terça-feira, 14 de outubro de 2025

A paz imposta e a negação da soberania Palestina

O Oriente Médio, não é apenas uma região geográfica, detém uma importância estratégica ímpar desde a Antiguidade, por localizar-se no ponto de intersecção entre três continentes, Ásia, África e Europa, o que o converteu em eixo de circulação de povos, culturas e rotas comerciais. Essa localização estratégica, ligando o Mediterrâneo, o Golfo Pérsico e rotas comerciais vitais, conferiu-lhe uma importância inigualável ao longo dos milênios. Foi neste caldeirão de culturas e rotas que floresceram e caíram impérios colossais. A cidade de Constantinopla, onde hoje encontra-se Istambul, serviu de capital e centro de poder e disputas civilizacionais para vastas potências, incluindo o Império Romano, Bizantino e o Otomano. Após o desmembramento do Império Otomano, as potências europeias repartiram a região em mandatos e colônias, traçando fronteiras artificiais e impondo políticas que ainda hoje repercutem nas tensões internas e nas intervenções externas. A posterior descoberta do petróleo e sua centralidade como principal fonte energética mundial reforçaram o interesse das potências ocidentais, que, por meio de intervenções políticas e militares, mantiveram sua influência e moldaram o atual cenário geopolítico do Oriente Médio.


A queda do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial abriu um vácuo de poder que levou as potências ocidentais a redesenharem o mapa da região, ou seja, decidindo sobre um território sem a participação de quem o habita. É dentro desse contexto, em 1916, que os diplomatas Mark Sykes (Grã-Bretanha) e Georges-Picot (França) realizam um pacto secreto denominado de “acordo de Sykes-Picot”, no qual foi responsável por redesenhar as futuras fronteiras do Oriente Médio Otomano, com régua e tinta, na qual não respeitou às identidades étnicas, tribais, religiosas ou linguísticas, gerando tensões internas e disputas que atravessam o século XX e se prolongam até hoje. O acordo definiu esferas de influência, com a França controlando a Síria e o Líbano, e a Grã-Bretanha controlando o Iraque e partes do que hoje é a Palestina. O objetivo final desse acordo foi assegurar zonas de influência e rotas comerciais, especialmente em torno do petróleo da Mesopotâmia e do acesso ao Canal de Suez.

De qualquer maneira, as delimitações das fronteiras concretizadas artificialmente não ocorreram com a anuência de nenhum árabe, e o documento, além de plantar as sementes das futuras instabilidades e conflitos que perduram até hoje, ainda deixou claro o princípio que guiaria o século seguinte: os povos locais eram objetos, não sujeitos da história.

O acordo de sykes – Picot, consolidou um padrão das intervenções externas no Oriente Médio nas quais foram conduzidas pelas potências coloniais ao longo da história. Mais do que um simples tratado, tornou-se o símbolo de um modelo de dominação baseado na imposição de fronteiras artificiais, na manipulação de governos locais e na lógica de “dividir para controlar”, em que os povos da região foram reduzidos a peças de um tabuleiro geopolítico moldado por interesses europeus.

Essa mesma lógica se prolongou sob o Mandato Britânico (1917–1948), quando a Declaração Balfour abriu caminho à colonização sionista e à marginalização dos palestinos. A declaração foi uma promessa pública feita pela Grã-Bretanha em 1917, declarando seu objetivo de estabelecer “um lar nacional para o povo judeu”, na Palestina.

O Acordo Sykes-Picot e a Declaração Balfour são exemplos flagrantes das contradições e do pragmatismo que permearam as políticas coloniais europeias durante a Primeira Guerra Mundial.

Enquanto o Acordo Sykes-Picot de 1916, prometia aos árabes a criação de um vasto Estado independente em troca de seu apoio na guerra contra o Império Otomano, a Declaração Balfour, no ano seguinte, garantia aos sionistas um “lar nacional para o povo judeu” justamente na Palestina, parte do mesmo território que havia sido prometido aos árabes.

