domingo, 24 de junho de 2018
No país da Justiça pelo avesso
Não o fez, no entanto, movido pela improcedência do pedido, rejeitado há dois meses pelo próprio pleno do STF, na sequência de decisão similar do STJ – mas mesmo assim, reapresentado. A lei processual brasileira é uma das metáforas do Infinito.
O motivo foi a decisão do TRF-4 de negar admissão do recurso extraordinário ao STF, admitindo, contudo, que seja encaminhado ao STJ. Adiou apenas a manobra, redirecionando-a de tribunal.
Ganhou-se, portanto, tempo, não segurança jurídica. Ela, diante da conduta que vem tendo a Corte Suprema do país, continua a ser uma das carências básicas a sustentar o ambiente de crise.
E não é só lá que isso acontece. Eis que, dias antes, a Câmara dos Deputados chegou ao suprassumo da inversão de valores: por iniciativa do líder do PT, Paulo Pimenta, decidiu instalar uma CPI para investigar a Lava Jato. Nada menos.
A proposta, uma vez no papel, ultrapassou, em tempo recorde, o número mínimo de assinaturas (190). Não foi necessário mais que um dia. Quem disse que nada une a política brasileira?
Não há tema mais ecumênico e suprapartidário, neste momento, que o combate à Lava Jato. Une os três Poderes, associa adversários históricos: esquerda, direita, centro, sobreloja e subsolo.
A lei processual brasileira é uma das metáforas do InfinitoDiante da repercussão negativa – e o ano é eleitoral -, deu-se o previsível: vários signatários tentaram retirar seu apoio. Era tarde. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, informou que o Regimento Interno da Casa não autoriza. Apoiou, não há como desapoiar.
Ou seja, teremos CPI. Só que será um pouco diferente: nela, os infratores serão os juízes – e estes os réus. Instrumento para apurar irregularidades – crimes, transgressões -, estará agora nas mãos dos acusados. Nem Al Capone pensou em algo assim.
Quase simultaneamente, o STF (sempre ele) protagonizou outra cena de justiça pelo avesso, inocentando a presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann. Não que ela seja inocente – e é improvável que algum ministro creia nos argumentos que acabaram prevalecendo.
Faltou, porém, o recibo. O ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, confirmou que pagou a Gleisi e seu marido, o ex-ministro Paulo Bernardo, R$ 1 milhão dos cofres da Petrobras em propina, a pretexto de auxiliar na campanha eleitoral.
Os operadores da “doação” também confirmaram tudo. Mas, lapso dos lapsos, não há recibo. Que mancada!
Talvez a “insignificância” da quantia, num contexto em que já se ultrapassou o trilhão em desvios (se contabilizados os empréstimos-doações do BNDES aos países bolivarianos e a ditaduras africanas), não justifique maior rigor. Foi só um milhão…
A notícia positiva (será?) é que Antonio Palocci fechou acordo de delação premiada com a Polícia Federal. Pode ser um golpe mortal contra Lula, Dilma e o PT. Ou não.
Ruy Fabiano
5 razões pelas quais é tão difícil renovar a política brasileira
Na lista de pré-candidatos ao Palácio do Planalto, por exemplo, há pouca novidade: dois ex-presidentes da República, cinco ex-ministros, além de nomes que já estiveram no Congresso, foram governadores ou pelo menos se candidataram a algum cargo em eleições passadas.
No caso do Congresso, se seguir a tendência das eleições passadas, o índice de renovação também não tende a ser muito alto. Dos 513 deputados eleitos em 2014, 290 - mais de 54% - já faziam parte da legislatura anterior. Além disso, a grande maioria dos eleitos que não eram deputados federais no mandato anterior já tinha trabalhado com política ocupando cargos eletivos ou nomeados no Legislativo ou no Executivo, em alguma das três esferas.
Mas afinal, por que é tão difícil renovar a política no Brasil?
A forma como o sistema e as regras estão estruturados, dizem especialistas, tendem a beneficiar quem já faz política e dificultar a entrada dos novatos.
