domingo, 4 de fevereiro de 2018

Entre a Presidência e o presídio

É natural estarmos preocupados. Vivemos dias de incerteza, ansiedade, vergonha. E de muita apreensão pelo futuro. Afinal de contas, nunca antes na história deste país um ex-presidente da República foi condenado por corrupção e lavagem de dinheiro — e, ao recorrer a uma instância superior, ainda teve a sentença confirmada e a pena ampliada por unanimidade. Anuncia que pretende continuar a recorrer, coisa que tem todo o direito de fazer, e é mesmo o caminho que condenado deve seguir. Mas anuncia também que pretende insistir em uma candidatura à Presidência — e aí é que as coisas se complicam. Ainda mais quando os que estão à sua volta adotam um tom de confronto belicoso, com ameaças e variados graus de desrespeito à lei, provocação e incitamento à violência. O próprio condenado, uns dos maiores líderes políticos da história da República, por oito anos ocupante do cargo máximo da nação, alguém que diante de todos nós jurou cumprir e defender a Constituição, faz questão de dar uma declaração inacreditável, ao dizer que “não vê nenhuma razão para respeitar a decisão” do tribunal.


Mas será que ele não tem o direito de espernear? Tem, sim. Espernear é livre. Recentemente, o ex-governador Garotinho esperneou até na maca que o conduzia de um xilindró a outro. Mas Lula não está só esperneando — o que, a esta altura, significa entrar com um recurso atrás do outro, pedir habeas corpus para evitar prisão, utilizar todos os meios legais a seu alcance. No Brasil, são inúmeros. Mas ele vai além. Está é, mais uma vez, tumultuando o ambiente, menosprezando a lei, afrontando a Justiça, ameaçando o caos para depois fingir que traz a ordem. Acenando com o medo para depois prometer paz e amor, sua velha tática, como observou há dias o colunista Elio Gaspari. Faz-se de vítima indefesa no exterior, diante de quem não acompanha o que realmente aconteceu. Internamente, encarna o espertinho: busca surfar na grande onda de águas turvas da situação esdrúxula que o Judiciário e a política brasileira vêm irresponsavelmente montando há tempos.

É só analisar. Se réu não pode ser eleito e empossado mas pode ser candidato… Se condenado em segunda instância ainda não puder ser presidiário mas puder ser candidato… Se condenado puder ser eleito mas não puder ser preso, pois então todos os processos ficam suspensos… A conclusão é que o poderoso que conseguir manobrar essa confusão pode ficar acima da lei, inalcançável por ela, até mesmo gozando da compreensão de membros das altas cortes “para não incendiar o país” (como um deles chegou a declarar, se é que o fez mesmo e não foi algum estagiário de má-fé que lhe atribuiu tais palavras).

Outro degrau para analisar: o da Lei da Ficha Limpa. Tenho por ela um carinho maternal. Fui uma entre as 1.600.000 pessoas que assinaram a petição para lhe dar vida. Para que existisse, o caminho foi longo. Seu relator na Câmara foi José Eduardo Cardozo, deputado petista que honrou seu mandato e depois foi ministro da Justiça. Sua aprovação nas duas casas do Congresso foi praticamente unânime. Entrou em vigor depois de sancionada pelo então presidente Lula quando ainda dava para o país acreditar nele — antes do resumo terrível feito pelo juiz em Porto Alegre na semana passada ao afirmar que “lamentavelmente Lula se corrompeu”. Agora querem dar um jeitinho para que a lei não se aplique a ele? Ou a outros no mesmo andar? A lei tem de ser igual para Lula e Temer, para Cunha e Renan, para Aécio e Cabral, para Maluf, Jucá e Geddel, e quem mais chegar. Que sejam todos investigados, processados se for o caso, e julgados, com direito a se defender. Que o foro privilegiado para os que ocupam cargos não sirva de salvo-conduto para o crime. E, para os que tiverem sentenças confirmadas em segunda instância por um órgão colegiado, que a Ficha Limpa seja cumprida, e esses condenados não possam se candidatar. Como determina a lei.

Toda essa conversa agora sobre possibilidade de acordos e conchavos entre políticos e juízes de modo a inventar manobras e recuos é inaceitável. Os tribunais precisam garantir justiça igual para todos. Não podem ajudar a blindar qualquer candidatura ilegal, afrontando a democracia e consolidando o escárnio de que nem todos sejam iguais perante a lei. A sociedade brasileira não aceita que o STF “se apequene” para se ajustar a casos específicos, como definiu a ministra Cármen Lúcia ou que jeitinhos venham encolher o nosso Judiciário, esgrimindo o garantismo como desculpa. Já chega termos sido apanhados de surpresa na decisão do Congresso sobre Dilma, quando Renan e Levandowski se uniram para tirar do bolso o insólito fatiamento que a deixa candidatar-se agora. Não é possível que ainda queiram nos enfiar goela abaixo mais uma chicana.

Nunca antes na história deste país alguém pretendeu invocar o direito de se asilar na Presidência para escapar do presídio. Se isso for adiante, é porque não sobra resquício de Justiça.

Ana Maria Machado

Um país assolado por duas febres

A febre amarela chegou como uma novidade temível, potencialmente devastadora. É coisa recente. Muito antes dela, uma outra, menos visível e sem impacto imediato, já se instalara confortavelmente, de norte a sul do País. Refiro-me ao ideologismo idiota que grassa em toda a área educacional. O vigor com que ele emergiu após a confirmação da condenação de Lula pelo TRF-4 é facilmente perceptível.

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O ponto de aglutinação da febre ideológica é o PT, que a irradia para o restante da sociedade, valendo-se principalmente da juventude universitária como veículo transmissor. Essa se entregou de corpo e alma à arenga de que “eleição sem Lula é fraude”, como se o Brasil fosse uma monarquia absoluta e Lula fosse dom Luiz Inácio I, o Inimputável.

