sexta-feira, 2 de maio de 2025

Pensamento do Dia

 


Memória

A memória é um espelho velho, com falhas no estanho e sombras paradas: há uma nuvem sobre a testa, um borrão no lugar da boca, o vazio onde os olhos deviam estar. Mudamos de posição, ladeamos a cabeça, procuramos, por meio de justaposições ou de lateralizações sucessivas dos pontos de vista, recompor uma imagem que nos seja possível reconhecer como ainda nossa, encadeável com esta que hoje temos, quase já de ontem. A memória é também uma estátua de argila. O vento passa e leva-lhe, pouco a pouco, partículas, grãos, cristais. A chuva amolece as feições, faz descair os membros, reduz o pescoço. Em cada minuto, o que era deixou de ser, e da estátua não restaria mais do que um vulto informe, uma pasta primária, se também em cada minuto não fôssemos restaurando, de memória, a memória. A estátua vai manter-se de pé, não é a mesma, mas não é outra, como o ser vivo é, em cada momento, outro e o mesmo. Por isso deveríamos perguntar-nos quem, de nós, ou em nós, tem memória, e que memória é ela. Mais ainda: pergunto-me que inquietante memória é a que às vezes me toma de ser eu a memória que tem hoje alguém que já fui, como se ao presente fosse finalmente possível ser memória de alguém que tivesse sido. (Excerto, com modificações, de um texto que publiquei algures, não sei quando. Ah, esta memória.)

José Saramago, "Cadernos de Lanzarote"

Educação e desenvolvimento

Domingo, 27 de abril de 2025, o jornal O Estado de S. Paulo ofereceu aos seus leitores uma matéria encabeçada por um título desafiador. “Aí vai: como ir além do ‘voo de galinha’? O que o Brasil precisa fazer para ter uma economia forte?”

O conhecido e reconhecido economista Eduardo Gianetti da Fonseca apresentou suas razões aos felizardos leitores do Estadão:

“As nações que conseguiram enriquecer foram aquelas que construíram economias mais produtivas. Elas concentram seus esforços na formação de capital humano, têm instituições sólidas, são integradas às cadeias globais e fazem uma alocação eficiente de recursos. São donas, portanto, de uma mão de obra qualificada e de um bom ambiente de negócios. Tudo isso resulta em uma população altamente educada, com acesso a empregos de qualidade e, consequentemente, mais rica”.

O editor do Le Monde ­Diplomatique, Ignacio Ramonet, criou a expressão “pensamento único” para designar o sistema de dogmas – econômicos, sociais e políticos – que atazana a paciência dos cidadãos e cidadãs, neste início de milênio. Entre as certezas graníticas e inabaláveis produzidas por esse movimento de uniformização das consciências, uma desperta grande entusiasmo e unanimidade: quanto mais treinada e educada a força de trabalho, melhor será o desempenho da economia, mais qualificados os empregos e mais justa a distribuição de renda.

A educação foi sempre uma cláusula pétrea do credo iluminista-republicano. Não há de existir cidadania sem educação universal e pública. Sem ela estariam seriamente arriscadas a liberdade e a igualdade. O ideal da educação para todos nasceu comprometido com o projeto de autonomia do indivíduo, do cidadão, enquanto titular de direitos e fonte do poder republicano. A versão bastarda surge das exigências impostas pela engrenagem econômica, administrativa e ideológica do capitalismo.

A modernidade avança de forma contraditória, impulsionada pela tensão permanente entre as forças e valores da concorrência capitalista e os anseios de autonomia do indivíduo integrado responsavelmente na sociedade. Esse conflito evolui entre a dimensão utilitarista da sociabilidade – forjada na indiferença do valor de troca e do dinheiro – e os projetos de progresso social que postulam a autonomia do indivíduo, ou seja, reivindicam o direito à singularidade e à diferença.

Nestes tempos em que são proclamadas verdades incontestáveis e andam escassas as alternativas, as funções engendradas pelos sistemas do dinheiro e do poder vêm usurpando, sem a menor cerimônia, as prerrogativas da cidadania. O leitor há de concordar: na avaliação dos bacanas, o gasto público em educação vale a pena, inicialmente, porque é fator de produtividade e de competitividade, além de supostamente oferecer igualdade de oportunidades aos que se apresentam ao julgamento sempre imparcial e impessoal dos mercados.

A experiência dos países asiáticos, Japão, Coreia e Taiwan, é frequentemente invocada pelos corifeus do pensamento único como a comprovação da importância da educação para o crescimento acelerado da produtividade da mão de obra, aquisição de vantagens comparativas dinâmicas e melhor distribuição de renda. Realçar o papel da educação e do treinamento, além de não encontrar oposição na chamada opinião pública, é uma forma de desqualificar as demais características do estilo de desenvolvimento desses países. A maioria delas – como o forte papel indutor do Estado, a estrutura e dinâmica das empresas, a natureza dos sistemas financeiros e a forma de integração à economia global – está banida dos manuais de redação dos conselheiros e divulgadores do pensamento único.