"As estruturas dos partidos são completamente engessadas, hierárquicas e prontas para eleger certas figuras e talvez para trazer um (único) novo nome", afirma a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, professora da Universidade Federal de Santa Maria, dizendo ser otimista em relação às novas gerações e formas distintas de candidaturas que estão aparecendo.
Já para o cientista político e professor do Insper Carlos Melo, "algum grau de renovação sempre tem".
"A questão é se vai ser significativa para renovar a cara do sistema", observa Melo, que não aposta numa mudança significativa de imediato, mas acredita que o país está vivendo um processo de transformação da política - os resultados, contudo, só poderão ser mensurados, segundo ele, talvez daqui a quatro ou oito anos.
A BBC News Brasil ouviu especialistas e jovens que dizem querer mudar a política para apontar as principais dificuldades de mudar a cara e as práticas do sistema político no país. Cinco foram as razões mais citadas para explicar por que isso é tão difícil:
Como candidaturas avulsas ou independentes não são permitidas no Brasil, para disputar uma eleição é obrigatório estar filiado a um partido político pelo menos seis meses antes do pleito.
Apesar de ser relativamente fácil se associar a um partido, as siglas tendem a dar mais oportunidades e a serem mais receptivas aos novatos que são potenciais puxadores de votos, como artistas ou atletas.
"É muito difícil você entrar num partido se não for para trabalhar dentro de uma lógica muito pré-determinada. Muitas vezes a lógica é perpetuar o partido e os mesmos poderes, as mesmas redes. Geralmente redes masculinas, com algumas exceções é claro, mas redes de homens brancos", afirma Pinheiro-Machado.
A professora diz que ainda é muito raro que partidos invistam em candidaturas femininas, em especial de mulheres negras.
Alguns partidos estão abrindo as portas para candidatos de movimentos políticos nascidos nos últimos anos, como Agora!, RenovaBR, Movimento Brasil Livre (MBL) e Livres. Mas isso não significa que os mais jovens vão ter voz e força nessas legendas.
Por isso, Pedro Duarte, vice-presidente da juventude do PSDB, defende que mais jovens se filiem a partidos tradicionais e que participem de forma mais ativa da vida partidária na tentativa de abrir espaço para caras novas em organizações onde a estrutura de poder está consolidada e há pouca alternância no comando.
Além de não terem as portas abertas, diz Carlos Melo, os partidos se transformaram em importantes financiadores de campanha e tendem a patrocinar quem já está no poder.
Desde 2014, quando o Supremo Tribunal Federal proibiu a doação de empresas para partidos e candidatos, o financiamento eleitoral ficou restrito às contribuições de pessoas físicas - que podem doar até 10% da renda declarada no ano anterior à eleição - e ao fundo partidário, que é de R$ 888,7 milhões neste ano.
No ano passado, deputados e senadores aprovaram o fundão eleitoral no valor de R$ 1,7 bilhão. Tanto os recursos do fundo partidário quanto os do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, nome oficial do fundão eleitoral, têm seu destino decidido pelos partidos.
"Esses recursos tendem a ser distribuídos pela cúpula dos partidos e a fortalecer quem já está no poder", afirma Melo, salientando que nem sempre os partidos são transparentes e democráticos.
Apesar de a minirreforma partidária aprovada no ano passado ter estabelecido um teto para os gastos de campanha, disputar uma eleição de forma competitiva ainda é considerado caro.
"Acho que os partidos são muito pouco dispostos a financiar novos candidatos", completa Rosana Pinheiro-Machado.
Tanto Pinheiro-Machado quanto Melo apontam que, na lógica de privilegiar quem já está no poder, o sistema político dá especial atenção aos donos de mandatos ou de cargos que conseguem usar a máquina pública.
"Imagina um jovem que vai disputar com alguém que já tem sede física, assessores e rede de relacionamento com prefeitos, vereadores", diz o professor, salientando a condição de desvantagem dos que não têm "um aparelho" funcionando a seu favor.
