domingo, 31 de julho de 2022

Assim caminha o Brasil

 


Ditaduras moleculares

Como a imagem num holograma, que tem a informação do todo em cada uma de suas partes, pequenos relatos individuais não raramente expõem problemas de grande magnitude social. Assim é que um jovem universitário, morador de uma das grandes favelas cariocas, embora exultante pela oportunidade que lhe oferece o sistema público, me faz saber de seus percalços para cumprir tarefas. Há primeiro a distância e a precariedade do transporte.

Há, sim, as vantagens híbridas do online. E aí se revela outra ordem de dificuldades, pois a rede não funciona bem onde ele mora, e não há reclamação ou alternativa possíveis: o serviço é controlado por traficantes.


Aí está o núcleo da questão. Num complexo de milhares de habitantes, todos são obrigados a comprar ali mesmo botijão de gás, pão, imagem de televisão e internet. Alguns desses produtos podem sair mais caros do que em outro comércio. "Obrigação" não é nenhum eufemismo para a conveniência da proximidade: não há livre escolha fora do poder local. O Estado, com seus aparatos e sua retórica legalista, é apenas uma ficção sem interesse.

A realidade cotidiana de dois milhões de pessoas em partes diversas do território carioca, ocupado em mais de 50% por forças ilegalistas, é a de uma ditadura "molecular’, mais afeita à execução sumária do que à tortura.

A ostensiva ascensão territorial de bandidos numa cidade emblemática como o Rio de Janeiro é um fenômeno colateral à polarização entre o estatismo da ditadura militar e o liberalismo político subsequente, que aumenta a ambiguidade do papel do Estado.

É sintoma grave da falência do Estado moderno, entendido como o complexo institucional que faz funcionar o governo de uma sociedade territorialmente definida. Na disfuncionalidade desse conceito, inexiste qualquer ordem que possa ser considerada política, ou seja, constitutiva de cidadania e de vida democrática. E não se trata de questão apenas local, já que o modelo tráfico-miliciano está sendo replicado em outras regiões, a exemplo da Amazônia, com vínculos transnacionais. É interna a ameaça ao Estado-Nação brasileiro.

Tornou-se vã a retórica da democratização ante o barbarismo da extrema direita, que redefiniu pelo crime a ideia de "cesta básica": fuzil e pistola em vez de alimentos. Mas também salta aos olhos o desaparelhamento conceitual da esquerda para dar conta da profundidade dessa crise, pois o campo democrático jamais conseguiu formular uma política de segurança pública. No entanto, a restauração civil do país exige pensamento e ação compatíveis com as novas correlações de forças no território nacional.

Exige, para começar, combate ao fisiologismo autofágico e reconstrução da política.

Bolsonaro é blefe ou ameaça séria?

É voz corrente que Jair Bolsonaro tenta aliciar uma parte dos militares e das polícias estaduais para um golpe de Estado, mas desatinar é uma coisa, levar o desatino à prática é outra.

Tal desvario é levado a sério por muitas pessoas lúcidas, e antes isso, pois, como sabemos, “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Comparar o Brasil de hoje com a Alemanha da primeira metade do século passado não faz muito sentido, mas vale a pena registrar que a revista Foreign Affairs, numa recente edição retrospectiva, mostrou que vários jornalistas de primeira grandeza ainda se recusavam a crer que Hitler fosse mesmo levar suas alucinações à prática quando seu regime totalitário já estava praticamente implantado.

No final de 1944, cerca de 100 mil opositores do nacional-socialismo, entre os quais comunistas, social-democratas e liberais, além de judeus e homossexuais, começavam a ser amontoados em campos de concentração. A pseudociência da “eugenia” começava a ser posta em prática mediante assassinatos e castração de indivíduos pertencentes a “raças inferiores”, como os ciganos. Contudo, em que pese aquele monstruoso precedente, não creio que Bolsonaro ponha em prática suas elucubrações golpistas, ou que permaneça sequer um mês no poder, caso o faça.


Embora mais vitriólico que a média dos populistas, ele é isto: um simples populista. Como todos dessa categoria, ele ostenta uma mescla de traços contraditórios. De um lado, um certo senso de realidade, que lhe permite espertamente atingir posições de poder; do outro, um apego a mitos, blefes e bravatas, que cedo ou tarde leva seus anseios à bancarrota. O que não ostentam, porque dele carecem, é ânimo para governar com seriedade. Todos nos lembramos de Jânio Quadros. Eleito presidente em 1960, ele renunciou oito meses depois acreditando no mito por ele mesmo criado de que “forças ocultas” o estariam impedindo de governar. Imaginou que o povo o carregaria nos ombros de volta ao palácio. Ficou a ver navios. Bolsonaro está cumprindo um roteiro semelhante. Se perder, como é provável, vai esgrimir a asnice da fraude eleitoral, sua versão das “forças ocultas” de Jânio Quadros.

O que não podemos é subestimar o estrago que políticos desse tipo podem causar ao País. Embora pessoalmente eu não creia que Bolsonaro vá muito longe, ou que consiga se manter na Presidência se de fato recorrer ao golpe, não podemos descartar a possibilidade de suas manias arrastarem o País para um buraco. Daí a conveniência de ponderarmos algumas das forças em tese capazes de protagonizar ações relevantes, de apoio ou resistência ao golpe anunciado. Refiro-me, em especial, (1) aos partidos políticos, (2) ao Congresso Nacional e (3) à opinião pública, incluindo nesta última a imprensa, instituições da chamada “sociedade civil” e, no limite, manifestações de massa.

Os partidos políticos podem ser descartados, pela singela razão de que já não os temos. Sabemos todos que nossa estrutura partidária praticamente se liquefez na eleição de 2018. Naquele ano, 24 siglas conseguiram acesso à Câmara federal, a maior delas detendo cerca de 15% das cadeiras – cifras suficientes para assegurarmos por larga margem o título de campeão mundial da fragmentação partidária, que, aliás, nos pertence há muito tempo. Mas a fragmentação é apenas uma parte da história. Ferreamente controladas por oligarquias, tais organizações não se renovam, não desenvolvem perfis programáticos e, não por acaso, carecem por completo de confiabilidade.

Precisamente porque nossos partidos são o que são, o Congresso é um desconexo aglomerado de especialistas em trocas clientelistas de apoio por cargos no Executivo. Trocam qualquer coisa por qualquer coisa, como vimos poucas semanas atrás, quando o Senado, quase por unanimidade – ficando o senador José Serra como uma solitária exceção –, atropelou as mais comezinhas regras do jogo eleitoral a fim de turbinar com R$ 41 bilhões a campanha do sr. Bolsonaro. Quem quiser mapear a atual anatomia do Legislativo, forçosamente terá de começar pela entidade que o domina, o Centrão. Se Jair Bolsonaro tivesse êxito em seu propalado intento de golpear o regime democrático, ele faria exatamente o que já vem fazendo, ou seja, delegará a essa pitorescamente denominada figura a tarefa de acomodar seus acólitos na máquina do Estado e de mandar a fatura aos contribuintes.

Contudo, errará por larga margem quem supuser que Bolsonaro ou qualquer outro interessado em solapar as instituições atingirá seu objetivo nadando de braçadas. Salta aos olhos que a sociedade está despertando do estado abúlico em que afundou desde os tempos da sra. Dilma Rousseff, senão antes. Entidades importantes como a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e a Academia Paulista de Letras já começaram a soar o alerta. Muitas outras logo seguirão pelo mesmo caminho. Ou seja, podemos ser arrastados para um desastre, mas não por desatenção ou por algum grave erro de avaliação, como aconteceu na Alemanha.

Tem gente com fome

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiiii

Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuu.

Solano Trindade

A teoria do ponto X

“Precisamos de mais desigualdade, não menos”, disse o empresário Winston Ling, dias atrás. A frase deu o que falar e soa muito estranha em um país marcado pela miséria e pelo capitalismo de compadrio. O que imagino que ele tenha tentado dizer é que, em uma economia aberta de mercado, com forte proteção a direitos, a chance de ganhar mais funciona como um prêmio para o trabalho e a inovação. E mais: que o mercado não é um jogo de soma zero, mas um jogo cooperativo. Steve Jobs ficou bilionário porque inventou um computador pessoal, naquela garagem em Palo Alto, e foi capaz de melhorar a vida de milhões de pessoas. Elon Musk só aparece na capa da Forbes porque uma montanha de gente acha que melhora de vida comprando um Tesla ou ações de suas empresas. William Nordhaus, analisando avanços tecnológicos na segunda metade do século XX, estimou que o empresário inovador captura pouco mais de 2% do valor que gera na sociedade. Podemos resmungar por aí achando que tem uma bruxa má, tipo Robin Hood às avessas, distribuindo o dinheiro das pessoas a um punhado de bilionários inúteis. Mas não é assim, ao menos em um mercado aberto, que as coisas funcionam.