Vou despertar as inquietações que infestam minha formação sistêmico-estruturalista. Peço licença para recorrer às relações centrais que configuram a dinâmica da economia industrial-financeira capitalista.

A grande concentração de capital fixo e a dominância dos bancos na intermediação financeira ancoram a dinâmica de longo prazo do capitalismo no aumento da produtividade social do trabalho, o que, por sua vez, impulsiona a competição pela inovação tecnológica incorporada nas novas gerações de insumos e equipamentos.

No processo de autotransformação, a materialidade do capital fixo entrega sua alma à espiritualidade do trabalho intelectual. Peço, mais uma vez, permissão ao leitor para apresentar a argumentação de Karl Marx nos Grundrisse.

“Quando o capital fixo aparece como uma máquina no processo de produção, em oposição ao trabalho, quando o processo de trabalho em sua totalidade não está mais submetido à habilidade do trabalhador, mas à aplicação tecnológica da ciência, então a tendência do capital é dar à produção um caráter científico. … O desenvolvimento do capital fixo indica o grau em que o conhecimento social se tornou uma força direta de produção e em que medida, portanto, o processo da vida social foi colocado sob o controle do General Intellect e passou a ser transformado de acordo com ele.”

O General Intellect acelera a valorização do capital e a desvalorização do trabalho direto e se institui em uma forma de apropriação dos significados do conhecimento humano, em particular dos códigos da ciência. O capital toma para seus propósitos a educação, cujos métodos e objetivos são ajustados aos requerimentos dos mercados de trabalho cada vez mais exclusivos e “excludentes”.

É intenso o movimento de automação baseado na utilização de redes de “máquinas inteligentes”. Nanotecnologia, neurociência, biotecnologia, novas formas de energia e novos materiais formam o bloco de inovações com enorme potencial de revolucionar outra vez as bases técnicas do capitalismo. Todos os métodos que nascem dessa base técnica não podem senão confirmar sua razão interna: são métodos de produção destinados a aumentar a produtividade social do trabalho em escala crescente. Sua aplicação continua­da torna o trabalho imediato cada vez mais redundante. A autonomização da estrutura técnica significa que a aplicação da ciência se torna o critério dominante no desenvolvimento da produção.

Os avanços da Inteligência Artificial, da internet das coisas e da nanotecnologia agravaram as assimetrias entre países, classes sociais e empresas. Isso suscitou a intensificação da introdução dos métodos “industriais” na agricultura e nos serviços, promovendo o que convencionamos qualificar de hiperindustrialização.,

Resumos de notícias

Cada vez estamos a ser mais treinados para ler pouco... Numa rede social, quem se atreve a publicar um texto mais extenso (Frederico Lourenço fê-lo várias vezes no passado e tinha imensos leitores) vê-o reduzido a três meras linhas seguidas da expressão destacada «Ver mais», mas o facto de não vermos logo o texto completo leva a que muita gente nem sequer se dê ao trabalho de ver quanto lhe falta e se tem tempo para ler até ao fim; se as primeiras linhas não forem muito fortes, ficarão de facto por ler na maioria dos casos... Agora, que os jornais em papel, impressos na véspera da data de saída, se tornam facilmente obsoletos de manhã (até já houve um jornal que acreditou estar seguro das suas previsões e deu uma primeira página com dados errados numas eleições americanas...), muitos jornais mandam por e-mail um resumo das principais notícias todas as manhãs (o Expresso e o seu Expresso diário, por exemplo). Desta feita, foi o Diário de Notícias que resolveu criar a newsletter «Bom Dia», em que um experiente profissional nos faz a papa toda, resumindo com elegância o que há a saber de mais importante sobre a actualidade. Confesso que dá imenso jeito (sobretudo a caminho do Luxemburgo, onde ficarei até domingo), mas, depois desta síntese tão bem feitinha, alguém vai ler o resto do jornal? Duvido.

Maria do Rosário Pedreira

Trabalhar, sim, mas menos

Feliz dia internacional dos trabalhadores!

Caso não aguente mais uma cábula sobre o 1.º de maio e a maneira triunfal como se reduziram para oito as horas diárias de trabalho, pense nisto: foi há mais de 100 anos.

Foi há mais de 100 anos e continua a ser normalíssimo trabalhar oito horas por dia.

Ganha-se mais em pensar no 1.º de Maio como o dia em que os trabalhadores lutam para trabalhar menos do que no ano – ou, vá lá, a década – anterior.


Só ficaram pelas oito horas por dia porque até aí trabalhavam 10 e 12 horas.

Não é o número 8 que é mágico: é o ser menos do que 9, 10, 11, 12 e por aí afora.

Não é o número 8 que é a conquista: é o sinal que significa menos.

O progresso está na redução progressiva da carga horária. Daqui a 100 anos, se tudo correr bem, a semana laboral terá 15 horas, mas a luta será por uma semana de 12 horas.

Doze horas já é muito: o acordar, o viajar, o aturar, o aborrecer, o cansar, o ter de voltar. Todas estas coisas são fixas e não há maneira de as contornar. A conquista não é a semana de 40 horas.