Melo afirma ainda que são poucos os partidos que têm líderes carismáticos como Lula ou "chefões" como Valdemar da Costa Neto (PR) e Roberto Jefferson (PTB), que conseguem se manter fortes em suas respectivas legendas mesmo sem mandato.
Ainda assim, Pinheiro-Machado diz que, apesar de ser difícil, é possível romper com esse sistema.
"Sou otimista em relação às novas gerações e às novas formas de candidaturas que estão começando a se colocar na jogada; de pessoas que vieram dos novíssimos movimentos até de candidaturas ativistas, e mesmo de grupos mais ao centro e à direita", diz.
"Há grupos que estão pensando também em amplas redes de renovação política e de formação de lideranças muito voltadas para questões técnicas."
A sacralidade (paga pelo contribuinte) do STF
Temos aí a síntese de temas examinados pela sociologia da forma estatal. Desde a modernidade notamos um esforço para pensar o desempenho dos que operam o Estado em cenas trágicas ou bufas. Um livro que no Brasil teve pouco sucesso de venda expõe a lógica de quem manipula instituições e representa papéis diante das massas boquiabertas. Refiro-me ao volume de Richard Sennet O Declínio do Homem Público. Hoje os indivíduos, grupos, corporações desejam manter uma existência “íntima” no mesmo átimo em que brilham diante dos olhos populares. Impossível manter a contradição durante longo tempo. Logo, são ordenadas medidas para salvar a própria intimidade segundo a força econômica, política, social de cada setor. Celebridades que só atingem fama graças aos admiradores, paradoxalmente, fogem dos paparazzi que lhes dão renomada.
Célebres, eles querem guardar a condição de indivíduos privados. O contato com o populacho, na saborosa frase do jornal, deve passar pelas “ondas esterilizadoras”. Para resolver a situação penosa (a dialética entre a pessoa e o papel na cena pública) eles apelam para um truque antigo em regimes nada democráticos como o nosso. A presidente do STF, ao tomar posse do cargo, ousou falar em “Sua Excelência, o povo”. Estaria certa caso no Brasil tivesse vigor a soberania popular. Mas o espaço íntimo que ela concedeu a si mesma e aos pares desmente sua arenga supostamente democrática. A sala VIP é paga pelo aludido soberano, para dele afastar os que deveriam servi-lo.
Boa parte dos nossos juízes pensa e opera como os estamentos “superiores” do absolutismo. Eles se imaginam sacerdotes de um saber do qual detêm a propriedade. E a tudo acodem e decidem de modo consequente. Certa feita o rei francês pediu aos Estados um aumento de impostos. O Terceiro – a burguesia– recusou votar o acréscimo antes de examinar os cofres reais. Voto do clero: “As finanças do reino são como o Santíssimo Sacramento. Só podem delas ter a vista quem foi ordenado divinamente”. Não por acaso os nossos julgadores, ao falar dos que pagam altíssimos impostos, articulam a voz com desprezo: “São críticas de leigos”. E acabou a conversa: apenas os ungidos podem ter acesso aos arcana imperii.
Outro resquício de poder sacrossanto: nossos magistrados o exibem no uso de privilégios. A sala VIP de Brasília é uma delas, o auxílio-moradia, outra assumida como direito. E abrem-se as portas para outras e outras. Veículos de luxo, motoristas, gasolina, impostos viários, tudo segue para a conta do “soberano” invocado pela presidente do STF. Sempre que examino o Antigo Regime, noto dois pontos na sua persistência brasileira. O primeiro diz respeito às roupas. Sob domínio real, nobres e clero tinham exclusividade de cores, tecidos e cortes. Quem observa os retratos dos burgueses, nota o preto e branco por eles ostentado. Não era o rigor moralista contra o luxo, mas proibição, porque as cores eram privilégios. No Rio de Janeiro o príncipe João (depois VI) ainda fala do poviléu como “gente ordinária de vestes”. Quando a toga desce sobre os ombros de nossos juízes, eles deixam de ser “gente ordinária de vestes”, entram para o panteão, longe dos meros leigos. Daí a sua busca de espaços sagrados, onde só eles podem pisar, como a sala do aeroporto brasiliense.