Há uma penca de coisas a esclarecer nesse tema. A primeira delas é a tradicional confusão entre desigualdade e pobreza. Uma das críticas que Ling recebeu veio de um deputado socialista. “Tem brasileiro na fila do osso”, disse ele, “e vem empresário bolsonarista dizer que precisamos de mais desigualdade.” O deputado acertou e errou ao mesmo tempo. Ele atira na desigualdade, mas acerta na pobreza. O que dá um sentido ético a sua crítica é o fato de que as pessoas estão “na fila do osso”. Se a frase fosse “o brasileiro sem poder ir pra Disney e o empresário…”, soaria não mais do que uma piada. É a tese clássica de Harry Frankfurt, o filósofo de Princeton: o que nos move eticamente não é a diferença entre a classe média e os mais ricos, e muito menos entre os ricos e muito ricos. É a pobreza. O ponto é que falar de pobreza é meio chato, e pouca gente parece de fato preocupada com o problema. Bacana é xingar os “super-ricos”, os banqueiros e “faria limers”, em que pese sempre desconfio que esse discurso também seja meio que de mentirinha.

No período que vai do final da Guerra Fria aos dias atuais, assistiu-se a um trade-off. A desigualdade cresceu, mas 1,1 bilhão de pessoas saíram da miséria, globalmente, segundo o Banco Mundial. Na América Latina, a extrema pobreza foi reduzida à metade, e a desigualdade, medida pelo índice de Gini, caiu de 0,54 para 0,47, entre o início dos anos 90 e a segunda metade da década passada. De modo geral, assistimos ao que o economista Richard Baldwin chamou de “grande convergência”, isto é, o processo em que, pela primeira vez na história moderna, a riqueza agregada dos países em desenvolvimento ultrapassou a dos países avançados. Tudo em razão da transferência maciça de investimentos, negócios e empregos dos países centrais para países periféricos. Isso penalizou indústrias obsoletas e destruiu empregos na classe média trabalhadora de países avançados. Muita gente chiou com o fechamento de fábricas da Nike e de grandes montadoras nos Estados Unidos. Donald Trump fez seu proselitismo falando sobre isso. O interessante é observar o que fizeram os países que pegaram o bonde da redução drástica da pobreza nesse período. Sua receita foi simples: abertura econômica, regras de mercado, investimento em tecnologia e educação. A abertura chinesa é um exemplo disso. Em pouco mais de três décadas, o país conseguiu reduzir a pobreza extrema em 90%. E é inteiramente inútil perguntar se as pessoas escolheriam viver na China “igualitária” da era Mao ou na China atual, com seus 600 bilionários na lista da Forbes.

Um equívoco comum no debate sobre a desigualdade é concentrar seu foco no aspecto renda. Com isso se perde um fato notável de nossa época, que é a contínua aproximação dos padrões de vida. O economista Nicholas Eberstadt mostra como a expectativa de vida média, no plano global, mais do que dobrou ao longo do século XX, e a desigualdade nesse âmbito caiu cerca de dois terços. O mesmo aconteceu com a educação. No imediato pós-guerra até os dias atuais, a população adulta sem escolaridade caiu de 50% para 15%. De novo, temos o trade-off. A disparidade de renda aumenta, em algumas regiões, mas o acesso a bens básicos, como a educação, se universaliza. O mesmo se dá com bens de consumo básicos. Nos anos 30, no Brasil, custava sessenta salários mínimos para comprar uma geladeira. Hoje você compra uma boa geladeira por dois salários, e o IBGE nos mostra que 95% das casas no país já têm a sua.

Outro tema fascinante nesse debate é o que gosto de chamar de “teoria do ponto X”. A ideia é a de que a desigualdade, a partir de um certo ponto, é destrutiva para a sociedade e para a democracia. Piketty foi um divulgador dessa tese. “A desigualdade”, diz ele, “a partir de um certo ponto” é injusta e compromete valores democráticos. A pergunta óbvia a fazer é: que ponto exatamente seria esse? Qual o padrão “correto” de “concentração” da riqueza no top 1%? Quem teria a prerrogativa de decidir essas coisas? O Congresso? Seria uma “escolha da sociedade”, como escuto vez ou outra, de gente bacana fazendo de conta que não são os políticos, em Brasília, que decidem essas coisas.

É perfeitamente plausível que se decida, inclusive no plano constitucional, que as pessoas em situação de vulnerabilidade terão direito a um mínimo social. É o que fazem, no Brasil, o BPC, que garante um salário mínimo a pessoas vulneráveis com mais de 65 anos, e o Auxílio Brasil. Coisa inteiramente diferente é acreditar na sabedoria do mundo político para regular a distribuição da renda na grande sociedade. É aí que aparece a bruxa má. Mesmo dispondo da maior carga tributária da América Latina, foi de 0,26% do PIB a taxa de investimento direto do governo federal no ano passado. Um estudo do Banco Mundial mostrou que 75% do gasto social, no Brasil, é “pró-ricos”, em regra capturado pela burocracia pública. De fato, temos um Robin Hood às avessas circulando por aí, e seria interessante prestar um pouco mais de atenção em como ele funciona.

Em 1800, pouco mais de 80% da humanidade vivia na miséria. Isso caiu a 44% no fim dos anos 80, mostra David Rosnick, e nas três décadas seguintes tudo se acelerou, com uma redução para perto de 10% da população global. A história desse sucesso está aí, a nossa disposição, para aprender: abertura econômica, regras de mercado, direitos iguais, proteção à propriedade, aposta na tecnologia e na educação. Um pacote que Daron Acemoglu e James Robinson chamaram de “instituições inclusivas’. Tudo distante das teorias do “ponto X”, e tudo ao contrário do que a infinita conversa-fiada ideológica pregou, e continua pregando, durante todos esses anos. Já devíamos estar vacinados, mas infelizmente não estamos, e é aí que reside, no fim das contas, nosso maior desafio.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Josué de Castro: Brasil da fome, ontem e hoje

O teórico pernambucano Josué de Castro se inscreve no rol de intelectuais que apresentaram formas originais de compreender a realidade brasileira. Com ele, veio abaixo a imagem de um Brasil generoso, de natureza colossal e exuberante, no qual supostamente não haveria escassez de alimentos. Por meio de sua extensa e profunda obra, Josué de Castro descortinou um Brasil que, de norte a sul, de forma direta ou indireta, estava marcado pelo problema da fome — não tanto devido às condições naturais, mas, sobretudo, por causa do próprio homem e da estrutura socioeconômica implantada no país.

Os milhões de brasileiros que passam fome hoje sinalizam que a obra de Josué de Castro resiste à prova do tempo e precisa ser revisitada. Com o atual cenário marcado por um modelo de desenvolvimento agroexportador, com forte e crescente presença de produtos alimentícios ultraprocessados e profundas mudanças climáticas, uma nova geografia da fome vem se materializando.


Este texto se propõe a recolher os principais pontos da obra de Josué de Castro que estimulam o atual debate sobre a fome no Brasil. São sete ideias-forças que sustentam a construção de uma narrativa sobre esse fenômeno e contribuem para se pensar as profundas transformações — e consequências — dos sistemas alimentares no Brasil entre 1946, quando Geografia da fome foi lançado, e os dias de hoje.

1) A fome é multidisciplinar, com complexas dimensões

O conceito de fome construído por Josué de Castro é multifacetado, pois sua formação também o é. Diplomado como médico, ele nunca parou de estudar: interessou-se por vários temas e se envolveu com diferentes campos do conhecimento, como medicina, nutrição, geografia, antropologia, psicologia, sociologia, educação, filosofia, artes, economia política, ecologia, história e relações internacionais. Da interação entre tantas áreas de estudo, o intelectual pernambucano foi capaz de reunir múltiplos focos e olhares sobre o fenômeno da fome — o grande tema de sua trajetória, uma verdadeira missão a cumprir em vida.

Se nas primeiras publicações, nos anos 1920, suas preocupações eram mais ligadas à área médico-nutricional, a partir dos anos 1940 as questões de cunho social, político e econômico passam a ser cada vez mais incorporadas em sua obra (Magalhães, 1997). A abordagem do teórico parte dessa ampla formação, e é justamente nesse contexto que Geografia da fome, um livro-síntese, nasce em 1946.