Essa dualidade nas promessas criou um cenário de expectativas irreconciliáveis e, acima de tudo, evidenciou a completa falta de consideração pelas aspirações legítimas dos povos da região. Tais negociações não apenas refletiram um caráter utilitarista e imediatista das potências ocidentais, mas também ilustraram sua natureza inerentemente colonial, que priorizava as estratégias geopolíticas europeias em detrimento dos direitos e desejos das populações locais

A Declaração de Balfour (1917), embora tenha incluído uma cláusula para salvaguardar os direitos civis e religiosos da população árabe palestina, teve como seu objetivo prático principal facilitar o estabelecimento de um lar nacional judaico.

Essa política, impulsionada pela imigração judaica acelerada pela fuga do nazismo na Europa, provocou uma grande alteração demográfica no território: a população judaica na Palestina saltou de 6% para 33% entre 1918 e 1947 (2023).

Este aumento drástico, somado ao apoio explícito da Grã-Bretanha ao projeto sionista, intensificou rapidamente as tensões com a população árabe palestina, que também nutria aspirações de independência nacional. O resultado foi uma escalada de violência e o estabelecimento de um ciclo de conflito que persiste até hoje.

Para tentar solucionar a crescente violência na Palestina, a Inglaterra renunciou ao seu Mandato e submeteu a questão à recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1947, a ONU estabeleceu a partilha da Palestina, propondo a criação de um Estado Árabe Palestino e de um Estado Judeu.

Embora amparada por um discurso de legitimidade jurídica internacional, a proposta da ONU, na prática, reeditou a lógica excludente inaugurada pelo Acordo Sykes-Picot e reafirmada pela Declaração Balfour: a de dividir as terras sem consultar seus habitantes. O Plano de Partilha da ONU previa que o Estado Judeu ficasse com 55% do território, enquanto o Estado Árabe receberia os restantes 45%. Além disso, Jerusalém, cidade sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos, foi declarada um território internacionalizado e separado.

Desde 1949, Gaza tem sido o laboratório de uma história marcada pela tutela e pela negação da soberania palestina. Sob administração egípcia (1949–1967), a Faixa tornou-se refúgio de centenas de milhares de deslocados, mas sem autonomia política: o nacionalismo palestino que ali floresceu foi contido sob o regime militar de Nasser, revelando o limite do pan-arabismo diante da questão. 

Em 1964, foi criada a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), cujos membros propunham uma luta incansável pela conquista de Jerusalém e da Palestina, reafirmando a centralidade da autodeterminação palestina mesmo sob ocupação indireta.

A ocupação israelense de 1967 (Guerra dos Seis Dias) aprofundou essa lógica, substituindo o controle indireto por uma administração militar direta e (…) “administrativa da Cisjordânia, Colinas de Golan e Faixa de Gaza, a partir do reconhecimento formal da Comunidade Internacional, através de instituições como a ONU ou a Anistia Internacional, e da condenação constante emitida por estas” (2023).

Os Acordos de Oslo (1993–1995) representaram uma tentativa de institucionalizar a paz, mas, na prática, inauguraram uma autonomia sob tutela. Sob o pretexto de criar uma Autoridade Palestina responsável por administrar partes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, o pacto manteve o controle efetivo em mãos israelenses, que continuaram a dominar fronteiras, espaços aéreos, recursos hídricos e circulação de pessoas. Assim, Oslo não significou o fim da ocupação, mas sua reconfiguração administrativa: a soberania palestina foi fragmentada em enclaves autogeridos, enquanto o poder real permaneceu subordinado à lógica de segurança e dominação territorial de Israel. Como observa Ilan Pappé (2016), os Acordos funcionaram como uma “terceirização da ocupação”, na qual a administração local palestina passou a gerir o cotidiano de um território ainda controlado militar e economicamente por Israel.

