcertado Nicolás Maduro, Lula dedicou-se a achincalhar o ministro das Relações Exteriores, José Serra, que teria reacendido o “complexo de vira-lata” do Brasil. E, de novo, se agarrou ao lugar comum para lembrar que é filho de analfabetos, e que tinha aprendido a não ser melhor nem pior do que ninguém, mas ser igual.

A lição jamais assimilada faz Lula supor que está acima do bem e do mal. E, embora saiba da impossibilidade de ocultar fatos e reconstruir a história com a lábia, não vislumbra outra saída – até porque não há. Portanto, vai ocupar palanques em cada ato anti-Temer e fazer exatamente igual. Defender Dilma não mais do que protocolarmente, atacar rivais a ferro e fogo, tentar juntar o que

Senadores do PT deve seguir esta semana em romaria para Curitiba, segundo a mídia. Farão uma vista extemporâea para um réu da Lava Jato que o partido praticamente deixou entregue às baratas. De repente, não mais do que de repente, João Vaccari Neto é prestigiado com favores de uma visita em massa de companheiros.

Mas não se trata de "arrependidos" por deixarem Vaccari tanto tempo ente as grades. A romaria tem como objetivo manter o silêncio do ex-tesoureiro, que está inciando conversas sobre sua delação premiada. Não há por que uma visita dessas apenas por motivo humanitário.

Por trás da visita, há o interesse em demover Vaccari para que suas revelações não implodam de vez o PT e, com ele, Lula e o Instituto, além de uma cambada de políticos petistas.

Mary Zaidan

'Lixo' brasileiro, objeto dos desejos lá fora


Os velhos bondinhos do Rio, considerados obsoletos pela mentalidade moderninha da administração carioca, foram salvos por norte-americanos dispostos a preservar essas relíquias e ainda hoje fazem sucesso por lá.

Velho Chico

No final da década de 1970, sobrevoando o Rio São Francisco em Paulo Afonso, o então ministro Delfim Netto comentou seu desgosto em ver aquela água fluindo pelo meio da Caatinga, sem nenhuma área irrigada visível. Alguém da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) respondeu: “Ainda bem. Aqui, se irrigar, saliniza”. O ministro ficou surpreso ao descobrir que, conforme os estudos já realizados, o solo era mais relevante do que a água para a irrigação.

Quando o avião pousou em Petrolina, Delfim Netto já havia autorizado recursos financeiros adicionais para a Embrapa desenvolver a irrigação na região. E assim foi. No ano passado, a fruticultura irrigada do Rio São Francisco faturou mais de R$ 500 milhões nos mercados interno e externo. Mas o universo humano e natural do Rio São Francisco ainda segue um grande desconhecido dos brasileiros.

A novela Velho Chico traz agora o rio da integração nacional para dentro dos lares brasileiros. E, com o profissionalismo e a competência dinástica da família Benedito Ruy Barbosa, muitas aventuras ainda virão.


O Rio São Francisco é parecido com o Tietê: teimoso, arredio às facilidades. Ambos, ao nascer, poderiam correr direto para seu destino, o Atlântico. Pertinho. Mas não. Eles se afastam do oceano, adentram as terras, caminham em direção ao poente, e não ao nascente. E só depois de uma longa viagem miram o leste e deságuam no mar.

O Rio São Francisco percorre mais de 2.800 km. Nasce na Mata Atlântica e logo entra no bioma Cerrado, onde se localizam 57% dos quase 64 milhões de hectares de sua bacia. Praticamente toda a água que o rio leva para o semiárido sai de Minas Gerais (68%) e do oeste da Bahia (30%). A grande caixa d’água, a torneira do São Francisco, é mineira. Os sertanejos detêm a caneca.