Representando uma abordagem metodológica inovadora, sua obra retirou o tema da fome do enfoque parcial e miniaturizado em que se encontrava e o expandiu em diferentes ângulos, detectando-o e articulando-o com a realidade do Brasil como país subdesenvolvido. Josué de Castro concebeu a questão da alimentação como um complexo de manifestações simultaneamente biológicas e sociais, e ensinou: a fome é complexa, e complexos serão seu entendimento e sua solução. Para compreender esse fenômeno são precisos, de um lado, estudos aprofundados da fisiologia da nutrição, dos caracteres físicos e morais do povo dessa região, de sua evolução demográfica, de sua capacidade e resistência orgânica e, de outro lado, estudos das condições físicas do meio, das suas condições econômicas, da organização social e dos gêneros de vida dos seus habitantes. Abarca, assim, o estudo da alimentação, capítulos de biologia, de antropologia, física e cultural, de etnografia, de patologia, de sociologia, de economia política e mesmo de história. (Castro, 1937, p. 22-3)

2) A fome como fenômeno social total

A noção de fome proposta por Josué de Castro pode ser explicada pelo conceito de fato social total ou fenômeno social total, inicialmente formulada pelo antropólogo francês Marcel Mauss no célebre Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas,publicado em 1923. Trata-se de um conceito central nas ciências sociais. No fato social total, exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas, morais (políticas e familiares) e econômicas (Mauss, 2003, p. 187).

O conceito estabelece dois princípios essenciais. O primeiro propõe que um fenômeno social é sempre complexo e apresenta várias dimensões; além disso, esses princípios podem ser visualizados e entendidos a partir de diferentes ângulos, que, por sua vez, têm a finalidade de acentuar uma ou várias das dimensões existentes. É uma atividade com implicações em toda a sociedade, como uma totalidade. A partir dele, é possível interpretar vários aspectos de uma sociedade ao se estabelecer conexões com outros fenômenos sociais, econômicos ou culturais. O segundo princípio é que todo comportamento se volta para a sociedade ou para o grupo e só pode ser considerado, em primeiro lugar, fenômeno social nesse contexto. Assim, esse comportamento só pode ser entendido e estudado a partir das relações que estabelece com a sociedade. Casos individuais não são o foco dos fenômenos sociais.

Era exatamente o que pensava Josué de Castro sobre o fenômeno da fome, quando aparece diretamente relacionado ao contexto de uma nação terceiro-mundista, de um capitalismo atrasado e periférico, ligado à formação de um país escravocrata e agroexportador como o Brasil.

Nos primeiros escritos, o jovem médico lança mão de temas ausentes na discussão clínica da nutrição, como raça, evolução social e identidade nacional. A fome, enquanto fenômeno social total, perpassa, inclusive, nossa identidade como nação. Nesse sentido, a raça não era explicação para os males do Brasil, e sim a fome, que grassa principalmente entre a classe trabalhadora e mais pobre do país:

Se a maioria dos mulatos se compõe de seres estiolados, com déficit mental e incapacidade física, não é por efeito duma tara racial, é por causa do estômago vazio. Não é mal de raça, é mal de fome. É a alimentação insuficiente que não lhe permite um desenvolvimento completo e um funcionamento normal. […] Daí a importância do estudo científico da alimentação e o interesse dos verdadeiros sociólogos em conhecer os hábitos alimentares de cada povo, para melhor esclarecimento de sua formação e evolução econômico-sociais. (Castro, 1968a, p. 67-8)

Gradualmente, o conceito dessa calamidade social passa por um processo de conexão entre o sistema natural e o sistema social. Em especial a partir da obra Geografia da fome, o fenômeno ganha contornos não só médico-nutricionais, mas sociais, políticos, econômicos e históricos.

3) A geografia como método

A nova abordagem metodológica de Josué de Castro é esboçada, a princípio, em Alimentação brasileira à luz da geografia humana (1937) e depois concretizada em Geografia da fome. Baseava-se na necessidade de se conhecer quantas e quais eram as pessoas que passavam fome nas diferentes partes do Brasil, bem como de determinar suas causas e consequências.

Para isso, o autor utilizou-se do geoprocessamento e da multidisciplinaridade como dois elementos basilares de sua metodologia. O primeiro consistia no mapeamento das calamidades sociais de um ponto de vista processual, isto é, um fenômeno que tem uma ou várias causas, um desenvolvimento e um ou mais resultados. Já o uso da multidisciplinaridade teria fins de explicar seu principal objeto de estudo, a fome, por meio da combinação e da relação dos diferentes conhecimentos científicos, como já apontado.

O método do geoprocessamento se diferenciou um pouco do que era empregado nas décadas de 1930 e 1940, concebido somente em termos econômico-estatísticos, utilizando-se muito da média para analisar uma sociedade: média do pib per capita, média de idade da população e outras médias que figuravam nos argumentos a favor da teoria do progresso a todo custo. Para Josué de Castro, esse instrumento estatístico mascarava uma realidade heterogênea, desigual e injusta como a brasileira, o que obviamente não explicava, por si só, a natureza dos fenômenos sociais.

Para sua melhor compreensão, de acordo com o intelectual pernambucano, a fome precisava ser analisada por meio do estudo de sua distribuição em diferentes regiões do Brasil e do mundo, compondo um mosaico que revelasse suas diferentes expressões. Para tanto, o teórico lança mão do uso moderno da geografia:

Só a Geografia, que considera a terra como um todo e que ensina a saber ver os fenômenos que se passam em sua superfície, a observá-los, agrupá-los e classificá-los, tendo em vista a sua localização, extensão, coordenação e causalidade, pode orientar o espírito humano na análise do vasto problema da alimentação. (Castro, 1937, p. 25-6)

É a partir do método geográfico, particularmente dos mapeamentos das calamidades sociais, que Josué de Castro pôde entender melhor a fome, manifestada e evidenciada de maneiras diferentes em cada região, mas com algumas características comuns a todas elas. Esse perfil geográfico e populacional dos esfomeados, traçado inicialmente pelo teórico, é extremamente atual.

4) A questão do subdesenvolvimento

Em Josué de Castro, após os anos 1940, a fome é discutida tendo como pano de fundo a temática do (sub)desenvolvimento. Segundo o autor, a fome, em suas diferentes formas — quantitativa e qualitativamente —, é sempre produto direto do subdesenvolvimento, que, por si, não seria um fatalismo, mas um acidente histórico provocado por força das circunstâncias (Castro, 1996, p. 39).

Ao apontar a relação direta entre fome e desenvolvimento, mais precisamente a fome como resultado imediato do subdesenvolvimento, e as graves consequências dessa condição para a população dos países mais pobres, o autor reivindica o direito dos países do Terceiro Mundo de ter as mesmas condições de vida que os países do Norte. Devido a essa posição reivindicatória e alarmista, Josué de Castro passa a ser conhecido como advogado do Terceiro Mundo.

O que caracteriza por excelência o subdesenvolvimento é o desnível, é a disparidade entre os níveis de produção, de renda e de capacidade de consumo entre diferentes camadas sociais e entre diferentes regiões que compõem o espaço sociogeográfico da nação. (Castro, 1968b, p. 66)

Para Josué de Castro, promover o desenvolvimento econômico e social significava atenuar esses desníveis. Sua luta era por uma nova concepção de desenvolvimento que levasse em conta os fatores humanos e que tornasse a alimentação uma prioridade (Taranto, 1993). O atraso do setor rural, percebido por Josué de Castro como uma das principais causas do subdesenvolvimento no Brasil, era fruto, em grande medida, do “arcaísmo das estruturas agrárias” existentes desde os tempos da Colônia. Para superar esse problema, era necessária uma mudança radical a partir da implementação de uma verdadeira reforma agrária.

Não à toa, Josué de Castro se elege deputado federal em 1954 apoiado pelo líder camponês Francisco Julião, com a bandeira da reforma agrária e da valorização da agricultura que ele chamava de sustentação, compreendida hoje como agricultura familiar (Schappo, 2008).