A conquista é obrigar os patrões a pagar-nos o mesmo por menos horas de trabalho. Já que não nos aumentam os ordenados, ao menos que nos paguem mais por hora.

Não são as conquistas que satisfazem: são as recompensas da luta.

Os trabalhadores vão exigindo e os patrões vão cedendo: é este processo contínuo que deve ser celebrado.

A luta não pode parar, não pode congratular-se, não pode satisfazer-se. Pelo menos publicamente.

A reação ao “eles comem tudo” é “nós queremos mais”. Ou mais dinheiro ou mais tempo. E assim já não será tudo o que comem, mas um bocadinho menos.

Cuidado com os patrões que dão os parabéns aos trabalhadores pelas conquistas de maio.

Não seriam conquistas se os patrões cedessem logo de bom grado.

A inflação é um fato da vida. Mas a desinflação das horas de trabalho também deveria ser: se os preços estão mais caros, seria profundamente injusto se eu tivesse de trabalhar mais tempo para os pagar.

O bem que Donald Trump faz ao mundo

Injusta essa perseguição da mídia ao presidente americano. Seu jeitão de “sou assim mesmo” e suas declarações sinceras ajudam os Estados Unidos a se confrontar consigo mesmos e com sua História. Trump fez a ultradireita sair do armário e arreganhar os dentes, todos salivando contra o próximo. Especialmente se “o próximo” for imigrante, negro, trans, intelectual, liberal.

Essa abertura é quase igual à de uma coluna minha há seis anos: “O bem que Jair Bolsonaro nos faz”. Os protagonistas se parecem muito em sua loucura, narcisismo, arrogância, autoritarismo, sua total ausência de tato ou empatia.

Donald (como o Jair) obriga o isentão a se posicionar e sair do muro. Com seus arroubos e pitis, Donald estimula a imprensa a dar o maior duro, em tempo real, para esclarecer a população e desmascarar mentiras. Quem sabe, um dia, Donald personificará tanto ódio, preconceito e desumanidade que uma oposição inteligente surgirá nos EUA.

Antes da reeleição de Trump, cheguei a ouvir de amigos que ele era, sim, “o cara” para tornar a América grande de novo. Estável. Rica. E que só ele seria forte o suficiente para restaurar a paz no mundo.

Chegamos agora aos 100 dias mais surreais da história de um presidente americano. ‘The New York Times’ produziu volumoso retrospecto das ações caóticas de Trump. A palavra que resume é, segundo o jornal, vingança.

Vingança contra liberais, professores, juízes, gente pobre e estrangeira, contra qualquer um que se oponha a sua visão de potência imperialista com supremacia branca. Vingança contra quem quis sua prisão por coordenar a invasão ao Capitólio e tentar melar a eleição. Vingança contra quem desejou sua morte.

Duas imagens de Trump, na entrada do Salão Oval e no hall de entrada da Casa Branca, revelam a obsessão com si próprio.

Uma é a foto de sua ficha criminal, em 2023, numa prisão da Geórgia. Ele se entregou após ser acusado de associação criminosa e conspiração para mudar o resultado das eleições presidenciais. Foi solto após pagar fiança de R$ 1 milhão.

A outra imagem é uma pintura de Trump erguendo o punho direito com sangue respingado no rosto, “salvo por Deus para salvar a América”. Substituiu a foto de Obama.

Essas papagaiadas de Trump soam familiares? Os vídeos na UTI postados por Jair, como se fosse vítima crucificada do STF e da esquerda, são bizarros. Jair transformou sua internação num circo. Fez live, assediou moralmente uma oficial de Justiça. E expôs agora em vídeo a remoção da sonda nasogástrica. Nojento. E pensar que Jair sonha em repetir, aqui, a vingança de Trump.

O NYT listou os atos trumpistas. A demissão de promotores que o investigaram. O delírio de anexar a Groenlândia, o Canadá e o Canal do Panamá. A deportação arbitrária de imigrantes. A política externa de bullying. A gangorra econômica que pode causar recessão histórica.

A guerra das tarifas globais que semeou pânico entre investidores. A guerra comercial com a China, que ameaça até o Natal dos americanos – fábricas chinesas produzem quase 80% dos brinquedos nos EUA.

A guerra às universidades e à liberdade de expressão, com lista de termos proibidos. A guerra a organizações humanitárias. A guerra à diversidade, que seria sinônimo de incompetência.

É muita guerra para um emissário divino.

Mas Trump traz um benefício ao mundo: a desmoralização da ultradireita. O Canadá elegeu um liberal, antes azarão na disputa com um conservador. Quem sabe vem aí uma nova teoria dos dominós. Nem falo de direita. Mas de loucos. Há exatos 80 anos, 30 de abril de 1945, o corpo do ditador Mussolini foi jogado numa praça de Milão. O que aprendemos desde então?

Precisamos de exames psicotécnicos para acolher candidatos a presidente. Collor não teria passado. Nem Bolsonaro. Muito menos Trump.
Ruth de Aquino