Mesmo com privilégios dados ao clero e aos nobres no Antigo Regime, nunca se ouviu dizer que o rei pagasse a carruagem do cardeal ou duque. Aqui, o “soberano” garante as viaturas de vereadores, nos municípios mais carentes de serviços públicos, a locomoção de prefeitos, deputados, senadores e... juízes. Uma conta conservadora eleva os gastos com tais regalias aos bilhões, que poderiam ser postos na educação, saúde, segurança.
Os ministros do STF a ele se referem em tom sempre elogioso, como se a infalibilidade garantisse o futuro e o presente, numa instituição cujo pretérito seria glorioso. A pesquisa histórica desmonta semelhante "wishful thinking". No momento em que a Corte permite a censura ao jornal O Estado de S. Paulo, no caso da Operação Boi Barrica, lemos com muito proveito o livro de Felipe Recondo Tanques e Togas, o STF e a Ditadura Militar (SP. Cia das Letras, 2018). Nele fica bem claro o epíteto do STF : “tribunal político”. Semelhante desolação só pode ser abolida se a escolha dos juízes for modificada, recrutando-se pessoas afeitas à democracia e aos julgamentos desde a primeira instância, avessas aos tratos de gabinetes e corredores do Executivo ou Legislativo. Ou quando as urnas escolherem juízes, com recall para eles e todos os que dirigem o Estado brasileiro.
O problema é nosso
A cidadania sofre e nem sabe direito por quê. Sabe apenas que está ruim e, se pudesse, se mandava daqui. No final das contas, Thomas Hobbes está certo. O homem é o lobo do homem e o que o homem quer é paz e sossego para obter e desfrutar os ornamentos da vida. No Brasil não há nem paz nem sossego. Salvo se você pagar taxas extras de segurança. Os riscos vão desde os riscos físicos até os jurídicos e burocráticos – o velho conhecido “risco Brasil”. O Brasil é um risco e a agenda política e midiática está toda errada, já que ela não trabalha a favor da cidadania visando a minimizar os riscos. Trabalha em favor de projetos de poder que misturam ideologia, corporativismo, fisiologia e clientelismo.
As eleições de 2018 não devem resolver tais problemas. Continuaremos a ter ilhas de excelência em meio a um mar de mediocridade. Elas hoje não estão nem na política nem na imprensa, setores críticos para que um país seja livre, forte e democrático. A política, como disse, está capturada por projetos de poder. A imprensa, em parte expressiva, padece de um esquerdismo infantilóide em sua memória residente que corre atrás de um sonho juvenil. Para se salvar do tsunami das redes sociais, tende a ficar mais sensacionalista e superficial e, lamentavelmente, menos relevante.
Por que, no final das contas, digo que nossos problemas são menores do que parecem? Em primeiro lugar, porque são nossos problemas não estão submetidos a condições externas. Em segundo lugar, porque existem ilhas de excelência no País que podem contaminar positivamente os demais setores. Em terceiro lugar, porque somos um povo resiliente e trabalhador. Por fim, porque Deus é brasileiro e nos colocou ao lado dos argentinos e venezuelanos. Imaginem se fôssemos vizinhos da China, da Rússia, da Síria ou da Coreia do Norte? Imaginem se fôssemos palco de lutas religiosas entre sunitas e xiitas? Ou se tivéssemos encravados em nós uma disputa milenar entre judeus e muçulmanos? Os problemas estão postos e são nossos. Apenas nossos. Já é bem mais do que a metade do caminho.
E candidato ao Oscar
O Brasil daria bom argumento cinematográfico para um filme de terror e também para uma comédia. Na verdade, uma chanchada. Há lances da política brasileira que dariam uma tragédia também. O Brasil daria um filme de terror, uma chanchada ou uma tragédiaLuiz Carlos Barreto, cineasta, 90 anos
Intervenção na segurança do Rio virou um fiasco
Em fevereiro, quando seu governo derretia, Michel Temer tirou da cartola a intervenção na segurança do Rio. Disse que derrotaria o crime organizado e as quadrilhas. Passados quatro meses, com o governo já em estado líquido, aquilo que Temer chamava de “jogada de mestre” revelou-se um tiro no pé. Comunidades pobres do Rio continuam sob fogo cruzado. Acaba de descer à cova o corpo do menino Marcos Vinícius, 14 anos, morto a caminho da escola, numa operação policial. E a morte da vereadora Marielle Franco completa cem dias como um símbolo da ineficiência do Estado diante do crime.