5) A ecologia como novo parâmetro civilizatório

A questão ambiental e ecológica em Josué de Castro está diretamente relacionada com a multidisciplinaridade de seu método e com o conceito de fenômeno social total já mencionados. O conceito de meio ambiente não é tomado isoladamente, como ele indica no artigo “Subdesenvolvimento: causa primeira de poluição”, de 1973:

Uma análise correta do meio deve abarcar o impacto total do homem e de sua cultura sobre os elementos restantes do contorno, e o impacto dos fatores ambientais sobre a vida do grupo humano considerado como uma totalidade. Desse ponto de vista, o meio abrange aspectos biológicos, fisiológicos, econômicos e culturais, todos combinados na mesma trama de uma dinâmica ecológica em transformação permanente. (apud Castro, 1996, p. 110)

O pernambucano alertava para a crise ecológica já nos anos 1970. Afirmava ser inviável a manutenção do então modelo de crescimento e propunha uma solução que considerasse a realidade dos países subdesenvolvidos e os fatores que determinavam o crescimento, como as estruturas econômicas, sociais e políticas, sem omitir o homem e sua cultura (Castro, 1996).

A crítica de Josué de Castro inscreve-se na solução teórica oferecida pelo economista polonês Ignacy Sachs, o ecodesenvolvimento, que desloca o problema do aspecto puramente quantitativo — crescer ou não — para o exame da qualidade do crescimento. Como afirma o teórico da fome:

Crescer é uma coisa, desenvolver, outra. Crescer é, em linhas gerais, fácil. Desenvolver equilibradamente, difícil. Tão difícil que nenhum país do mundo conseguiu ainda. Dessa perspectiva, o mundo todo continua mais ou menos subdesenvolvido. (apud Castro, 1996, p. 111)

De acordo com Sachs, a atualidade de Geografia da fome repousa na dupla sensibilidade social e ecológica, sendo o conceito de ecodesenvolvimento — a tentativa de definir estratégias de desenvolvimento socialmente úteis, ecologicamente sustentáveis e economicamente viáveis — fruto direto da preocupação de Josué de Castro (Minayo, 1985). Cabe afirmar, portanto, que Josué de Castro é um dos precursores do conceito de desenvolvimento sustentável. Para ele, a questão ambiental representava um novo marco civilizatório.

6) Ciência engajada, ciência comprometida

Josué de Castro concebe a ciência de maneira anticlássica e antiacadêmica. É o que se depreende da introdução ao livro Sete palmos de terra e um caixão, de 1965. Ao falar sobre o estudo, ele faz uma ressalva que nos ajuda a explicar essa concepção:

Não é este um ensaio de Sociologia clássica. De uma Sociologia acadêmica […]. O nosso estudo sociológico é o oposto deste gênero de ensaio. É um estudo de Sociologia participante ou comprometida. De uma Sociologia que não teme interferir no processo da mudança social com os seus achados e, por isso mesmo, não tem o menor interesse em encobrir os traços de uma realidade social, cuja revelação possa acarretar prejuízos a determinados grupos ou classes dominantes. (Castro, 1969, p. 15)

7) A representação social da população em situação de fome

Quando se aproximou da antropologia, na década de 1930, Josué de Castro percebeu a importância do fator cultural para o entendimento da sociedade brasileira. No que se refere à questão alimentar, o sociólogo da fome passa a olhar não só para a estrutura socioeconômica do país, como também identifica e caracteriza as receitas, os modos de comer, os horários das alimentações e uma série de hábitos e costumes que o ajudam a analisar a fome em cada região brasileira:

Não temos a pretensão de investigar a fundo, numa sondagem definitiva, a influência de todos os fatores dessa categoria — raça, clima, meio biótico etc. — que constituem a base orgânica da estrutura social dos nossos grupos humanos. Estudando, porém, os recursos e os hábitos alimentares de várias regiões, teremos forçosamente que levar em consideração todos esses fatores ecológicos que participam ativamente na interação do elemento humano e dos quadros geográficos brasileiros. (Castro, 1992, p. 40)

Com base na interação homem/natureza, Josué de Castro deixou algumas pistas para se pensar a fome por meio da representação social da população em situação de miséria (Nascimento, 2002): o que pensam, como agem, o que sentem e quais as estratégias de sobrevivência das pessoas que passam fome? Por esse caminho, percebia o grau de adaptação e ajustamento do homem aos variados ecossistemas das regiões de fome no Brasil, como bem demonstrou em seu reconhecido ensaio “Ciclo do caranguejo”, publicado em 1937.

Modernamente, os homens-caranguejo foram substituídos pelo homens-gabiru de que fala Tarciana Portella, coautora de Homem-gabiru: catalogação de uma espécie:

O homem-gabiru é o homem comido pela fome. Ele pode estar na cidade, nas metrópoles, ele pode estar no sertão, ele pode estar em todo lugar. A gente fez um paralelo com o rato, porque é um bicho que se prolifera sem controle. É um bicho que dá nojo, é um bicho que se quer exterminar, que causa pânico, que causa pavor, que causa doenças, porque também essas são as sensações que os seres famintos causam nos cidadãos que comem todos os dias. (Portella, Aamot & Passavante, 1992, p. 11)

Dos homens-caranguejo aos homens-gabiru, as táticas de sobrevivência mudaram, mas a fome permanece. Segundo o recente inquérito da Rede Penssan (2022), o retrato da fome hoje é composto principalmente por gente do sexo feminino, moradora da periferia ou do meio rural, com baixa escolaridade ou analfabeta, pobre, negra, quilombola, indígena. A fome tem gênero, cor, endereço e grau de escolaridade. A fome, portanto, tem cara: essa é a representação de que falava Josué de Castro; essas são as pessoas a quem ele dedicou a vida e as quais pôs no centro da responsabilidade social do mundo.

Esses são sete conceitos que nos auxiliam a entender o Brasil atual, que nos dão chaves de conhecimento para compreender a fome num país tão rico. A percepção de que a fome é uma criação humana contra a própria humanidade — e que, portanto, pode ser desconstruída — foi, sem dúvida, a grande contribuição de Josué de Castro para a ciência.

O Homem amesquinhado

Apesar do quadro negro de uma cúpula política e intelectual desvairada e grossa e de um povo abandonado a seu próprio destino, ainda havia ali, no país, naquele espantoso verão de 1955, uma considerável energia vital, uma exaltada alegria de viver, acentuada, em alguns lugares e num ou noutro indivíduo, ainda mais possuído do gozo pleno de um extraordinário senso lúdico tropical. Estávamos, poderíamos nos considerar como estando, num dos últimos redutos do ser humano. Depois disso viria o fim, não, como todos pensavam, com um estrondo, mas com um soluço. A densa nuvem desceria, não, como todos pensavam, feita de moléculas radioativas, mas da grosseria de todos os dias, acumulada, aumentada, transmitida, potenciada. O homem se amesquinharia, vítima da mesquinharia do seu semelhante, cada dia menos atento a um gesto de gentileza, a um ato de beleza, a um olhar de amor desinteressado, a uma palavra dita com uma precisa propriedade. E tudo começou a ficar densamente escuro, porque tudo era terrivelmente patrocinado por enlatadores de banha, fabricantes de chouriço e vendedores de desodorante, de modo que toda a pretensa graça da vida se dirigia apenas à barriga dos gordos, à tripa dos porcos, ou, no máximo de finura e elegância, às axilas das damas.

Millôr Fernandes, "O livro vermelho dos pensamentos de Millôr"

A culpa é nossa pelos eventuais crimes que Bolsonaro cometeu

Sabe quem são os culpados por comparecer sem máscara e contrariando as orientações médicas a eventos promovidos pelo presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia da Covid-19?

Os que compareceram, ora, jamais Bolsonaro que os convocou, concluiu a vice-procuradora-geral da República Lindôra Araújo ao pedir o arquivamento das denúncias da CPI contra ele.


Não eram obrigados a comparecer. Não foram coagidos para tal. Não estavam proibidos de usar máscara. Poderiam ter mantido o distanciamento recomendado pelos médicos. São culpados.

Bolsonaro foi avisado por um aliado de irregularidades nas negociações do Ministério da Saúde para a compra de vacinas e fez vista grossa? Ele não era forçado a agir diante de suspeitas.

O bom patriota é estimulado a avisar às autoridades que um eventual crime está para ser cometido, o presidente da República, não. Ou melhor: Bolsonaro, no entendimento de Lindôra, não.

Também não cabe incriminá-lo por ter prescrito drogas ineficazes para o combate à pandemia como a cloroquina e outras. Porque ele sinceramente acreditava que elas funcionam. Uma pena que não.

Acreditava baseado no quê se a Organização Mundial da Saúde dizia que elas não eram eficazes e o resto do mundo não as adotou? Baseado em algumas coisas que ele leu ou que lhe disseram, pois.

Escreveu Lindôra no seu despacho:

“Para o direito penal brasileiro, o agente que age sinceramente acreditando nos recursos de tratamento poderá até ser tido como inculto, mas não charlatão”.