Há quem acredite que essa antiga febre se agigantou graças a um esforço de inculcação deliberado e sistemático levado a cabo pelo PT. Partindo praticamente de zero, o PT teria operado esse famigerado milagre. Nisso eu discordo. O PT e os partidos de esquerda não teriam alcançado um “sucesso” tão estrondoso se não existissem certas condições favoráveis no meio estudantil ao qual se destina. Certa predisposição, digamos assim. E a que se deve tal predisposição?

Primeiro, à gratuidade do ensino para as camadas altas da sociedade. Permitam-me repetir pela enésima vez que, para as camadas de menor renda, eu apoio não só a gratuidade, mas crédito educativo a ser ressarcido anos depois e mesmo bolsas, sem necessidade de pagamento posterior por parte dos recipiendários. Mas gratuidade para as famílias ricas, cujos filhos estão sempre entre os mais ideológicos, é o fim da picada. De um pulinho anual à Europa essas famílias não abrem mão, mas pagar pela educação superior dos filhos, nem pensar. Deixo a dica: no texto intitulado Crítica ao Programa de Gotha, de 1875, uma violenta crítica ao programa do Partido Operário alemão, Marx refere-se textualmente à gratuidade existente em alguns dos estados americanos: “o fato de que em alguns Estados desse país os centros de ensino superior sejam ‘gratuitos’ significa tão somente, na realidade, que ali as classes altas pagam suas despesas de educação às custas do fundo de impostos gerais”. Bons tempos aqueles em que, pelo menos Marx, os ideólogos de esquerda liam.

Brasil Horror Show

Vendo o anúncio da série “Altered Carbon” tive uma estranha intuição sobre o que acontece no Brasil. A ideia central é o transplante de consciência de um corpo para outro. Creio que o filme deve levar a refletir também sobre o tema do momento: a inteligência artificial. Talvez tenhamos sofrido um transplante de consciência, só que foi uma operação que não deu certo. Alguns mecanismos deixaram de funcionar ou foram rejeitados pelo cérebro receptor.

Um exemplo: a decisão de Michel Temer de nomear Cristiane Brasil como ministra do Trabalho. Ela foi processada duas vezes na Justiça do Trabalho. Sua nomeação foi bloqueada. Temer insiste.

Com o caso prestes a ser julgado no Supremo, Cristiane Brasil aparece num barco dizendo barbaridades. O que mais repercutiu foi a forma de sua aparição, cercada de homens sem camisa, gritando “É isso aí, doutora”.

Mesmo se estivesse num convento cercada de piedosos frades, ela simplesmente mostrou que não conhece o tema para o qual foi designada: “Não sei quem passa na cabeça dessas pessoas que entraram na justiça contra mim.”

Ao dizer isso, revelou uma falha abissal na sua consciência política. Não ficou claro se ao pronunciar “quem” no lugar de “o que”, ela estava se referindo a uma possível entidade que baixa na cabeça das pessoas — um exu, uma pombajira — quando decidem reclamar seus direitos.

Temer diz que é uma escolha política. Entende por política apenas a relação com o Congresso. Falta nele a dimensão da sociedade. Acredita que basta frequentar programas populares de tevê. Falhas na operação de transplante.

A consciência de Itamar Franco, transplantada com êxito, não hesitaria diante do problema. Ele afastava ministros apenas por aceitarem hotel pago pela Odebrecht.

Foi tudo muito alterado no carbono político brasileiro. Os trabalhadores são insultados com uma escolha de uma ministra processada na Justiça do Trabalho, que nem sabe que santo baixa nas pessoas que reclamam direitos trabalhistas.

No passado, as entidades sindicais protestariam. Mas não se ouvem seus lamentos, nem nas ruas nem no Congresso. Algumas se concentram na defesa de seu líder condenado; outras estão envolvidas no toma-lá-dá-cá de Brasília.

A alteração transforma a cena política brasileira num show de horror. Uma ministra indicada dizendo aquilo e os homens sem camisa afirmando: todo mundo é processado na Justiça do Trabalho.

Quando digo show de horror não estou fazendo nenhuma alusão aos problemas que preocupam Temer. Ele confessou que sofria muito com a história de que estava ligado a práticas satânicas.

Tudo isso é uma bobagem. Assim como também acho injusto o apelido que ACM deu a Temer: mordomo de filme de terror.

Convivi com Temer alguns anos e o acho uma pessoa tranquila. Ele se parece com uma pessoa cordial. Não há nada de errado externamente. O problema foi esse possível transplante de consciência que não deu certo. Alguns reflexos desapareceram.

As evidências mostram como seu projeto de investir em Cristiane Brasil é um equívoco político. Mas em vez de dar graças a Deus porque juízes bloquearam a nomeação, decide lutar até o fim.

Vão morrer abraçados, Cristiane, Temer, os quatro homens sem camisa e até o ministro Carlos Marun, que, desde o tempo em que defendia Eduardo Cunha, não tem a tecla contato com a realidade social.

“Vocês queriam que ela estivesse de burka?”, perguntou Marun aos repórteres. Ninguém a quer usando burka ou biquíni. O que a consciência dos políticos precisa incorporar é simplesmente isto: é errado nomear não apenas acusados de corrupção mas também pessoas que ignorem o conteúdo de sua pasta.

Marun está para Temer como estava para Cunha: pronto para defender o chefe, não importa se as circunstâncias são constrangedoras.

Com a mesma expressão séria com que afirmava a inocência de Eduardo Cunha, agora se dedica não só a atacar procuradores mas a defender o direito de Temer de indicar seus ministros, sejam quem forem.

Neurônios se perderam na operação, sinapses tornaram-se impossíveis. Interessante é que chamam isso de política. Não percebem que para a própria sociedade, política é algo muito mais amplo e aberto.

O aliado maior de Temer, o PT, queria nos convencer que o objetivo último da vida é consumir eletrodomésticos e viajar de avião. Em nome dele, valia tudo. A parte da quadrilha que sobreviveu quer nos fazer crer que o objetivo central da vida é uma aposentadoria segura. Em nome dela, vale tudo.

