A queda do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial abriu um vácuo de poder que levou as potências ocidentais a redesenharem o mapa da região, ou seja, decidindo sobre um território sem a participação de quem o habita. É dentro desse contexto, em 1916, que os diplomatas Mark Sykes (Grã-Bretanha) e Georges-Picot (França) realizam um pacto secreto denominado de “acordo de Sykes-Picot”, no qual foi responsável por redesenhar as futuras fronteiras do Oriente Médio Otomano, com régua e tinta, na qual não respeitou às identidades étnicas, tribais, religiosas ou linguísticas, gerando tensões internas e disputas que atravessam o século XX e se prolongam até hoje. O acordo definiu esferas de influência, com a França controlando a Síria e o Líbano, e a Grã-Bretanha controlando o Iraque e partes do que hoje é a Palestina. O objetivo final desse acordo foi assegurar zonas de influência e rotas comerciais, especialmente em torno do petróleo da Mesopotâmia e do acesso ao Canal de Suez.
De qualquer maneira, as delimitações das fronteiras concretizadas artificialmente não ocorreram com a anuência de nenhum árabe, e o documento, além de plantar as sementes das futuras instabilidades e conflitos que perduram até hoje, ainda deixou claro o princípio que guiaria o século seguinte: os povos locais eram objetos, não sujeitos da história.
O acordo de sykes – Picot, consolidou um padrão das intervenções externas no Oriente Médio nas quais foram conduzidas pelas potências coloniais ao longo da história. Mais do que um simples tratado, tornou-se o símbolo de um modelo de dominação baseado na imposição de fronteiras artificiais, na manipulação de governos locais e na lógica de “dividir para controlar”, em que os povos da região foram reduzidos a peças de um tabuleiro geopolítico moldado por interesses europeus.
Essa mesma lógica se prolongou sob o Mandato Britânico (1917–1948), quando a Declaração Balfour abriu caminho à colonização sionista e à marginalização dos palestinos. A declaração foi uma promessa pública feita pela Grã-Bretanha em 1917, declarando seu objetivo de estabelecer “um lar nacional para o povo judeu”, na Palestina.
O Acordo Sykes-Picot e a Declaração Balfour são exemplos flagrantes das contradições e do pragmatismo que permearam as políticas coloniais europeias durante a Primeira Guerra Mundial.
Enquanto o Acordo Sykes-Picot de 1916, prometia aos árabes a criação de um vasto Estado independente em troca de seu apoio na guerra contra o Império Otomano, a Declaração Balfour, no ano seguinte, garantia aos sionistas um “lar nacional para o povo judeu” justamente na Palestina, parte do mesmo território que havia sido prometido aos árabes.
Essa dualidade nas promessas criou um cenário de expectativas irreconciliáveis e, acima de tudo, evidenciou a completa falta de consideração pelas aspirações legítimas dos povos da região. Tais negociações não apenas refletiram um caráter utilitarista e imediatista das potências ocidentais, mas também ilustraram sua natureza inerentemente colonial, que priorizava as estratégias geopolíticas europeias em detrimento dos direitos e desejos das populações locais
A Declaração de Balfour (1917), embora tenha incluído uma cláusula para salvaguardar os direitos civis e religiosos da população árabe palestina, teve como seu objetivo prático principal facilitar o estabelecimento de um lar nacional judaico.
Essa política, impulsionada pela imigração judaica acelerada pela fuga do nazismo na Europa, provocou uma grande alteração demográfica no território: a população judaica na Palestina saltou de 6% para 33% entre 1918 e 1947 (2023).
Este aumento drástico, somado ao apoio explícito da Grã-Bretanha ao projeto sionista, intensificou rapidamente as tensões com a população árabe palestina, que também nutria aspirações de independência nacional. O resultado foi uma escalada de violência e o estabelecimento de um ciclo de conflito que persiste até hoje.
Para tentar solucionar a crescente violência na Palestina, a Inglaterra renunciou ao seu Mandato e submeteu a questão à recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1947, a ONU estabeleceu a partilha da Palestina, propondo a criação de um Estado Árabe Palestino e de um Estado Judeu.
Embora amparada por um discurso de legitimidade jurídica internacional, a proposta da ONU, na prática, reeditou a lógica excludente inaugurada pelo Acordo Sykes-Picot e reafirmada pela Declaração Balfour: a de dividir as terras sem consultar seus habitantes. O Plano de Partilha da ONU previa que o Estado Judeu ficasse com 55% do território, enquanto o Estado Árabe receberia os restantes 45%. Além disso, Jerusalém, cidade sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos, foi declarada um território internacionalizado e separado.
Desde 1949, Gaza tem sido o laboratório de uma história marcada pela tutela e pela negação da soberania palestina. Sob administração egípcia (1949–1967), a Faixa tornou-se refúgio de centenas de milhares de deslocados, mas sem autonomia política: o nacionalismo palestino que ali floresceu foi contido sob o regime militar de Nasser, revelando o limite do pan-arabismo diante da questão.