A Procuradoria-Geral da República é o único órgão com poderes para propor ações contra o presidente na área criminal. Se não propõe, o Supremo Tribunal Federal não pode acolhê-las, e ponto.

Ali foi posto Augusto Aras, o procurador, que escalou seu time de auxiliares. Em troca de barrar ações contra Bolsonaro, Aras esperava ganhar uma vaga de ministro do Supremo. Ainda espera.

Se os desavisados esperavam que ele agisse como um servidor exemplar da Justiça, o problema é dos desavisados, dele não. Aras é um servidor exemplar de Bolsonaro, e estamos conversados.

As milícias e a economia da extorsão

Escrevo esta resenha ainda sob o choque de mais uma chacina que vitimou 19 pessoas na favela do Alemão no Rio de Janeiro, neste julho de 2022, mas também pelo acúmulo de execuções que vemos de norte a sul do país, e pelo crescente sentimento de impotência frente à criminalidade das chamadas forças da ordem. Em 2021, a polícia matou uma média de 17 pessoas por dia, a maioria jovens negros, neste país que não tem pena de morte. Falam em tiroteio, mas quando morrem dezenas e apenas raramente ocorre uma morte de policial, trata-se de execuções. E tem a ver também com a profunda indignação frente ao comportamento de um presidente que encoraja essa criminalidade, com a qual a sua família está diretamente conectada.


Vejo este livro – A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro (Todavia, São Paulo, 2020) de Bruno Paes Manso – bem como o mais antigo trabalho de Luiz Eduardo Soares, Meu Casaco de General, ou o recente A desigualdade social de Mário Theodoro, como aportes essenciais para entender que não se trata, nessa violência oficial generalizada, de “combate contra o crime”, mas de uma articulação complexa da criminalidade tradicional com as milícias e segmentos policiais e militares, além de redes mais tradicionais como a do jogo de bicho, e organizações mais amplas de compra e venda de drogas e armamentos por atacado, e as atividades bancárias correspondentes. Ao escolher o título “a república das milícias”, o autor claramente aponta para a dimensão de organização política do conjunto, que vai desde o controle da venda do botijão de gás até o apoio do mais alto escalão político.

Queria aqui focar em particular neste universo econômico, que hoje constitui um sistema, e não apenas comportamentos criminosos individuais. As pessoas são forçadas a entrar na lógica que utiliza violência sem dúvida, mas que subsiste e se multiplica pelos enormes lucros auferidos tanto por criminosos comuns como sobretudo pelas diversas forças policiais que travam uma guerra por territórios e pelo controle dos mecanismos de exploração econômica. Entre conflitos, alianças, “mineração”, “arregos” e assassinatos, o dinheiro flui em grande volume, e as pessoas que pagam contam-se em milhões. É realmente uma república, que não só gerou uma ampla base econômica, como a usa para entrar formalmente na política, elegendo inicialmente vereadores, depois deputados, senadores, e até um presidente.

A comunidade de Rio das Pedras é um dos exemplos: “Policiais assumiram o controle da associação de bairro, que já arrecadava mensalidades para mediar a compra de lotes e terrenos. Eles criaram novos negócios e passaram a influenciar não somente instituições, mas também corporações policiais. Profissional e organizado, o grupo assumiu o papel de governo terceirizado de Rio das Pedras, cobrando taxas dos moradores pela gestão da segurança” (página 85). A expressão “governo terceirizado” reflete bem a amplitude da organização, bem como o papel-chave desempenhado por policiais e militares.

“Uma das empresas de Rio das Pedras chegava a vender cerca de 3 mil botijões por dia, o que representava um faturamento mensal de 600 mil reais. Cobrava-se também pela instalação de sinais clandestinos de TV a cabo (de cinquenta a sessenta reais), internet (de dez a 35 reais), segurança de comércio (de trinta a trezentos reais) e de moradores (de quinze a setenta reais). O sargento Dalmir e o major Dilo também se tornaram sócios, na Areal Crédito Fomento Mercantil, que emprestava a juros aos comerciantes, entre outros empreendimentos. A nova composição, mais profissional e influente, abriu caminho para parcerias com a prefeitura” (página 86). A extorsão não só rende, como se enraíza.

O sistema hoje está organizado em inúmeras comunidades do estado do Rio e cobre um conjunto de atividades que o Estado normalmente asseguraria, e que hoje as milícias controlam, cobrando pedágios, por exemplo, sobre as vans que servem áreas menos acessíveis. Promovem grilagem em zonas protegidas por leis ambientais, venda de apartamentos ilegais, sempre “com uma narrativa moralista, herdada dos vigilantes nordestinos e policiais, que associavam o grupo ao modelo de autodefesa territorial” (página 241). O autor estuda as milícias cariocas, mas o exemplo já se multiplica.

O negócio das drogas, longe de ser combatido, na realidade constitui a base para uma participação nos lucros, por meio dos “arregos”. Na Cidade de Deus, “os policiais estavam aterrorizando a comunidade para forçar os integrantes do tráfico local a lhes pagar o ‘arrego’, outra palavra corrente nas conversas cotidianas sobre o crime no Rio de Janeiro. Pagar o arrego significa comprar a trégua com o batalhão ou o distrito local, que então passa a tolerar o movimento de vendas no território. O pagamento do arrego foi fundamental para consolidar o mercado de drogas nos anos 1990 no Rio, uma espécie de regulamentação informal do varejo de drogas estabelecida na ponta pelo policiamento” (página 41).

O sistema se expandiu para inúmeros bairros. Os policiais “assumiam cada vez mais a condição de subprefeitos informais, desempenhando nas favelas tarefas que cabiam ao Estado. Quanto mais fortes politicamente eles ficavam no bairro, mais possibilidades de lucro surgiam. O grupo também passou a reproduzir em seus territórios os negócios geradores de receita das milícias de Rio das Pedras – monopólio da venda de gás, instalação de gatonet, taxas de segurança, proteção para máquinas de caça-níquel, agiotagem, taxa para a regularização de imóveis – e a acumular dinheiro e poder” (página 91) A população fica presa no sistema: “De um lado, a mistura de consentimento e falta de alternativa dos moradores; de outro, a promessa de dinheiro e poder para policiais e paramilitares que participavam do esquema ou que queriam participar” (página 88).

Assim, o modelo econômico gera imensos lucros sem que a população tenha alternativas. O lado impopular desse modelo, segundo Bruno Manso, “é que a maior parte das receitas para bancar o negócio vem da extorsão dos habitantes” (página 77). A falta de alternativas resulta diretamente da violência exercida. “De 190 a 2019, mais de 200 mil pessoas foram assassinadas no Rio de Janeiro, – a maioria negros, homens, com menos de trinta anos, moradores de bairros pobres” (página 251). A violência também assegura mais controle político: “Entre novembro de 2015 e agosto de 2016, treze candidatos, vereadores e lideranças comunitárias foram assassinados” (página 236).

A relação com a família Bolsonaro é forte. O policial civil Rafael Luz Souza “foi preso pela operação Quarto Elemento quando estava em uma boate com dois carros roubados, cinco fuzis e uma metralhadora antiaérea .50, capaz de derrubar aeronaves. Nessa operação, também foram denunciados os irmãos gêmeos Alan e Alex Rodrigues de Oliveira, seguranças da campanha de Flávio Bolsonaro ao Senado em 2018. A irmã dos gêmeos, Valdenice, trabalhava no gabinete de Flávio e ficou encarregada de administrar os gastos da campanha de Flávio ao Senado. Alan e Alex eram sócios de um loteamento irregular e pagavam propinas aos policiais” (página 243).

As conexões são óbvias. “Como Jair vivia em Brasília, a aproximação com os grupos de policiais e paramilitares do Rio se deu por meio do sargento Fabrício de Queiroz, ex-colega de Bolsonaro no Exército e linha de frente do 18º Batalhão. Queiroz era cria da Praça Seca, em Jacarepaguá, e participava dos conflitos policiais com os integrantes do tráfico na Cidade de Deus, que sempre rendeu arrego, armas e uma ampla diversidade de receitas. Em 2003, Queiroz conheceu Adriano da Nóbrega, com quem atuou num homicídio na Cidade de Deus. A participação de policiais do 18º foi fundamental para que as milícias se espalhassem por Jacarepaguá, Recreio e Barra, principalmente depois de 2002, reinventando o modelo de Rio das Pedras. Queiroz era o principal articulador da base de aliados bolsonaristas no meio paramilitar” (página 273).