O vírus chamado fins justificam os meios acabou se introduzindo na consciência com tanta força na cena política, e talvez seja ele que acionou a degradação do programa mental, tornando a política algo tão vulgar quanto uma pornochanchada.

Marilyn sempre Marilyn

Nas mãos do Supermo

Eles não disputam votos, não têm número de inscrição, muito menos retrato nas urnas. Com togas e linguajar nem sempre compreensível para a maioria dos mortais, os integrantes do STF serão protagonistas determinantes nas eleições deste ano. Vão definir não só o destino do ex-presidente Lula, condenado em segunda instância a mais de 12 anos de prisão, mas de outras dezenas de políticos que gozam de privilégio de foro, tema pronto para entrar na pauta da Corte.

A queda do foro não tem o condão de fazer com que os mais de 200 processos de políticos andem rapidamente nos seus estados de origem. Mas, ainda que não haja tempo para que as ações produzam efeitos condenatórios, elas cairiam como bombas nas bases dos acusados.

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No STF, a lista de julgamentos próximos inclui os processos do pré-candidato Jair Bolsonaro, por injúria e apologia ao crime, e o da senadora Gleisi Hoffmann, presidente nacional do PT, ao lado do marido Paulo Bernardo, ex-ministro de Lula e Dilma Rousseff.

Por se tratar de crime contra a honra, uma eventual condenação de Bolsonaro não o impede de disputar votos. Só impõe danos para além dos fiéis que o aplaudem. Sem papas na língua e fazendo disso o seu marketing, o parlamentar é réu por ter dito que a deputada Maria do Rosário (PT-RS) não merecia ser estuprada por ser muito feia.

Gleisi e Bernardo têm problemas de maior monta. Acusados de receber R$ 1 milhão de propina da Petrobras para a campanha de 2010, o casal pode amargar penas de ressarcimento de R$ 4 milhões, além da cassação do mandato da senadora e a consequente inelegibilidade. Depois de mais de três anos, a ação está em fase adiantada. Já passou pelo relator Edson Fachin e está, desde o último dia 2, nas mãos do revisor Celso de Mello.

Os frequentes recursos de Lula também prometem dar trabalho. Primeiro ao STJ, que já negou dois deles, depois ao TSE, que analisará o impedimento da candidatura pela Lei da Ficha Limpa, e, por fim, ao STF.

Desde o julgamento do Mensalão, o primeiro a despachar políticos para atrás das grades, o Brasil desenvolveu um gosto por promotores e juízes. Ainda que hoje só reste um mensalinho — todos os políticos presos à época estão soltos, só os operadores do esquema continuam na cadeia –, com as transmissões ao vivo e em cores das sessões, a Corte Superior, até então tímida, ganhou luzes e fama, produziu astros e heróis.

Como bem disse a presidente do STF, Cármen Lúcia, ao se referir à impossibilidade de se rever a autorização de prisão aos condenados em segunda instância em benefício de Lula, a Corte não pode se apequenar.

Nem se agigantar. Basta que ela cumpra, com celeridade, seu papel de fazer valer a Constituição. Do contrário, deixará o país inteiro sub judice.

Mary Zaidan

O jeitinho safado

Já em ano eleitoral com regras aprovadas pelo Congresso exclusivamente para facilitar a reeleição de quem tem cargo, entende-se que novidades e renovação o eleitor terá poucas.

Não poderia ser diferente, com a concessão de alguns bilhões de dinheiro público destinados para causa própria de quem aprovou a lei. Facilita-se, assim, a camuflagem do caixa 2 de antigos financiadores, que, tendo sido secados pela Lava Jato, pretendem, como nunca, manobrar debaixo do pano do fundo eleitoral.

Tudo se fez em Brasília, aberta e sorrateiramente, para inviabilizar as candidaturas avulsas, expressão mais democrática de um país realmente civilizado, e limitar a irrisórios dez salários o aporte do próprio candidato para sua campanha. Ficou proibido gastar por amor à pátria os recursos que o cidadão ganhou com seu trabalho honesto, taxado pela maior carga tributária das Américas. Não poderá enfrentar o mal que castiga a nação com meios iguais.


Os cuidados meticulosos para eliminar as possíveis brechas para renovação foram arrematados pelos senadores, aqueles que passam pela maior rejeição de todos os tempos. Determinaram a exclusão dos cidadãos que estavam dispostos a imolar, com gesto patriótico, recursos lícitos e honrados para tentar salvar o país. A reserva de mercado inclui canalhas e afasta voluntários. A Venezuela é o quadro desenhado pelo Congresso.

A formula de restrições é tão velha quanto Pedro I, que, apesar de ter trazido de Portugal uma imensa biblioteca para uso da família e de quem por ele fosse autorizado, proibiu a comercialização e a impressão de livros no Brasil. Tudo para ele se manter no trono e excluir qualquer outra possibilidade.

A teoria congressual é a de secar a vegetação viçosa para que os cactos imperem num ambiente eleitoral desertificado. Ao parlamentar em exercício, milhões; ao cidadão, R$ 9.690 de recursos próprios para disputar a mesma cadeira.

O atual Congresso, em sua estrepitosa maioria, comprova ser o mais atrasado do planeta. Razão da desgraça nacional. Preocupa-se em estrangular a democracia. E quando se represa a manifestação da sociedade mais exitosa, o conflito entre público e privado se agrava. Será o dinheiro público e o caixa 2 a fazer a festa.

Extirpou-se a concorrência, impondo-se um desequilíbrio acintoso e tirando-se a possibilidade da disputa em igualdade. Poucos poderão usar qualquer meio, e ao resto só fica a sola do sapato. As urnas estão assim programadas. Afastou-se um requisito imprescindível, ou clausula pétrea de democracia, a “par condicio” (quer dizer, o tratamento isonômico numa disputa), para se instalar a “impar condicio”, ou jeitinho safado. Se fosse para limitar o poder econômico de quem possui bens e decide imolar parte deles numa campanha, a melhor condição do sistema democrático seria rebaixar o teto de todos. Que se coloque R$ 9.690 para qualquer um que deseje concorrer ao pleito, poupando recursos públicos que faltam para os mais carentes.