O mesmo Temer que falou grosso contra os bandidos do asfalto lidera o MDB, partido que mantém nos seus quadros a bandidagem que saqueou o Rio a partir dos gabinetes refrigerados. Gente como o ex-governador Sérgio Cabral, o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha e o mandachuva da Assembléia Legislativa fluminense Jorge Picciani. Essa quadrilha de estimação recebe de Temer a homenagem do silêncio.
Ninguém disse ainda com todas as letras, talvez por pena. Mas a intervenção federal no Rio já evoluiu da condição de hipocrisia eleitoreira para o estágio do fiasco. Os efeitos temporários do cinismo foram substituídos pelo império da lógica. Esgotada a fase do espalhafato, resta a evidência de que segurança pública não é boa matéria prima para passes de mágica. O único efeito prático da esperteza foi a transferência da batata quente da violência do Rio para o colo de Temer. É isso que acontece quando um presidente adota a marquetagem como método de governo.
O mesmo Temer que falou grosso contra os bandidos do asfalto lidera o MDB, partido que mantém nos seus quadros a bandidagem que saqueou o Rio a partir dos gabinetes refrigerados. Gente como o ex-governador Sérgio Cabral, o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha e o mandachuva da Assembléia Legislativa fluminense Jorge Picciani. Essa quadrilha de estimação recebe de Temer a homenagem do silêncio.
Ninguém disse ainda com todas as letras, talvez por pena. Mas a intervenção federal no Rio já evoluiu da condição de hipocrisia eleitoreira para o estágio do fiasco. Os efeitos temporários do cinismo foram substituídos pelo império da lógica. Esgotada a fase do espalhafato, resta a evidência de que segurança pública não é boa matéria prima para passes de mágica. O único efeito prático da esperteza foi a transferência da batata quente da violência do Rio para o colo de Temer. É isso que acontece quando um presidente adota a marquetagem como método de governo.
Futebol na cabeça
Não sei a resposta para esta transcendental pergunta, e só a estou formulando porque acabei de ler um livro que se propõe a respondê-la: What We Think About When We Think About Football - minha frase de abertura sem o ponto de interrogação. O título, decerto inspirado em Raymond Carver, ganhou um inevitável “soccer” na edição americana, da Penguin, lançada no mesmo dia que a inglesa, editada pela Prentice Books.
Seu autor é o filósofo britânico Simon Critchley, que se criou ouvindo a palavra “football”, mas nada tem contra sua denominação ianque (soccer: abreviatura de “association”) por considerá-la ainda mais próxima da essência do futebol, esporte coletivo, associativo, por excelência. E que não é jogado apenas com os pés, mas com o corpo inteiro.
Critchley, que vive há tempos em Nova York e dá aulas na New School for Social Research, já escreveu sobre Heidegger, Desconstrucionismo, Emmanuel Levinas, Hamlet, suicídio e David Bowie, de quem é fã ardoroso, finalmente chegou ao futebol, sua maior paixão, “a que mais fundo e extensamente” mexe com ele. Torcedor do Liverpool, não pretendeu filosofar sobre ela. Nem de brincadeira, como fizeram o grupo humorístico inglês Monty Python e o jornalista patrício Mark Perryman.