A República das Milícias gera assim um universo violento e corrupto, baseado na extorsão e nos assassinatos, e solidamente implantado em amplos territórios. Articulado com sistemas formais de exercício de violência, é próspero em termos econômicos e forte em termos políticos. Gerou um universo econômico e social que se expande com violência e assassinatos impunes. Até quando deixaremos que se expanda este câncer? Até quando toleraremos esta desigualdade que joga milhões no desespero, terreno fértil para a bandidagem oficial e o desgoverno crescente? E a desigualdade, como sabemos, tem responsáveis no sistema econômico e político mais amplo. A criminalidade se combate não matando mais gente, mas reduzindo o espaço de miséria no qual ela se enraíza.

Economia da extorsão? Sem dúvida, mas que prospera graças a uma economia de extorsão incomparavelmente mais ampla, que reduz a massa da população brasileira à miséria, amplia o apartheid social e racial, mas usa terno e gravata.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Brasil vai às urnas

 


Os cavalos no obelisco e a convenção do PL

Não sei porque, mas essa convenção do PL para indicar oficialmente o Bolsonaro como candidato a presidente da república me lembrou o episódio dos cavalos amarrados no obelisco do Rio. O obelisco não existe mais e a Revolução de 30 que colocou os holofotes sobre Getúlio Vargas hoje faz parte só dos livros de História, mas a História é sempre sábia e nos ensina muito.

Eram gaúchos, não eram cantores sertanejos, mas já eram representantes do agronegócio que como hoje vieram amarrar seus cavalos e tratores no Maracanãzinho. A Revolução de 30 c0meçou bem intencionada apesar de distante do povo, mas o projeto acabou tendo a reprovação dos quartéis e depois, a Revolução Constitucionalista, a Intentona Comunista e a Revolta Integralista enterraram os ideais e colocaram definitivamente no poder um Vargas já simpatizante dos nazistas.


Estabeleceu=se a ditadura que só acabou em 1945 com a convocação de eleições gerais. Por que me lembrei dessa história hoje? Ora, porque tem tudo a ver. Os cavalos simbólicos representados por motos, os sertanejos, as armas e esse machismo político e cultural que se estabeleceu e tenta permanecer no poder se parece muito com o machismo político daqueles anos.

Estou escrevendo antes de saber como a Convenção evoluiu, mas arrisco a adivinhação. A arrogância dos gaúchos que amarraram seus pangarés no obelisco da Cinelândia no Rio se parece muito com a violência e a prepotência dos bolsonaristas. Eles estão apavorados com a iminência da derrota nas urnas e por isso são contra, mas entram no jogo. Se fossem contra mesmo não participariam. Estão só preparando as justificativas para a tentativa de golpe que certamente organizarão na certeza da derrota.

Eles tentam impor um Brasil do agro- patrão em cima de um Brasil dos sem terra. A política naquela época era feita por uma oligarquia que passava, como todas, muito longe do povo. Hoje querem a mesma coisa em nome desse povo que eles desconhecem. A História mudou, mas certas coisas permanecem para nos ensinar. Como não existe mais obelisco nem bosta de cavalo para limpar vamos só nos livrar desse ranço e dessa cultura da morte que os bolsonaristas querem nos impor.

Chega de amarrar cavalo e boi na sombra. Vamos trabalhar para que o Brasil volte às páginas da História contando coisas boas e melhorando a condição de vida do povo.

Bolsonaro não trabalha

Jair Bolsonaro não trabalha. Diante de todo problema enfrentado pelo Brasil, Bolsonaro sempre escolhe a solução em que ele não precisa fazer nada.

O caso mais trágico foi o combate à pandemia. Organizar o isolamento social, como recomendava a Organização Mundial de Saúde, seria uma tarefa extraordinariamente complexa: "muito serviço", Jair pensou, e desistiu da ideia.

No início da pandemia, alguns países tentaram outras estratégias, às vezes combinadas com o isolamento, como a testagem em massa com rastreamento dos contatos dos doentes. "Eu que vou organizar a fila?", perguntou-se Jair, e também desistiu. Bolsonaro chegou a defender que só os idosos ficassem isolados, mas apressou-se em dizer que não era ele quem ajudaria aqueles velhos todos, isso era problema de cada família.

Eis que o deputado extremista Osmar Terra ofereceu a Jair a tese da "imunidade de rebanho". Ampla e irrefutavelmente refutada pelos fatos, a tese da imunidade de rebanho dizia que Bolsonaro não precisava fazer nada para combater a pandemia de Covid-19: bastava deixar o vírus circular até que os sobreviventes ficassem imunes. Bolsonaro não ouviu nada depois de "não precisa fazer nada": comprou a ideia na hora.

Notem bem: quando Bolsonaro decidiu por esse caminho, não existia vacinas. Não é que Jair tenha topado deixar morrer as 670 mil que morreram. Ele topou deixar morrer os milhões que teriam morrido se a vacina não tivesse sido inventada e se Doria não a tivesse comprado.

Solução de Bolsonaro para segurança pública? Compre você mesmo uma arma e mate você mesmo a bandidagem. Inclusive, já fique você avisado que o bandido também vai comprar arma nova. Fiscalizar quem é ou não é bandido daria trabalho, e Bolsonaro não trabalha.

Solução de Bolsonaro para crianças que ficaram sem escola na pandemia? Home schooling. Os pais que se virem para dar aulas para seus filhos. Pais pobres que não puderam estudar e não conhecem as matérias que seus filhos estudam, pais que depois do trabalho pegaram duas horas de trem e chegam cansados em casa, eles que aceitem trabalhar mais para Bolsonaro poder trabalhar menos.

Bolsonaro sempre foi um crítico dos ecologistas. Poderia, portanto, ter proposto uma reforma da legislação ambiental. Mas isso também exigiria estudos, negociações, reuniões, enfim, trabalho. Jair preferiu desmontar a fiscalização ambiental: assim, não faz diferença qual é a lei, já que ninguém vai aplicá-la, e "fiscalizar floresta" passa a ser um trabalho a menos para Bolsonaro fazer.

Não é questão de liberalismo. Implementar reformas liberais também dá trabalho, como mostra a experiência de vários governos brasileiros. Privatizar, por exemplo, exige decidir sobre o modelo de privatização, exige elaborar um quadro regulatório. Cortar impostos implica decidir que impostos serão cortados, que programas serão reduzidos após a perda de arrecadação. Isso tudo é trabalho, e trabalho Bolsonaro não quer.

Não é questão de laissez-faire, o Jair só não quer faire serviço nenhum.

Assim funcionou o Brasil nos últimos três anos e meio. Para saber que política pública seria implementada pelo governo federal, bastava descobrir qual das opções dispensava Jair Bolsonaro de sair do WhatsApp, colocar uma calça e dar expediente.

Um direito de cidadania

Imaginem incluir na Constituição o seguinte artigo, aqui desprovido do juridiquês: “É direito de todos, pelo simples fato de serem cidadãos e cidadãs deste país, receber R$600,00 por mês, corrigíveis pela inflação, desde o nascimento até a morte. É o direito de cidadania”!

Como garantir e pagar esse desejável e necessário direito sem comprometer o igualmente desejável e necessário equilíbrio entre o que o Estado arrecada e o que gasta?

Com uma profunda, revolucionária, reforma tributária e das contas públicas! Não basta alterar a maneira como o estado arrecada; há que transformar também a forma como ele gasta, tantos são os descaminhos denunciados e, não obstante, mantidos!


Há estudos que mostram a viabilidade da proposta de uma renda da cidadania em valor próximo ao citado.

Implantadas tais reformas o Brasil será outro, com melhor qualidade de vida para todos, principalmente os mais carentes. Estes, tendo deixado a pobreza, impulsionarão a economia e aqueles no topo da pirâmide de renda serão beneficiados pela melhoria da qualidade de vida da maioria! A distribuição da renda no Brasil se tornará próxima à da Inglaterra! (Para mais detalhes, ver artigo de Siqueira e Nogueira no Valor Econômico de 09/04/20).

De acordo com tal estudo, “[para] os 10% mais pobres da população, a renda familiar per capita quase triplicaria, em média. Ao todo, 64% da população teria um ganho [financeiro] líquido com a reforma. As perdas líquidas, por sua vez, se concentrariam no topo da distribuição de renda. Para os 10% mais ricos, a redução média na renda [financeira] domiciliar per capita seria de 16%”. Esquema mais progressivo de tributação que o simulado pelos autores poderia reduzir essa “perda” aos 5% mais ricos, tornando essa mudança ainda mais construtiva de uma nova sociedade, menos violenta e mais solidária!