Por qual fantástica e aloprada razão um cidadão que exerce cargo de deputado tem direito a R$ 3 milhões de verba para se reeleger e, na mesma lei, se limitam todos os demais ao ridículo valor de R$ 9.690? Verdade que poderiam receber de outros cidadãos essa mesma quantia, mas como, no exíguo período de 45 dias de campanha? Todos iguais: isso, sim, daria à democracia um tom diferente.

A fórmula escolhida pelo Congresso mais execrado de todos os tempos reafirma os motivos de sua estratosférica impopularidade. É bem possível que essa regra absurda venha a arrasar perante a opinião pública o pouco que sobra de credibilidade em Brasília.

Rasga-se o artigo 3º da Constituição, que estabelece como objetivo da República, entre outros, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, e o bem conhecido artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se (...) a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Caberia aos partidos, que são entes legitimados, impetrar uma Adin. Mas não surpreende: estão todos de acordo. E a gloriosa OAB ou a Procuradoria Geral? A democracia vive um triste apagão.

Auxílio-moradia virou puxadinho da imoralidade

Sergio Moro diz que as críticas às prisões da Lava Jato revelam a existência no Brasil de uma “sociedade de castas”, sem “igualdade republicana”. Tem razão. Dos 726 mil presos no Brasil, menos de 1% foi para a cadeia por corrupção. Mas a casta dos larápios de colarinho branco não é a única existente no país. Procuradores e juízes decidiram transformar uma agenda sindical num processo de autodesmoralização. Defendem o “direito” a um auxílio-moradia de R$ 4.377.

Alega-se que o privilégio está na lei. Meia verdade: a lei diz que, além dos vencimentos, “poderão” ser concedidas vantagens aos magistrados. Essa “possibilidade” virou direito adquirido graças a uma liminar do ministro Luiz Fux, do STF. Coisa de 2014. O julgamento do mérito está há três anos no armário onde são guardados os assuntos pendentes do Supremo.

O auxílio-moradia faz sentido quando o servidor é transferido para outra cidade. Vira ofensa ao erário quando o beneficiário tem casa na cidade onde trabalha. Marcelo Bretas e Sérgio Moro, juízes da Lava Jato, estão nessa situação. Têm belas residências no Rio e Curitiba. E acham normal embolsar o auxílio-moradia.

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O caso de Bretas é ainda mais constrangedor, pois sua mulher, Simone Bretas, juíza como ele, também recebe o auxílio-teto. Assim, o orçamento doméstico do casal Bretas recebe do contribuinte brasileiro um tônico mensal de R$ 8.755,46. Sergio Moro, outro pilar da Lava Jato, alegou que recebe o benefício “discutível” porque os magistrados estão sem reajuste salarial há três anos. Hummm…

Sete em cada dez juízes recebem vencimentos acima do teto constitucional de R$ 33,7 mil. Dispõem de estabilidade no emprego, aposentadoria integral, dos dois meses de férias e outros privilégios. Quem estiver insatisfeito sempre poderá pedir demissão. Confundir normalidade com privilégios é um velho hábito das castas dominantes. O auxílio-moradia tornou-se um puxadinho da imoralidade no contracheque de quem deveria dar o exemplo.

Paisagem brasileira

Cachoeira (Cândido Oliveira)

O pregador de verdades


Ontem o pregador de verdades dele 
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer.
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

Homem incomum

Em 10 de agosto de 2016, editorial deste jornal intitulado O que resta a Lula já denunciava a estratégia por ele adotada de transformar “a vitimização em sua principal – se não única – linha de defesa”. Anotava-se que o ex-presidente não se importava em achincalhar a imagem da Justiça brasileira no exterior, pois seu interesse estava em inventar argumentos que transformassem os agentes da lei, dedicados a investigá-lo, em algozes “a soldo das elites interessadas em alijá-lo da eleição presidencial de 2018”.

Essa desonesta e simplista explicação assomou a grau mais elevado diante da confirmação da condenação por unanimidade no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região. Na noite da decisão, na Praça da República, em São Paulo, Lula voltou com a cantilena ao dizer, com absoluta irresponsabilidade, ter havido um pacto entre o Poder Judiciário e a imprensa: “Resolveram que era hora de acabar com o PT e com a nossa governança no País. Eles já não admitiam mais a ascensão social das pessoas mais pobres desse país e dos trabalhadores”.

O PT, por sua vez, em nota acusa “o engajamento político-partidário de setores do sistema judicial, orquestrado pela Rede Globo, com o objetivo de tirar Lula do processo eleitoral”.

Nenhum texto alternativo automático disponível.

O confronto com o Judiciário, acusado de fazer parte de plano das elites para impedir a candidatura de Lula, permitiu que mal informado deputado do Bloco de Esquerda de Portugal, em artigo no jornal O Público, chegasse à desfaçatez de afirmar que o juiz Sergio Moro é “um homem do PSDB”.

A vitimização torna-se mais eficaz quando se cria um inimigo imaginário, que encarna o mal e persegue quem faz o bem apenas por maldade e egoísmo. Assim o PT e Lula decretaram o monopólio da sensibilidade moral de se preocupar e implementar soluções para a imensa desigualdade social existente no Brasil. Inventa-se um mal-estar da elite, incomodada com a melhoria de condições de vida da população pobre, como se a riqueza geral e o desenvolvimento de todos não fossem, até por motivos de lucro – se não por busca de justiça social – um objetivo da denominada “elite”.

Lula e seus acólitos relativizam a moralidade administrativa, transformando, sem nenhuma vergonha, fatos concretos de flagrante desonestidade em mera perseguição, adotando o ataque a monstros imaginários (complô do Judiciário, imprensa e elite incomodada) como expediente de defesa, na falta de argumentos jurídicos.