No passado, essa água escoava livremente para o mar, ao sabor de cheias e vazantes. Hoje não mais. Existem 34 barragens construídas na bacia, das quais 25 em Minas Gerais e na região oeste da Bahia. No semiárido são poucas, mas são canecas grandes: Sobradinho e os complexos de Paulo Afonso e Luiz Gonzaga (Itaparica). Barrar um rio dessa dimensão trouxe mudanças enormes e definitivas à vida da bacia.

A missão das barragens, em última instância, é gerar energia elétrica para as capitais nordestinas. Quem liga o ar-condicionado em Natal ou Fortaleza, quem usa eletrodomésticos em Aracaju ou João Pessoa ou, ainda, quem trabalha nas indústrias de Salvador ou Recife raramente sabe o preço alto que pagaram – e ainda pagam – os homens e o meio ambiente do vale do São Francisco, em benefício do mundo urbano.

A transposição das águas do São Francisco, mais uma vez, atenderá a demandas do mundo urbano, que as transformarão em esgoto. O projeto já gastou muitos recursos e segue questionado. A transposição é possível. Mas o projeto atual ainda não construiu uma capilaridade de benefícios para o mundo rural que atravessa. A ponto de ser necessário patrulhar a obra, para que os agricultores não “roubem” água para saciar a sede de seus familiares e rebanhos.

O projeto previa a revitalização da bacia, que pouco avançou. Até a definição do ministério, para planejar e operar esse processo, ainda não está clara. O tratamento efetivo do esgoto industrial e urbano das cidades na bacia do São Francisco deveria ser a prioridade número um da revitalização.

A Caatinga vive grandes transformações sociais e econômicas. Em três anos de seca, com 10 milhões de pessoas atingidas em mais de 1.300 municípios, não ocorreram saques, deslocamentos de flagelados, frentes de trabalho, invasões de cidades em busca de comida, ataques a armazéns ou campanhas para arrecadar ajuda às vítimas da estiagem. Esses fatos sempre aconteceram. Foram 1,2 milhão de alistados em frentes de trabalho em 1999. Hoje, não mais.

O programa Bolsa Família garante a alimentação das famílias no semiárido. A sinergia com outros programas, como a construção de cisternas, a ampliação do fornecimento de água, a interligação de adutoras, a distribuição de água com carros-pipa e outras ações – investimentos em infraestrutura e áreas irrigadas –, é real.

Muita gente parou de plantar ou reduziu a área cultivada. A Caatinga cresceu. Os rebanhos de caprinos e ovinos, também. A moto substituiu os jumentos. E os animais zurram e vagam abandonados pelas estradas.

A natureza não tem mais como salvar o rio. Ele está nas mãos de quem vive nas cidades, sobretudo no Nordeste. Sertanejos, irrigantes, agricultores e pescadores são mais vítimas do que causadores de problemas à vida do rio. Não há como compará-los à dimensão dos problemas ambientais criados por quem implantou barragens e se beneficia da geração de energia elétrica no mundo urbano.

O urbanoide se preocupa com o meio ambiente. Gosta de planejar o que não executa e avaliar o que não fez. Os desafios ambientais do Rio São Francisco pedem outras soluções.

Como estabelecer um processo decisório participativo no uso múltiplo das águas? A transposição e a irrigação são inovadoras nesse sentido, mas marginais, muito diferentes em suas funções e executadas apenas parcialmente.

Como garantir um futuro melhor para quem vive na bacia, e não só para os que se beneficiam de seus recursos em distantes áreas urbanas?

Uma improvável “cooperativa do Velho Chico” talvez fosse a solução. Como a criada pelo personagem Santo, na novela. No cooperativismo, um membro é um voto. Na gestão das águas do rio, os maiores interessados não votam. Nem são convidados para as “assembleias”. Recebem tarefas, encargos, migalhas compensatórias e tentam aproveitar oportunidades geradas. A gestão do Velho Chico está essencialmente na mão do setor elétrico e na demanda urbana, os novos e poderosos coronéis da região.

Evaristo E. de Miranda