Dez anos mais tarde, o então primeiro-ministro Ariel Sharon apresentou o plano de “desconexão”, anunciado como gesto unilateral de boa vontade e um passo em direção à paz. Embora o plano tenha removido a presença militar e milhares de colonos israelenses que viviam em assentamentos na Faixa de Gaza, sua formulação e implementação ocorreram sem qualquer diálogo com a liderança palestina e sem considerar as necessidades políticas, econômicas e humanitárias da população local. A medida, ao invés de representar um avanço rumo à autodeterminação, consolidou a fragmentação territorial e política do povo palestino, transformando Gaza em um território isolado, sob bloqueio e dependência total de Israel.

Ilan Pappé (2016), observa que a retirada israelense não significou o fim da ocupação, mas sua reconfiguração: um “controle remoto” sustentado pelo bloqueio terrestre, aéreo e marítimo, que mantém a Faixa de Gaza sob domínio militar e dependência econômica de Israel. Ao impor uma “paz de administração”, e não de justiça, o plano expressou a lógica de um colonialismo de ocupação à distância, em que o controle militar e econômico substitui a presença física do ocupante, mantendo intactas as estruturas de dominação que negam ao povo palestino o direito de decidir seu próprio destino.

O Plano dos 21 Pontos de Donald Trump insere-se diretamente nesta tradição de soluções impostas de fora, propondo a reconstrução e reconfiguração de Gaza sob uma administração temporária e supervisão internacional, incluindo a desradicalização e desmilitarização da Faixa, a criação de um comitê palestino tecnocrático e apolítico, o estabelecimento de uma Força Internacional de Estabilização (ISF) e um amplo pacote de ajuda econômica e reconstrução. Embora o plano seja apresentado sob o discurso de “normalização”, “coexistência pacífica” e desenvolvimento econômico, ele mantém Gaza sob supervisão externa e limita a autonomia real do povo palestino: Gaza permanece tratada não como território de um povo com direito à autodeterminação, mas sim como um problema humanitário a ser administrado. A criação de uma “Nova Gaza” governada por um comitê tecnocrático sob supervisão do “Conselho da Paz”, liderado por Donald Trump, institucionaliza a tutela internacional sob o pretexto de neutralidade.

Em outras palavras, repete-se a lógica histórica: interesses de potências e mediadores se sobrepõem às aspirações de soberania, justiça e autodeterminação da população local. Assim, essa longa trajetória de tutelas, ocupações e falsas promessas de soberania prepara o terreno para compreender Gaza como o espelho mais nítido das falhas morais e estruturais da ordem internacional contemporânea. Cada plano imposto à região, de Sykes-Picot ao Plano de Trump, reafirma a mesma hierarquia global que subordina o direito dos povos à conveniência das potências. O cerco a Gaza não é apenas físico: é também político, diplomático e simbólico. Ele traduz a persistência de um sistema mundial que naturaliza a desigualdade entre nações e legitima a violência quando exercida em nome da “estabilidade”. Ao transformar a tragédia palestina em problema técnico, e não em questão de justiça, o Ocidente perpetua a ideia de que há povos destinados a decidir e outros condenados a suportar. Nesse sentido, Gaza não é um desvio da ordem internacional: é sua expressão mais coerente.

Paz, misericórdia, perdão

Ainda não é paz. É apenas uma trégua, ainda frágil. E isso já é muito, visto que não põe fim a qualquer guerra. Será marcante se se mantiver, porque toda trégua contém a improvável e sagrada semente da paz, assim como toda guerra, e especialmente uma tão desigual, contém as sementes de guerras futuras.

O armistício declarado após o massacre e a destruição de Gaza já fez história, assim como a guerra vem fazendo história há dois anos. Em 7 de outubro, Israel sofreu o ataque mais letal, inesperado e desmoralizante de toda a sua história como nação moderna e, no dia seguinte, lançou uma guerra que superou todas as guerras anteriores travadas por seu exército em duração, baixas e impacto geopolítico.