Mas se há um governante que se aliou às forças mais retrógradas deste país foi Lula. Tornou-se amigo dos donos e diretores das principais empreiteiras e uniu-se a políticos, homens da ditadura, representativos do que há de pior como atraso e amoralidade na nossa política: José Sarney e Paulo Maluf.

Ao Maluf foi beijar a mão em sua casa no Jardim América. De Sarney tornou-se grande amigo. Assim, em 2009, quando Sarney, presidente do Senado, era acusado de autorizar nomeações secretas, Lula disse o absurdo próprio de tratamento entre membros da elite: “Penso que ele tem história no Brasil, suficiente para que não seja tratado como uma pessoa comum. O MP deveria prestar a atenção na biografia do presidente Sarney. Sarney não roubou, não matou. Nem todo desvio administrativo é crime”.

Em 2010, ao ser perguntado, em visita ao Maranhão, se lá estava “para agradecer o apoio da oligarquia Sarney”, Lula, enraivecido, acusou o repórter de ser preconceituoso, aconselhando-o a se tratar: “Quem sabe fazer uma psicanálise para diminuir o preconceito”. Nessa entrevista, mostrou a pior mentalidade da elite atrasada ao arrematar: “Uma pessoa, na medida em que toma posse, ela passa a ser uma instituição e tem de ser respeitada”.

Na eleição de 2010, Lula apoiou Roseana Sarney como candidata ao governo do Maranhão. Agora Sarney afirma em nota: “Lula é um grande líder do Brasil. Sua condenação gera uma grande frustração a expressiva parcela do povo brasileiro. Seu amigo pessoal, sempre testemunhei sua preocupação com a coisa pública. Lamento a decisão”.

Lula considera-se alguém, tal como ajuíza Sarney, a não ser tratado como pessoa comum. Além da vitimização, apenas é possível explicar suas atitudes, após a decisão do TRF-4, como fruto de se achar também incomum, uma instituição da elite intocável pela lei; esta é para pessoas comuns. Tanto assim que bravateou, dizendo dispor-se a ficar com os três juízes um dia inteiro, televisionado ao vivo, para que lhe “mostrem qual o crime que o Lula cometeu”. Réu VIP, a merecer dos julgadores tratamento especial: passar um dia inteiro discutindo o processo com o condenado!

No dia seguinte, ungido candidato à Presidência, Lula pôs-se como juiz dos juízes, acima da lei, ao dizer não haver razão para respeitar a decisão que o condenou. As comparações com Tiradentes, Mandela e até Jesus Cristo ajudam a entender.

Quanto ao processo, Lula e seus sequazes repetem à exaustão não haver provas, acentuando o fato de não constar como dono do apartamento. Provas há, basta prestar atenção aos votos proferidos. O argumento de o imóvel não estar em seu nome é confessar o crime de lavagem de dinheiro, disfarçando a propriedade, cuja titularidade seria depois decidida, ocultando o bem recebido.

Inverte-se, com má-fé, o raciocínio: o Lula deixa de ser candidato porque foi condenado diante de fatos concretos de corrupção e lavagem de dinheiro, e não condenado para não ser candidato. Mas ser eleito presidente não deixa de ser um modo de tentar escapar dessa e de outras possíveis condenações.

Lula fala tanto de medidas em favor dos pobres, mas a herança deixada por Dilma e pelo PT foi uma imensa recessão, com PIB negativo na ordem de 3,7% e mais de 12 milhões de desempregados, além da inflação de dois dígitos. Nada foi pior para os pobres do que a errática política econômica e o populismo fiscal eleitoral do PT. Mas, isso Lula tenta esconder.

Miguel Reale Júnior

Verdade seja dita

De quando em quando, ultimamente com uma frequência supersônica e apavorante, surgem palavras ou expressões que são pisadas, repisadas, espremidas, torturadas sem dó. Se elas vêm de outra língua ganham mais status por aqui, uma roupagem “empoderada” para adentrar nossos salões até que outras a substituam. A da vez é “fake news”, nada mais nem diferente do que falar e usar “notícia falsa”. No fundo só ajuda o mais novo esporte nacional: brigar por ideologias, estas sim, falsas até o último fio de cabelo.

Mas o problema que enfrentamos de verdade são as notícias verdadeiras, que acabam escamoteadas em discussões estéreis, superficiais, insufladas por vários lados muitas vezes de forma tão irresponsável que admira não haver consequências legais e elas seguirem compartilhadas por milhares de parvos e autômatos seguidores.

Como se não se dessem conta de que vivemos no momento uma das mais graves crises institucionais e éticas que o Brasil já passou, com o rompimento dos liames entre todos os Poderes e de todos os poderes e instituições com o povo. Seus representantes máximos brigam entre si publicamente mais do que gato e rato. Declarações estapafúrdias se sucedem, e mesmo discursos cheios de razão e palavras bonitas visivelmente surgem como flechas com endereço certo, nem precisa ser muito atento para perceber isso. Já não há mais qualquer liturgia, tanto no cargo como entre todas as partes que deviam render algum respeito ou consideração.

Parece que está mesmo difícil se dar conta de que temporadas e situações como essa não costumam ter finais felizes, porque são roteiros voláteis. Os dias passam e apenas as indisposições recrudescem.


Não há graça nenhuma. Exceto, claro, num caso com uma pitada de humor surreal em nosso vatapá, o da deputada que ia virar ministra, Cristiane Brasil, que nos presenteou com aquele inacreditável vídeo feito al mare. Se todos nós não tivéssemos visto e revisto diríamos que aquilo ali só poderia ser notícia falsa, montagem, sacanagem de alguém. Ladeada por quatro marmanjos de óculos escuros e peitos desnudos cuidadosamente depilados, que até agora ninguém sabe exatamente quem são, a ministra-que-não-é desfila, ao se defender, um rosário tal de sandices que só pioraram ainda mais a situação. Nada me tira da cabeça que os quatro amigos homens que ela juntou eram apenas uma tentativa de demonstrar que não seria verdade o que à boca pequena e largos passos virtuais se fofoca por aí nesse preconceituoso país machista e sexista. Que ela teria mudado suas preferências sexuais.
Virou a loucura da loucura, onde ninguém mais vai ter paz num país onde um ministro do mais alto tribunal de Justiça, dentro de um avião, seja xingado de um tudo e achincalhado. E isso seja aplaudido nas redes sociais! Deselegância que vem vindo cada vez mais séria na polarização política que deverá se agravar ainda mais em ano eleitoral.