Há 46 anos, o Monty Python promoveu um match inesquecível entre as seleções de filósofos gregos e alemães, com Platão, Aristóteles, Epicuro e Sócrates enfrentando Kant, Hegel, Nietzsche (e o reforço de Franz Beckenbauer no meio de campo), que era de rolar de rir; confiram no YouTube. Já Perryman imaginou um dream team filosófico, com Camus (no gol, claro), Simone de Beauvoir na lateral direita, Jean Baudrillard e William Shakespeare de zagueiros, Nietzsche de volante e Wittgenstein na lateral esquerda; no ataque, Oscar Wilde (ponta-direita), Sun Tzu, Umberto Eco, Gramsci e, na extrema esquerda, o craque do reggae Bob Marley. Os critérios dessa escalação estão detalhados em Filósofos Futebol Clube, traduzido em 2004 pela Disal Editora.
Critchley nem sequer en passant os menciona em seu livro. Quando vê futebol, ele pensa em outras coisas; mais sérias, porém sempre abordadas com graça e leveza coloquial, pois seu público-alvo não pertence ao mundo acadêmico. Ao assistir à eliminação da seleção inglesa da Eurocopa 2016 pela Islândia, pensou na vitória do Brexit, a autoexclusão do Reino Unidos da União Europeia, ocorrida quatro dias antes, e traçou os paralelos que lhe pareceram procedentes entre as duas debacle num artigo publicado no site da New York Review of Books.
Seu livro é uma ode ao esporte mais - todos os adjetivos são dele - popular, proletário (“é o balé da classe trabalhadora”), fluido, dinâmico, apaixonante, poderoso, hipnótico e globalizado que existe. Um esporte metódico, raramente tedioso, cheio de clímaxes e suspense; de certo modo, o que as discussões filosóficas deveriam ser, ainda segundo Critchley: “Um diálogo bem fundamentado, com base em fortes e genuínas emoções”.
Mas o futebol é também um esporte intrinsecamente sujo - além de corrompido, como o mundo em que vivemos - pois useiro e vezeiro em quebrar regras e estimular a malandragem. Na opinião do professor, o uruguaio Luís Suarez, “possuído por uma determinação absoluta”, sintetiza como nenhum outro jogador em atividade o binômio “sedução” e “repulsa”, desperta tanta admiração e tanta antipatia. Suarez foi, a seu ver, o melhor jogador do Liverpool dos últimos 15 anos. Também são estrangeiros os dois melhores de seu time, no momento: o brasileiro Firmino e o egípcio Salah. Nesta ordem.
Critchley abre suas divagações filosóficas num bar em Moscou, de onde acompanhou a final da Champions League de 2017, Real Madrid 4x1 Juventus. Enquanto a bola rolava no galês Millenium Stadium, ele, cercado de uma algazarra juvenil embalada por The Cure e Queen, antevia a Copa na Rússia, no verão seguinte, como a mais exemplar de todas, na medida em que nela se juntariam dois campeões mundiais da corrupção, a Fifa e o governo Putin.
O filósofo considera o futebol o espelho mais fiel dos “horrores do capitalismo financeiro, do autoritarismo, das ditaduras”, e, paradoxalmente, um oásis, o exemplo único de um espírito comunitário e igualitário invisível em outras atividades humanas.
Entusiasmado por essa visão, por um lado pessimista, por outro idealista, ele chegou a defender a tese de que o futebol talvez fosse o último vestígio do ideal socialista no Reino Unido. Depois, numa entrevista, admitiu ter exagerado um pouco, em parte induzido pela histórica ligação do futebol com sindicatos, associações de operários e a galera dos pubs, em parte por um wishful thinking que, pelo visto, nem a guinada conservadora de Margaret Thatcher conseguiu esmorecer de todo.
Critchley analisa muitos dos problemas (violência, racismo, sexismo) enfrentados pelos torcedores, dentro e fora dos estádios, critica o volume insano de dinheiro que corre nas federações e nos clubes, mas, aqui e ali, abre espaço para interlúdios algo líricos sobre a bola e sobre Zidane.
Ao lançar o livro, meses atrás, ele arriscou vaticinar que, malgrado o conluio Fifa-Putin, “algo maravilhoso e inesperado” aconteceria na Copa na Rússia. A Islândia conquistando o caneco? Isso não, outra coisa. Afinal ele tem sérias desconfianças de que a Alemanha sairá vencedora mais uma vez.
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