Em 1964, foi criada a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), cujos membros propunham uma luta incansável pela conquista de Jerusalém e da Palestina, reafirmando a centralidade da autodeterminação palestina mesmo sob ocupação indireta.
A ocupação israelense de 1967 (Guerra dos Seis Dias) aprofundou essa lógica, substituindo o controle indireto por uma administração militar direta e (…) “administrativa da Cisjordânia, Colinas de Golan e Faixa de Gaza, a partir do reconhecimento formal da Comunidade Internacional, através de instituições como a ONU ou a Anistia Internacional, e da condenação constante emitida por estas” (2023).
Os Acordos de Oslo (1993–1995) representaram uma tentativa de institucionalizar a paz, mas, na prática, inauguraram uma autonomia sob tutela. Sob o pretexto de criar uma Autoridade Palestina responsável por administrar partes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, o pacto manteve o controle efetivo em mãos israelenses, que continuaram a dominar fronteiras, espaços aéreos, recursos hídricos e circulação de pessoas. Assim, Oslo não significou o fim da ocupação, mas sua reconfiguração administrativa: a soberania palestina foi fragmentada em enclaves autogeridos, enquanto o poder real permaneceu subordinado à lógica de segurança e dominação territorial de Israel. Como observa Ilan Pappé (2016), os Acordos funcionaram como uma “terceirização da ocupação”, na qual a administração local palestina passou a gerir o cotidiano de um território ainda controlado militar e economicamente por Israel.
Dez anos mais tarde, o então primeiro-ministro Ariel Sharon apresentou o plano de “desconexão”, anunciado como gesto unilateral de boa vontade e um passo em direção à paz. Embora o plano tenha removido a presença militar e milhares de colonos israelenses que viviam em assentamentos na Faixa de Gaza, sua formulação e implementação ocorreram sem qualquer diálogo com a liderança palestina e sem considerar as necessidades políticas, econômicas e humanitárias da população local. A medida, ao invés de representar um avanço rumo à autodeterminação, consolidou a fragmentação territorial e política do povo palestino, transformando Gaza em um território isolado, sob bloqueio e dependência total de Israel.
Ilan Pappé (2016), observa que a retirada israelense não significou o fim da ocupação, mas sua reconfiguração: um “controle remoto” sustentado pelo bloqueio terrestre, aéreo e marítimo, que mantém a Faixa de Gaza sob domínio militar e dependência econômica de Israel. Ao impor uma “paz de administração”, e não de justiça, o plano expressou a lógica de um colonialismo de ocupação à distância, em que o controle militar e econômico substitui a presença física do ocupante, mantendo intactas as estruturas de dominação que negam ao povo palestino o direito de decidir seu próprio destino.
O Plano dos 21 Pontos de Donald Trump insere-se diretamente nesta tradição de soluções impostas de fora, propondo a reconstrução e reconfiguração de Gaza sob uma administração temporária e supervisão internacional, incluindo a desradicalização e desmilitarização da Faixa, a criação de um comitê palestino tecnocrático e apolítico, o estabelecimento de uma Força Internacional de Estabilização (ISF) e um amplo pacote de ajuda econômica e reconstrução. Embora o plano seja apresentado sob o discurso de “normalização”, “coexistência pacífica” e desenvolvimento econômico, ele mantém Gaza sob supervisão externa e limita a autonomia real do povo palestino: Gaza permanece tratada não como território de um povo com direito à autodeterminação, mas sim como um problema humanitário a ser administrado. A criação de uma “Nova Gaza” governada por um comitê tecnocrático sob supervisão do “Conselho da Paz”, liderado por Donald Trump, institucionaliza a tutela internacional sob o pretexto de neutralidade.
Em outras palavras, repete-se a lógica histórica: interesses de potências e mediadores se sobrepõem às aspirações de soberania, justiça e autodeterminação da população local. Assim, essa longa trajetória de tutelas, ocupações e falsas promessas de soberania prepara o terreno para compreender Gaza como o espelho mais nítido das falhas morais e estruturais da ordem internacional contemporânea. Cada plano imposto à região, de Sykes-Picot ao Plano de Trump, reafirma a mesma hierarquia global que subordina o direito dos povos à conveniência das potências. O cerco a Gaza não é apenas físico: é também político, diplomático e simbólico. Ele traduz a persistência de um sistema mundial que naturaliza a desigualdade entre nações e legitima a violência quando exercida em nome da “estabilidade”. Ao transformar a tragédia palestina em problema técnico, e não em questão de justiça, o Ocidente perpetua a ideia de que há povos destinados a decidir e outros condenados a suportar. Nesse sentido, Gaza não é um desvio da ordem internacional: é sua expressão mais coerente.

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