Ninguém precisa de notícias falsas em um tempo com tantas notícias bem reais. Seguindo nessa toada o que ficará inviável e incompatível será manter a sanidade e contas nas redes sociais, usar mecanismos como Whatsapp e outros.

Será inviável retomarmos algum caminho em paz.

Não só por causa de notícias falsas, que sempre existiram com seu nome em bom português, mas por causa das pessoas falsas ocultas atrás de teclados. E dos que andam apontando as câmeras de seus celulares não para denunciar os malfeitos, mas para executá-los. Fazem isso sem remorsos, com os celulares em pé, de lado, ou mesmo deitadinhos em seus berços esplêndidos como tanto insistem.

Verdade seja dita. Verdade sempre aparece. Pode ser passageira. Pode ser só meia.

E a verdade também pode ser só um jogo de espelhos para esconder o que tanto se mentiu.

Gente fora do mapa

.: If each thing has its corresponding god, why shoul...

Planalto, Congresso e Supremo se unem novamente para inviabilizar a Lava Jato

Não se pode desconhecer a existência dos fatos. Na polêmica que envolve a prisão de condenados após segunda instância, por exemplo, não há mais a menor dúvida de que é apenas uma questão de tempo. A verdade é que os três Poderes da República estão unidos e dispostos a mudar a jurisprudência do Supremo. Esta é uma das principais iniciativas da chamada Operação Abafa, destinada a inviabilizar a Lava Jato. Outras ações neste sentido são o projeto da Lei de Abuso de Autoridade, a descriminalização do caixa 2 e a anistia aos atos de corrupção, que é a medida extrema, denunciada pelo jurista Jorge Béja aqui na “Tribuna da Internet”, ao prever um golpe a ser intentado pelo Congresso após a eleição.

Quanto à revisão da jurisprudência sobre a prisão após segunda instância, o tema estava prestes a ser colocado em pauta no Supremo, mas a reação da opinião pública foi tamanha que a presidente do STF, Cármen Lúcia, teve de recuar.

Desde 16 de dezembro, com a conclusão do parecer do relator Marco Aurélio Mello, a questão da segunda instância ficou disponível para entrar em pauta no Supremo. A agenda dos julgamentos de fevereiro já estava pronta, mas nada impedia que a ação fosse programada para março.

Como se esperaca, no dia 24 de janeiro o ex-presidente Lula foi condenado em segunda instância. Cinco dias depois, O Globo deu como manchete uma reportagem de Carolina Brígido anunciando que, por coincidência ou não, o julgamento seria pautado por Cármen Lúcia.

A reação negativa foi avassaladora. A presidente do Supremo então desmentiu a reportagem, dizendo que não pensava em agendar a questão, mas no dia seguinte a repórter Carolina Brígido confirmou que “a ministra Cármen Lúcia cogitava, há uma semana, pautar para julgamento o processo”.

O resultado foi que a presidente do Supremo recolheu os flapes e passou a dar insistentes afirmações de que a questão não será agendada. Isso significa que o assunto ficará no freezer até setembro, quando Cármen Lúcia deixa o cargo e o Supremo passa a ser presidido por Dias Toffoli, exatamente o ministro que está propondo mudar a jurisprudência.

Parodiando Gabriel Garcia Marquez, trata-se da crônica de uma tragédia anunciada. Para atender aos interesses do grande amigo Lula da Silva e do resto da quadrilha suprapartidária, o ministro Dias Toffoli, aquele que não conseguiu ser juiz, vai disparar o primeiro tiro frontal na Lava Jato, com a cumplicidade do relator Marco Aurélio Mello e dos ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Alexandre de Moraes.

Depois, na sequência, os tiros de misericórdia serão disparados no Congresso por Rodrigo “Botafogo” Maia e por Eunício “Índio” Oliveira. É só uma questão de tempo.
Como era esperado, a Advocacia-Geral da União já se posicionou contra a prisão após segunda instância, por “flexibilizar” o princípio da presunção de inocência. A ministra Grace Mendonça defende que a prisão só deve acontecer após o trânsito em julgado e sustenta que a Constituição Federal não dá margem para outra interpretação.

De outro lado, a Procuradoria-Geral da República apoia a prisão após segunda instância e afirma que a tese da execução antecipada da pena foi definida em recurso com repercussão geral reconhecida, que deve ser seguida por todos os tribunais do país. Decisões monocráticas, portanto, não poderiam “desrespeitar” o precedente, como vem ocorrendo, diz a procuradora-geral Raquel Dodge.

Um PT agressivo e em guerra é o sonho dos extremistas de direita

Se há algo de que o Brasil não necessita para se renovar é um Partido dos Trabalhadores agressivo, com vocabulário de guerra, pedindo à sociedade desobediência civil e aos trabalhadores que incendeiem as ruas. Uma esquerda assim está mais para o sonho dos extremistas de direita, não de quem busca caminhos de diálogo. Essa esquerda beligerante é a encarnada hoje por duas figuras jovens: Gleisi Hoffmann, senadora e presidente do PT, e Lindbergh Farias, líder do partido no Senado. Uma esquerda que está encurralando as figuras e as ideias mais sensatas que haviam criado o PT democrático.