Como todos sabem, qualidade de vida envolve muito mais que renda maior! Já está amplamente demonstrado que ajudar e receber ajuda, apoiar e ser apoiado, valorizar a cooperação e não só a competição são fatores que melhoram a qualidade de vida das pessoas e devem, pois, ser aplaudidos! O debate sobre este direito de cidadania aqui mencionado poderá fortalecer atitudes que favoreçam tais práticas, com todos os seus benefícios. Promover a cooperação é um caminho que precisa ser trilhado, ainda que não seja apoiado pelas práticas políticas vigentes no Brasil.

Transformar nossas sociedades para caminhar nessa direção é essencial para nos tornarmos sustentáveis, para que nossos filhos e netos tenham menos motivos para nos condenar em razão dos desastres ambiental e societário que, sem valorizar tais práticas, lhes deixaremos. E quem quer ser condenado, ainda mais por filhos e netos?

Na disputa eleitoral em curso, seria bom se candidatos e candidatas se manifestassem sobre tal proposta, cuja necessidade e viabilidade são cada vez mais reconhecidas internacionalmente.

Governo Bolsonaro é um show de crimes

Começa assim: Bolsonaro comete um crime. Mais um. Qualquer um de seu desvairado repertório. Convocar fanáticos apoiadores para preparar um golpe no dia em que lança a candidatura à reeleição, por exemplo. Ou fazer para dezenas de embaixadores uma apresentação eivada de mentiras contra as urnas eletrônicas.


Com as proverbiais notas de repúdio, segue-se o roteiro da peça, introduzindo-se uma novidade, uma pimenta para que o espectador não durma na cadeira: a reação do governo americano elogiando nosso sistema eleitoral e as manifestações de juízes, procuradores, delegados e peritos da PF, além do protesto dos servidores da Abin, o mais surpreendente ou quem sabe o mais combinado de todos, já que a agência está sob o coturno do general Heleno, que incentiva as teses golpistas do capitão.

Quem deveria falar grosso, no entanto, se cala ou tergiversa. O procurador-geral da República, Augusto Aras, divulgou um vídeo gravado no dia 11 de julho —sete dias antes do encontro com os embaixadores— no qual diz não aceitar "alegações de fraude". Arthur Lira mostra-se mais preocupado com o destino do Arapiraca na série D do Campeonato Brasileiro. Enquanto isso, os pedidos de impeachment contra Bolsonaro — cerca de 150 — estão acumulando poeira na mesa do presidente da Câmara.

Na tática de fazer parecer que tudo está como dantes no quartel de Abrantes, o Planalto arrumou um culpado para livrar a cara do presidente. Coronel transformado em bode, Mauro Cesar Cid é o ajudante de ordens de Bolsonaro que vive grudado nele 24 horas por dia e teria organizado o espetáculo que escandalizou a opinião internacional e envergonhou os brasileiros. Cada autocracia tem o Rasputin que merece.

O show há de continuar. Não faltam pombas pintadas de verde e amarelo, novas denúncias de corrupção e o aparecimento de mais colecionadores de armas que são milicianos e traficantes de drogas.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Pensamento do Dia

 


E aquela do Millôr?

Se o Brasil de hoje é isso que estamos vendo, não foi por falta de aviso. Millôr Fernandes (1923-2012) levou grande parte do século 20 nos avisando. Exemplos?

"Deus projetou o Brasil como uma sala de estar. Mas os proprietários preferiram usá-lo como depósito de lixo." "Deus é brasileiro. Mas, para defender o Brasil de tanta corrupção, só escalando Deus no gol." "A voz do povo é a voz de Deus. Mas Deus, sempre que fala, manda o povo calar a boca." "O Brasil é uma empresa unifamiliar." "Brasil, país do faturo." "Brasília é a prova de que os países também se suicidam."

"O cavalo foi um elefante projetado pelo Planalto. Na hora do acabamento, sumiram vinte por cento." "O dinheiro da corrupção compra até caráter sem jaça." "Nossos corruptos são tão incompetentes que só conseguem roubar do governo. Se fossem ladrões na iniciativa privada, morreriam de fome."

"Afinal, o que mais falta nesse Congresso? Quorum ou dequorum?" "No Congresso Nacional, uma mão suja a outra."

"Não há bem que sempre dure. Nem mar que nunca se acabe." "Bons tempos em que o faroeste era nos Estados Unidos!" "Racista é um cara que nunca mandou examinar sua árvore genealógica." "Conciliação vem de ‘cílios’. Conciliador é o cara que fecha os olhos. Não vê. Porque não quer ver." "Quem confunde liberdade de pensamento com liberdade é porque nunca pensou em nada."

"Só haverá democracia no dia em que tivermos voto a favor, voto contra e voto retroativo." "Aliás, por que não só o voto contra? O menos votado seria eleito." "O Brasil engoliu o gorila, mas deixou o rabo de fora." "Quando é que os milicos vão se convencer de que ‘civilização’ vem de civil?" "No Brasil, só há duas escolhas: desobediência civil ou obediência militar." "Uma maneira de acabar com as pretensões da caserna é pegar todos esses milicos metidos em política e convocá-los pro serviço militar obrigatório."

O saturado e o podre

Em entrevista bem ponderada, um pastor evangélico fez raro diagnóstico de "apodrecimento da política e da religião". Há, de fato, um momento em que toda forma de poder, benigna ou maligna, começa a definhar. Para o primeiro tipo, o sociólogo russo Pitirim Sorokin, fundador do departamento de sociologia de Harvard, concebeu a hipótese da "saturação", ou seja, de esgotamento das possibilidades históricas de uma forma social. O segundo diz respeito às formas autocráticas, que atropelam a normalidade das instituições sociais.

É possível, assim, falar de saturação das formas canônicas da democracia representativa ou, noutro plano, de uma fórmula anteriormente consagrada da indústria cultural. A televisão e as revistas semanais coloridas fornecem um bom exemplo. Nas décadas de 1960 e 1970, as revistas prosperaram em termos de audiência e publicidade até a inevitável saturação frente aos atrativos da televisão que, por sua vez, também tenta hoje contornar com "remakes" de sucesso o enfartamento das telenovelas. Esse é um fenômeno razoavelmente normal, dentro do escopo teórico de Sorokin.


Agora, fala-se publicamente de algo além do mero saturado, que é o podre. A fala do pastor foi explícita, mas referências e adjetivos de formadores de opinião revelam ampla percepção do apodrecimento cognitivo nos comportamentos públicos, de que acaba de dar mostra à diplomacia estrangeira o presidente da República. Além disso, porém, é o próprio tecido coesivo de instituições, no âmbito da religião e da política. Basta ver a sanha autodestrutiva da elite política, que oscila entre o espúrio e o escatológico. Ou então, as "igrejas" que se multiplicam como vírus ou filiais de comércio umas das outras, amealhando o máximo da renda mínima de legiões de incautos. É como se houvesse septicemia da dignidade pessoal e coletiva.

Numa perspectiva global, isso tudo é efeito da exaustão de instituições democráticas, em meio ao turbilhão mundial de mudanças. São diversos, porém, os níveis regionais do fenômeno. O que dá margem à "teoria da flor frágil", a ideia do sociólogo Anthony Giddens de que a democracia não pode crescer em terreno superficial, pois suas raízes dependem de solo profundo e de acumulação de cultura cívica. Seria o tipo de crescimento que Gramsci identificou como "ocidentalização" da sociedade civil, do qual se viram entre nós alguns sinais com o fim da ditadura militar.

Só que a política já saturada foi incapaz de perceber outro tipo de sedimentação, a do Mal, solo da atual variante "transgênica" entre o perverso e o asqueroso. Assim chegamos ao auge: não só as coisas, mas também um certo substrato humano está indo pelo ralo, além da saturação e apodrecendo a inferno aberto, como esgoto não tratado.

Bolsonaro atende às demandas do crime organizado

O século XXI é um século de prestação de contas com a natureza. A humanidade sofre cada vez mais as consequências do aquecimento global causado pelos efeitos acumulados da atividade econômica que, há quase dois séculos, libera gases do efeito estufa à atmosfera.

No século XXI, toda política pública deve levar em conta o dilema climático. Esse problema exige uma nova consciência e uma nova postura dos seres humanos em relação à realidade e à natureza, desvinculada da lógica deletéria que nos trouxe até aqui. Mas uma nova consciência não parece emergir. Pelo contrário, num dos estágios mais críticos da humanidade, os políticos mais desqualificados ganham destaque e ascendem ao controle da máquina pública.

