quarta-feira, 15 de outubro de 2025

As coisas desimportantes

O tempo é de grandes manchetes. Uma aposta, ainda controversa, na paz do Oriente Médio. Uma guerra de tarifas entre Estados Unidos e China. A instabilidade política na Europa. Enquanto isso, bem longe das primeiras páginas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai a Roma e fala da fome no mundo. Fora de sintonia ou muito antenado?

O discurso aconteceu na cerimônia de comemoração dos 80 anos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), na capital italiana. Poucas horas antes da assinatura do acordo de cessar-fogo em Gaza, com a presença do presidente americano Donald Trump. Para onde, é claro, se dirigiram todos os holofotes.


Pode ser que acordo abra o caminho a uma paz duradoura no Oriente Médio. O retorno de reféns israelenses a Tel Aviv e a libertação de prisioneiros palestinos, recebidos com festa em Gaza, pelo menos reduziram o alto grau de tensão na região. Embora, é claro, existam pelo caminho ainda muitos pontos de interrogação.

Mais ao leste, a China informou em alto e bom som que estará pronta para reagir a uma nova rodada de elevações de tarifas por parte de Washington. Apenas outro capítulo de uma longa novela que promete fortes emoções na disputa pela hegemonia econômica do mundo.

A Europa, amedrontada, acompanha passo a passo a longeva guerra na Ucrânia. E procura no rearmamento uma resposta ao expansionismo russo.

Guerras sempre houve. Conflitos, econômicos ou militares, são o arroz de festa da História. E as rivalidades atraem mesmo atenções. Seja pela torcida por um dos lados, seja pela ameaça que essas disputas representam à estabilidade do planeta.

Mas as disputas e as guerras não são as únicas ameaças a essa estabilidade. Existem questões que não se limitam a uns contra outros, mas que afetam grandes partes da humanidade – especialmente nas áreas mais pobres do planeta.

Entre essas questões estão a crescente desigualdade global, a persistência da pobreza, a fome, a crise no meio ambiente e a mudança climática. Segundo a velha visão realista, questões sempre menores em relação às disputas pelo poder em um mundo caótico.

Assim será? Como observou Lula em Roma, usando números da própria Organização das Nações Unidas, o mundo gasta atualmente cerca de US$ 2,7 trilhões em armas. E com US$ 315 bilhões seria possível erradicar a fome no planeta. Ou 12% daquele total.

Com esses US$ 315 bilhões, prosseguiu o presidente brasileiro, seria possível garantir três refeições diárias a 673 milhões de pessoas que, segundo a FAO, experimentam a insegurança alimentar. Aproximadamente o dobro da população dos Estados Unidos. Ou quase metade da população da China.

E como conseguir esse dinheiro? Um imposto global de 2% sobre os super-ricos, nos cálculos expostos pelo presidente, seria capaz de arrecadar o montante necessário. Imposto visto por muitos economistas como inviável e ineficaz. Ou não?

“A fome é irmã da guerra, seja ela travada com armas e bombas ou com tarifas e subsídios”, disse Lula durante seu discurso em Roma. “Conflitos armados, além do sofrimento humano e da destruição da infraestrutura, desorganizam cadeias de insumos e alimentos. Barreiras e políticas protecionistas de países ricos desestruturam a produção agrícola no mundo em desenvolvimento”, completou.

Segundo a leitura do presidente brasileiro, favorável a uma reestruturação da ordem global, da “tragédia em Gaza” à paralisia da Organização Mundial do Comércio, em tempos de armas tarifárias, “a fome tornou-se sintoma do abandono das regras e instituições multilaterais”.

Instituições que estarão novamente à prova em Belém, dentro de um mês, durante a realização da COP 30, onde mais uma vez estará em debate a crise climática. Crise, é bom lembrar, que tem como principais responsáveis históricos os países mais ricos do planeta – e não aqueles que sentirão mais de perto os efeitos da mudança do clima.

Ao longo da última semana, em Brasília, no Festival Curicaca de inovação e tecnologia, promovido pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, empresários, especialistas, acadêmicos e agentes governamentais detalharam planos sobre como o Brasil pode, ao mesmo tempo, combater os desafios da pobreza e da mudança climática.

Se o evento de Roma terá sido eclipsado por outros temas, o festival tampouco recebeu muita atenção. Ali, de fato, não se esboçaram grandes soluções para o planeta. Mas se relataram pequenos passos para garantir maior dignidade às pessoas mais pobres e mais segurança ao meio ambiente, além de uma aposta na economia verde.

Pequenos exemplos como os de grupos de produtores de açaí, cupuaçu e castanha, na Amazônia, que começam a operar mini refinarias do tamanho de um contêiner capazes de processar antigos resíduos e transformá-los em combustíveis, fertilizantes ou plástico.

“O Brasil tem o potencial de ser um dos grandes líderes da agenda da economia verde no mundo”, observou, durante o evento, a economista Laura Carvalho, diretora de Prosperidade Econômica e Climática da Fundação Open Society.

“Outros países estão fazendo suas políticas industriais verdes”, recordou Laura. “Se a gente não fizer o mesmo rapidamente, vai perder muitas oportunidades”.

Talvez soe demasiadamente ingênuo falar de fome, pobreza, florestas e clima quando estão sobre a mesa grandes e perigosas disputas globais, capazes de levar o planeta a um pouco mais perto do precipício.

A busca de uma solução para as guerras pode e deve, naturalmente, permanecer no centro das atenções globais, pelo seu próprio potencial de desestabilização e destruição. Mas não sozinha. Os grandes desafios sociais e ambientais precisam forjar seu caminho em direção ao topo da agenda global.

Como lembrava o poeta mato-grossense Manoel de Barros, às vezes é preciso trocar as nossas lentes, para melhor enxergar o mundo.

“Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes”, escreveu Barros. “Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis”.

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