Sou dos colunistas que escreveram muitas vezes que o Partido dos Trabalhadores representou, em seus melhores momentos, um guia não só para o Brasil, mas para a esquerda da América Latina, como um incentivo contra as injustiças sociais em um continente vilipendiado pela pior das desigualdades entre ricos e pobres. Hoje, aquela esquerda se encontra, porém, desorientada, com Lula condenado por corrupção a 12 anos de prisão e, provavelmente, impossibilitado por lei de disputar as eleições. Mas não é nos momentos de maior crise interna de um partido político da envergadura do PT que seria necessário, em vez de atiçar o fogo do enfrentamento, buscar caminhos novos de superação da crise, com os nervos calmos e o cérebro lúcido?

Curiosamente, foi Lula quem confiou em outubro de 2014, em uma entrevista a este jornal, que tinha chegado a hora de “renovar o PT”. Lula demonstrou nostalgia pelos companheiros que “trabalhavam de graça, de manhã, de tarde e à noite para o partido”. E acrescentou: “O PT não nasceu para fazer como os outros”. E hoje, uma figura serena do PT, Fernando Haddad, ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo, voltou a pôr na mesa a necessidade de refundar o partido. Essa ideia de refundação já data dos tempos do escândalo do mensalão, quando, com a então cúpula do PT na prisão, Tarso Genro, uma das figuras históricas não comprometidas nem naquele caso nem na Lava Jato, tentou em vão colocá-la em marcha.

Não sei se neste momento, com Lula caído e os despojos de seus votos já disputados pelas outras forças políticas de esquerda e de direita, o PT de Gleisi e Lindbergh estaria disposto a uma refundação do partido. Com um PT que imagina que sem Lula nas urnas se produzirá na sociedade “uma convulsão incontrolável”, o que se está fazendo é entregar o país às forças mais reacionárias. Há responsabilidades históricas que acabam deixando uma conta pesada à sociedade, sobre a qual recai sempre o peso de seus erros. Diziam os sábios romanos: “corruptio optimi pessima”, ou seja, “nada pior que a corrupção dos melhores”. O que o Brasil precisa neste momento, como afirmou um editorial deste jornal, é que partidos e instituições “apresentem novos líderes que abram caminhos para uma etapa de regeneração democrática”.

É esse o caminho também para abrir novos horizontes de paz social. Violência verbal nas redes e na rua é o que sobra no Brasil. A força original do PT, que um dia cunhou o slogan de uma “nova esperança capaz de vencer o medo” e que hoje aparece em mãos de quem prefere os enfrentamentos ao diálogo, deveria ter a sabedoria de recuperar seu passado mais democrático. Ressuscitar fantasmas de divisões entre irmãos serve somente para que o Brasil que trabalha e sofre para sobreviver se transforme no bode expiatório dos políticos apocalípticos que pensam mais em sua sobrevivência do que na dor das pessoas. Se não acreditam, saiam às ruas, subam em um ônibus, escutem as pessoas na fila para pagar suas contas. Escutem-nas pesquisando em um supermercado para encontrar comida mais barata. Ouçam também seus silêncios. Esse é o Brasil real que parece interessar pouco até à esquerda do PT, enredada em seus discursos de guerra. É a grande massa de brasileiros desorientados à espera de que lhes ofereçam algo melhor, capaz de voltar a lhes dar esperança.

Os menos iguais

Dia desses li um interessante estudo produzido nos EUA, pela Universidade do Arizona. Decidiu-se buscar as variações históricas dos índices de desigualdade pelo planeta afora. Eis aí, sem sombra de dúvidas, uma questão fascinante: diante da evolução tecnológica da humanidade, como comportou-se, ao longo do tempo, a divisão da riqueza por ela produzida? Os pesquisadores decidiram aplicar aos valores encontrados o coeficiente conhecido como GINI, que varia de 0 (nenhuma desigualdade) a 1 (maior desigualdade possível).

Raymond Depardon - L'humanité et rien d'autre -13
Raymond Depardon 
Começou-se o levantamento pelas sociedades mais primitivas, nas quais os seres humanos sobreviviam da caça. Concluiu-se que, naqueles dias, o coeficiente GINI era de 0,17.

A humanidade, lentamente, desenvolveu-se. Alcançou a era da agricultura, com todas as suas respectivas técnicas - um avanço notável. Porém, igualmente avançou o coeficiente GINI, que evoluiu para 0,35.

Passou-se ao exuberante Império Romano, no qual a humanidade, de um lado, produziu obras maravilhosas, mas, paradoxalmente, viu aprofundar-se o fosso entre ricos e pobres - no apogeu de Roma, eis o coeficiente GINI pulando para 0,48.

Chegamos aos dias de hoje. Da eletrônica à medicina, da literatura à engenharia, a humanidade orgulha-se de seus feitos maravilhosos - esquecendo-se, no entanto, da vergonha embutida em um coeficiente GINI de 0,7 (índice encontrado na cidade de Londres, no Reino Unido).

Em que se traduz todo este "índice de desigualdade"? Vamos a um número de mais fácil assimilação: em 2017, apenas 1% dos seres humanos concentravam 50% da riqueza de todos os demais! Este dado choca ainda mais se nos recordarmos de que em 2008 possuíam "apenas" 42,5% - ou seja, o problema piora a passos largos.

Diante desta realidade, há os que sugerem maior tributação aos ricos ou medidas análogas. Modestamente, indicaria caminho outro: que todos tenham acesso aos meios de produção de riqueza. Que cada pessoa possa competir com justiça, liberta da ação do verdadeiro "governo paralelo" em que se transformaram as grandes corporações - cujo tamanho, poder e riqueza devem encontrar, e com urgência, um limite.

Até lá, fiquemos sob aquela realidade ironizada por Anatole France: "a lei, no seu majestoso igualitarismo, proíbe tanto os ricos quanto os pobres de dormir debaixo da ponte".

Pedro Valls Feu Rosa

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Old London | by Mike Hewson
Londres velha (Mike Hewsons)

Temer, Lula, Cristiane: Caráter, um mandamento em falta

Caráter é o quarto mandamento do Decálogo do Estadista, a tábua de leis de conduta dos políticos e homens públicos, no exercício do poder, de autoria de Ulysses Guimarães – artífice do MDB e símbolo do Parlamento e das históricas lutas pelas liberdades democráticas e o respeito à Constituição e à justiça do País. Não precisa torcer o nariz, nem fazer muxoxo. Sei que já escrevi sobre o tema neste espaço, mais de uma vez até.



