O avanço tecnológico que hoje desmaterializa o dinheiro, transformando-o em impulsos eletrônicos, códigos e senhas, ameaça não só o papel físico das cédulas, mas também o significado social que elas carregam. Ao substituirmos o dinheiro tangível pelos pagamentos digitais, como o Pix, os cartões por aproximação ou as carteiras virtuais, caminhamos para um regime de abstração, onde o valor é administrado por algoritmos e corporações globais. Georg Simmel, em Filosofia do Dinheiro, já havia percebido que a modernidade transforma o dinheiro em uma forma pura de mediação, reduzindo as relações humanas a equivalências calculáveis. Essa “abstração monetária” reconfigura as interações sociais, esvaziando o contato direto e concreto que antes havia nas trocas face a face.
A desmaterialização do dinheiro, portanto, não é apenas uma mudança tecnológica, mas uma mutação da experiência social. O dinheiro físico é sensorial, palpável, partilhado já que ele passa de mão em mão, produz vínculo, gesto e confiança imediata. O dinheiro digital, ao contrário, é invisível, automatizado, mediado por sistemas. David Graeber, em Debt: The First 5,000 Years, lembra que as trocas sempre foram também formas de reconhecimento moral, de reciprocidade e de obrigação mútua. O dinheiro físico permite ver e sentir o valor que se transfere, enquanto o dinheiro digital dissolve a materialidade da troca e, com ela, uma parte do vínculo social.
A digitalização integral dos pagamentos transfere também o poder de controle da moeda. O Estado, que sempre foi o emissor e guardião da soberania monetária, passa a dividir ou mesmo ceder esse papel para bancos digitais, empresas de tecnologia e plataformas globais. André Orléan chama esse processo de dessouverainisation monétaire, a perda da soberania monetária diante de atores privados que controlam a infraestrutura digital das transações. Quando o dinheiro deixa de ser uma criação do Estado e passa a ser administrado por sistemas corporativos, a moeda deixa de representar uma nação e passa a representar uma rede, sem rosto, sem território e sem identidade coletiva.
A pesquisa recente do Opinion Box (2025) evidencia o alcance dessa transformação: 83% dos brasileiros afirmam usar cada vez menos dinheiro físico, e 87% utilizam o Pix como principal meio de pagamento. Esse dado não é apenas estatístico, é sociológico. Ele revela uma mudança nas formas de sociabilidade, na temporalidade da vida cotidiana e na percepção de valor. O ato de pagar, que antes implicava um gesto – abrir a carteira, escolher a nota, entregar o troco – torna-se instantâneo e silencioso. As transações se aceleram, mas também se desumanizam. As relações econômicas, antes mediadas pela presença física, tornam-se mediadas por interfaces digitais, e com isso, a própria noção de confiança desloca-se: confiamos menos nas pessoas e mais nos sistemas.
Há também riscos sociais e políticos. Uma sociedade sem dinheiro físico é uma sociedade em que toda transação é rastreável. Isso amplia o controle, mas reduz o anonimato e a autonomia. Para os milhões de brasileiros que ainda vivem à margem do sistema bancário, o dinheiro físico é não apenas um meio de pagamento, mas um meio de existência. Ele permite circular, comprar, vender e participar da vida econômica sem intermediações. Quando o dinheiro físico desaparece, parte da população desaparece com ele, expulsa para fora do sistema digital.
Do ponto de vista sociológico, a questão central é compreender como essa transformação afeta o tecido das relações sociais. O dinheiro, como observa Karl Marx em O Capital, é uma forma de mediação social que transforma as relações humanas em relações entre coisas. Na era digital, essa mediação torna-se ainda mais opaca, pois agora as “coisas” são dados, algoritmos e fluxos invisíveis. A economia torna-se um sistema de signos autorreferenciais, em que o valor já não se ancora no trabalho, mas na informação. A moeda, que antes representava o produto da força humana, passa a representar o produto da codificação tecnológica.
Ao mesmo tempo, Maurizio Lazzarato, em O governo do homem endividado, mostra que a financeirização da vida cria sujeitos permanentemente endividados, dependentes de crédito, cartões e limites. Nessa lógica, o pagamento instantâneo e a ausência de cédulas físicas criam uma ilusão de poder de compra, mas reforçam a submissão às estruturas financeiras. A liberdade de consumir se confunde com a servidão ao crédito.
Essa revolução digital do dinheiro tem, portanto, um duplo rosto: de um lado, traz eficiência, segurança e modernidade; de outro, corrói formas tradicionais de convivência, desmaterializa a experiência social do valor e ameaça a soberania simbólica do Estado. A moeda é um dos pilares da identidade nacional porque traduz em valor comum a confiança coletiva. Quando ela se torna apenas um dado flutuante, essa confiança se desloca para fora das fronteiras, para servidores, plataformas e instituições que não respondem à lógica do interesse público.
O futuro sem dinheiro físico pode ser inevitável, mas ele não precisa ser cego. A sociologia deve olhar para esse fenômeno não como simples progresso técnico, mas como um processo de reconfiguração da vida social. Estudar o dinheiro é estudar o poder, a confiança e o modo como as pessoas se relacionam. O desafio está em garantir que a inovação digital não apague a dimensão simbólica e política da moeda. O dinheiro, afinal, sempre foi, e continuará sendo, um espelho da sociedade que o cria.

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