Em um mundo minimamente decente e razoável, todo chefe de Estado deveria elaborar políticas ambientais que levem em conta o enfrentamento à emergência climática que assola a humanidade. Mas no capitalismo as coisas não funcionam assim. Ao invés da máquina pública ser administrada visando o bem coletivo, ela acaba sendo ocupada por interesses privados. A elite possui cabedal e fortuna o suficiente para utilizar seu dinheiro e poder econômico para se infiltrar na política em nome de seus interesses particulares.


Sabemos que, em nome das grandes propriedades de terras, a fronteira agrícola consome a vegetação nativa e instaura o pastoreio e a monocultura de soja. A exploração da Floresta Amazônica também conta com inúmeras mineradoras estrangeiras. Porém, no governo Bolsonaro a escala da destruição foi além. Os setores clandestinos da economia, como garimpeiros, grileiros e madeireiros, se sentiram empoderados e ganharam espaço com a conveniência do Estado que os livrou dos empecilhos causados pela fiscalização. Os incêndios aumentaram, o desmatamento acelerou e a violência se intensificou.

Bolsonaro opera na política sob uma visão de mundo em que o espaço físico e os recursos naturais devem ser explorados pelo agronegócio, pelas mineradoras e pelos setores clandestinos da economia. Ele contribui para a batalha deliberada contra o meio ambiente e o bem-estar coletivo, em nome da livre atividade do crime organizado.

A Floresta Amazônia, por exemplo, deve ser vista como fonte de muitas riquezas. Além de abrigar uma riqueza imaterial imensa, correspondente a uma variedade de espécies de plantas e animais – além de povos e comunidades tradicionais, sua transpiração e regime de chuvas irrigam a América Latina e impactam positivamente o clima em escala global. A vida que ali se ergue é um patrimônio imensurável, que pela própria grandeza tem o direito de permanecer onde está. Contudo, num país inserido de forma subalterna no mundo globalizado, cujo sistema econômico se configura para atender às demandas do mercado externo, toda riqueza natural é avaliada como um recurso a ser explorado para fazer dinheiro.

O assassinato de indígenas e outros defensores do meio ambiente ocorrem nesse contexto em que tudo é permitido em nome da exploração econômica da Floresta. O assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips é resultado de um projeto de governo, de uma situação elaborada pelo desmonte de políticas ambientais encabeçado pelo governo Bolsonaro. O próprio Bruno foi exonerado na Funai por Sergio Moro, depois de operações eficientes contra o garimpo.

Um governo que mina a eficiência do combate ao crime organizado é um governo que denuncia sua própria conveniência com ele. A impunidade e a falta de fiscalização decretada pelo governo empoderou os criminosos. O desmonte das políticas ambientais é a própria forma do governo declarar a permissividade às atividades clandestinas.

Não temos um Estado que se omite em relação à violência, ao crime organizado, à destruição da natureza, como muitos dizem. Na verdade, temos um Estado conveniente e apoiador desse tipo de crime, cujo próprio projeto de governo é facilitar a realização dessas atividades. A crise ambiental e humanitária enfrentada pelo Brasil conta com a colaboração ativa do governo.

A trajetória de uma geração : do golpe a um putsch de cervejaria

Violações das leis e crimes contra a ordem constitucional são cometidos às claras, diante de uma sociedade apática e desmobilizada. Seu objetivo é manter o poder presidencial a qualquer custo. Embora possa fracassar em seu intento terrorista, para ser barrado o bolsonarismo precisa ser confrontado por ações democráticas de mobilizações de massa

Os últimos lances da temerária e imprevisível derrocada do governo bolsonarista indicam que estamos mais próximos de presenciar imagens grotescas e chocantes de um fracassado putsch de cervejaria, à la Hitler, do que de um golpe militar tradicional, com tanques nas ruas e aviões despejando bombas em alvos estratégicos. A convocação de embaixadores para uma degradante encenação golpista dentro do Planalto, o atentado político de Foz do Iguaçu e descobertas de novas redes de corrupção já constituem crimes para o afastamento de Bolsonaro. Faltam convocar o povo para as ruas e uma reação soberana dos tribunais superiores, cujos juízes estão sendo emparedados.

Faço parte de uma geração que chegando aos 20 anos, ao entrar numa faculdade, teve seus caminhos barrados por uma ditadura intransponível. Enredados num ciclo de perseguição e violência, os jovens reagiram como puderam, até de armas na mão. Caçados e assassinados nas ruas, muitos foram presos, torturados, mortos ou exilados, tragados por uma sangrenta repressão interna. Em processos abertos pela Justiça militar, foram acusados de subversivos e comunistas, assaltantes de banco, inimigos das famílias e da ordem ditatorial estabelecida.

Para os crentes que marcham com Deus pela liberdade e ainda não sabem, num regime totalitário a barbárie corre solta, não há leis nem esperança. Conhecedora deste submundo, uma amiga me ligou no sábado de manhã, apreensiva, perguntando se eu estava preparado para voltar às trincheiras. Estão planejando uma nova matança, disse ela, incapaz de dissimular o medo. Não sei se procuro uma embaixada ou se caio na clandestinidade novamente, mas acho que estou velhinha demais para isso. Sei que não aguento duas ditaduras.

Usando seu senso de humor, Márcia lamentou que de uma hora para outra possa ser impedida de sair de manhã para dar uma volta de bicicleta no calçadão da praia. Ou simplesmente caminhar pela areia, fazer alguns exercícios e respirar ao ar livre, sem se sentir aprisionada entre quatro paredes, dentro de um quartel, com uma janela gradeada à sua frente e toque de alvorada às 5 horas. Isso jamais, enfatizou minha amiga.


O que os brasileiros estão presenciando a cada momento é um processo de destruição paulatina das instituições democráticas, substituídas por e atos e medidas de um governo autocrático e populista, que se movimenta com a cobertura de seus aliados do Centrão, no Parlamento, e de militares da ativa, encobertos. O incentivo à ação direta e violenta de civis contra os inimigos é algo que vem sendo feito desde o início do governo. Agora, com a proximidade e a provável derrota na eleição, ele apressou o passo e tirou o revólver da cintura.

Violações das leis e crimes contra a ordem constitucional são cometidos às claras, diante de uma sociedade apática e desmobilizada. Seu objetivo é manter o poder presidencial a qualquer custo. Embora possa fracassar em seu intento terrorista, para ser barrado o bolsonarismo precisa ser confrontado por ações democráticas de mobilizações de massa. Sem a intervenção popular nas ruas, as instituições não serão capazes de conter as ameaças golpistas contra o sistema eleitoral.

O futurou tornou-se tenebroso, diz minha amiga, que não vê margens para grandes manifestações de rua. Não vejo condições de repetir passeatas, como a dos 100 mil. O povo sofre, passa fome, mas não identifica os responsáveis. A inércia trazida pela pandemia é predominante, desejos e necessidades são de outra natureza. Márcia estudou História na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, onde fiz jornalismo.

No início dos anos 60, num clima de liberdade e de grande agitação política e cultural, a Fenefi desempenhou papel importante na formação de uma geração de esquerda que estava entrando na vida social e econômica. Pelo intercâmbio interdisciplinar de seus cursos, era considerada uma pequena universidade, de elevado potencial subversivo.

A agitação estudantil da década foi prenúncio de uma decantada e frustrada guerrilha urbana. As escaramuças entre estudantes e policiais militares eram diárias, com as ruas bloqueadas por barricadas e cavaletes. Transeuntes fugiam em debandada, enquanto os PMs montados em seus cavalos saíam em disparada atrás dos estudantes.

Com o golpe de 1964, um contingente desses jovens engajados dispersou-se pelas diversas organizações revolucionárias que estavam em gestação. Depois da diáspora, no final da década, os sobreviventes foram se reencontrar nas Estações Doicodi da ditadura, ou no exílio. Muitos ficaram pelo caminho. Seus nomes figuram nas listas de mortos e desaparecidos. Alguns deles nomeiam praças, ruas e até escolas nos subúrbios.

Um vasto e inapreensível sentimento do mundo varreu a década, que o acúmulo de leituras, filmes e vivências pessoais transformou em descobertas múltiplas. Utopia foi um de seus nomes. Vários foram os caminhos e a revolução social um deles, tudo impregnado de uma magia transcendente, que pairava acima da realidade.

Estávamos às vésperas do apocalipse, como estamos de novo agora, Em 64, veio o golpe militar que implantou uma longa ditadura. Em agosto ou setembro de 2022 o que vem por aí pode ser a tentativa de um putsch sangrento, no modelo Adolf Hitler. O da cervejaria de Munique, em 1923, fracassou.