A explosão de alegria que provocou em ambos os lados é um bom indicador do desejo compartilhado de paz. É claro que os israelenses estão sobrecarregados com o retorno dos reféns, enquanto os palestinos estão sobrecarregados com o fim da guerra, a sobrevivência e a saudade da pátria que não precisarão abandonar. Este momento memorável é tanto um alívio por estes dois anos de dor tão imensa quanto um clamor por uma paz tão ilusória.

Seja como for, o mérito é inteiramente de Trump, mas ainda não é a paz, nem ele poderá possuí-la como possui sua fortuna. Ela carrega a marca registrada de sua diplomacia peculiar e intimidadora, feita de engano, chantagem e suborno, como aprendeu nas ruas sujas dos grandes negócios imobiliários de Nova York. Seu orgulho é ter tido sucesso onde Biden falhou, mesmo sem ter recebido o Prêmio Nobel que Obama recebeu. Sua equipe de amadores, ignorantes de história e diplomacia, alcançou o sucesso que escapou às mãos diplomáticas mais habilidosas do Departamento de Estado. Eles torceram o braço de Netanyahu, um feito inigualável por qualquer outro presidente, de Bill Clinton a Obama e Biden.

A grotesca Pax Trumpiana foi uma coisa no início, mas outros aspectos estão surgindo apenas uma semana depois. O primeiro efeito foi a aprovação separada de uma primeira fase do cessar-fogo e o rebaixamento da substância das negociações para uma segunda, na qual tudo estará em discussão. Trump ditou o cessar-fogo, mas não pode ditar mais nada, porque a verdadeira paz leva muito tempo. Ele até alterou sua ideia inicial de uma trégua. Foi um ultimato, mas dirigido tanto ao Hamas quanto a Netanyahu.

O exército israelense já se retirou de metade da Faixa de Gaza. Os moradores de Gaza estão retornando ao local onde antes ficavam suas casas, agora um campo de ruínas. Não haverá limpeza étnica nem desenvolvimento urbano brutal para o turismo. Nem haverá espaço para novos assentamentos israelenses. A rendição do Hamas está longe de ser incondicional, como Netanyahu esperava, e, por enquanto, não houve entrega de armas.

Esses princípios, agora incorporados à trégua, devem ser desenvolvidos na fase de negociação, caso o conflito não se manifeste primeiro. Para os palestinos, este será o momento de conquistar por meios políticos e diplomáticos o que nunca conquistaram e jamais conquistarão pela violência. Será também uma oportunidade para as Nações Unidas e a União Europeia se juntarem à briga, para que o unilateralismo atual se transforme em multilateralismo, obtenha a proteção da legalidade internacional e dilua sua concepção oligárquica e autoritária.

A segunda etapa da negociação não pode excluir a Cisjordânia e Jerusalém. Para que haja progresso, será necessário congelar os assentamentos e os projetos de divisão e isolamento da Cisjordânia. Não haverá negociação sólida sem a participação direta dos moradores de Gaza, logicamente por meio da Autoridade Palestina. Substituir a ocupação militar israelense por um mandato colonial americano humilhante, como contemplado no plano trumpista, é garantia de fracasso. Nada avançará a menos que seja na direção “da autodeterminação e da criação de um Estado palestino”, como o plano de paz admite, em vez de defender. Esta é a batalha crucial, alimentada pela pressão dos vizinhos árabes e pelo amplo reconhecimento internacional do Estado palestino.

Esta guerra acabou, mas não pôs fim ao estado de guerra que existe entre judeus e palestinos desde que entraram em contato há pouco mais de um século. Os mais extremistas e violentos de ambos os lados, os verdadeiros impulsionadores das guerras, podem aceitar tréguas, mas todos odeiam e temem a paz verdadeira, que exige sacrifícios e concessões dolorosas em busca de uma nova ordem pacífica e justa. A paz só é alcançada por meio do reconhecimento mútuo, da substituição do ódio pela misericórdia e, finalmente, do difícil exercício do perdão mútuo entre aqueles que se perseguiram, desprezaram e assassinaram por um século. Nossos olhos dificilmente a verão.
Lluís Bassets