Mas sou obrigado a voltar ao assunto, diante dos sinuosos e estranhos caminhos do ex-presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva e a cúpula atual do PT , depois da sentença em segunda instância do colegiado do TFR4, e o significado disso no ano eleitoral. Nem o recolhimento do passaporte de Lula, pela PF, no dia seguinte à sentença de Porto Alegre – mesma data do líder maior do PT ter o seu nome aclamado como postulante do partido à presidência da República na reunião da executiva nacional-, serviu de alerta . E essas atitudes deixaram no ar a sensação de “desafio” e “desacato”. E veio a reação, começando pela ministra presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, em duro discurso, na abertura dos trabalhos do Judi ciário. Os índices da pesquisa Datafolha, – que exibem Lula como preferido em todos os cenários e contra todos os demais postulantes de todos os partidos, – parecem ter açulado o ânimo dos petistas no arriscado desafio à justiça e aos seus ditames. Atitude que a presidente do Supremo deixou claro “não será tolerada”. Raquel Dodge (PGR) não foi menos incisiva.

Vale citar mais dois personagens da semana: um deles, o presidente Temer, que quanto mais fala,anda e esperneia, mais parece afundar no ambiente pantanoso que o cerca. Não descerei a detalhes aqui, Só recomendo a leitura da entrevista publicada na quarta-feira, na Folha. E que se ouça o áudio da conversa do presidente, na mesma data, com o âncora baiano Mário Kertész, (de grande audiência, local e nacional, quanto o assunto é política e poder) na sua Rádio Metrópole, de Salvador.Adianto, a quem não viu o programa, que no final, depois de repetir tudo que vem dizendo – sem fazer nenhuma autocrítica – desde o seu escandaloso diálogo com Joesley Batista (Friboi) , o comentário do mandatário quando confrontado com os índices da recusa ao seu governo e a ele próprio: “Apesar de tudo que eu fi z no meu governo, há muita gente que não vai com a minha cara, meu caro Mário”. Finalmente, o incrível vídeo-depoimento da deputada federal do PTB, Cristiane Brasil – escolhida ministra do Trabalho, postado nas redes sociais diretamente de um barco, durante farra de fim de semana no mar, com amigos descamisados , no sentido lato da expressão. Nada a acrescentar, basta ver e ouvir.

Está escrito no IV Mandamento do Decálogo de Ulysses: Caráter: “o estadista tem a posição de suas idéias, e não as idéias de sua posição . Não é um oportunista, que se serve da política em lugar de servi-la, o que só pensa nas eleições futuras e não no futuro do País. Político de caráter, é fiel – às idéias, não à carreira. Pode perder o poder, o governo, a liberdade, mas não renega as idéias, não perde a vergonha”. Isso é Caráter, mandamento que anda em faltana política e no governo do País.

Vitor Hugo Soares

Padrões de moradia no século XXI

O modelo contemporâneo de moradia é muito bem-definido para responder a referências sobre qualidade de vida, cidadania e modernidade, independentemente da classe social. Assim, predominam, mesmo nos bairros operários dos países desenvolvidos, os seguintes itens de infraestrutura urbana: salubridade e solidez do terreno, vias pavimentadas, iluminação pública, policiamento, áreas de lazer, arborização, endereçamento formal, telefonia, coleta de lixo, água canalizada e rede de esgoto. Esses serviços são prestados, direta ou indiretamente, pelo Estado, responsável pela integridade de todos os cidadãos e do patrimônio material, para assegurar uma nação livre, instruída e próspera.

A população contribui para o bem-estar porque garante seu próprio conforto e reconhece que a severa repressão aos transgressores será sempre em prol da comunidade. Sabe reivindicar também medidas administrativas para ter acesso fácil ao trabalho, ao colégio dos filhos, à mercearia, à padaria, à farmácia e aos serviços de emergência.

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Infelizmente, nada disso acontece no Brasil, porque a ocupação do espaço é destrambelhada, atendendo interesses escusos de proprietários de terrenos, ignorando os recursos naturais e optando por infraestrutura mais barata, portanto anacrônica e de má qualidade, como cabeamento aéreo de rede elétrica e telefonia, mesmo em áreas “nobres” das grandes cidades. Os programas de habitação popular são os mais ridículos, porque estão muito distantes dos locais de trabalho, o transporte público é um pesadelo, as edificações têm péssima qualidade, e faltam os equipamentos urbanos listados acima.

A mídia mostrou muitos problemas do Minha Casa, Minha Vida, em diferentes pontos do país, pois as construções estavam se desmanchando e o empreendimento foi insuficiente. Não há notícia de que favelas tenham sido extintas. Elas são denominadas agora de “aglomerados”, porque o alinhamento continua caótico, em terrenos inóspitos e moradias com diferentes tipos de material no lugar de paredes e teto. Algumas habitações receberam cozinha planejada, aparelhos eletrônicos e banheiros com porcelanato, mas o contraste com o asfalto mantém-se lamentável. Seria muito importante que uma pesquisa mostrasse o movimento migratório entre esses dois espaços: quantas famílias deixaram as favelas porque tiveram conquistas sociais, desde 2003, e quantas foram para lá, empurradas pelo desemprego e por dívidas impagáveis, diante da ilusão de que estavam aptas para o consumo de viagens de avião, carros em 60 parcelas e férias na praia?

Os brasileiros estão inseguros em qualquer lugar, mas o problema é maior para os deserdados da sorte tangidos para as favelas. Vivem sob o fogo cruzado de quadrilhas rivais, em habitações frágeis que podem ser varadas por projéteis de grosso calibre. Perdem também seus filhos para o aliciamento ao crime, por doenças próprias de ambientes miseráveis ou em desabamentos de casebres, mesmo quando não chove.