quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Investigação contra Pazuello amarra Bolsonaro e militares até o fim

Em momentos críticos, Jair Bolsonaro tenta se agarrar aos militares para sobreviver. Quando o Supremo estava em seu encalço, em abril do ano passado, o presidente protagonizou uma manifestação golpista na porta do quartel-general do Exército. Agora, acuado pela crise do coronavírus, ele busca refúgio mais uma vez nas Forças Armadas.

Na segunda (18), Bolsonaro quis desviar o foco de seus fracassos na pandemia com a conhecida pregação de que homens de farda decidem se um povo viverá numa ditadura. "Nós, militares, somos o último obstáculo para o socialismo", disse. Dias depois, ele apresentou a Aeronáutica como parceira no fornecimento de oxigênio para uma Manaus asfixiada pela negligência oficial.

Em busca de proteção, Bolsonaro transformou os militares em sócios paritários do desastre nacional ao mandar Eduardo Pazuello para a cadeira de ministro da Saúde. A abertura de uma investigação no STF sobre a omissão do general na pandemia torna esse vínculo irreversível.



Pazuello seguiu as ordens mais delinquentes do presidente da República —da recomendação do uso de remédios ineficazes até a sabotagem à vacinação. O general se recusou a migrar para a reserva, seguiu a doutrina militar e respeitou a hierarquia ao cumprir as determinações do chefe. Os delitos da dupla, portanto, são coincidentes.

A configuração pode até atormentar integrantes graduados das Forças Armadas, mas favorece Bolsonaro. Se forem levados para o banco dos réus, os militares passarão a trabalhar numa defesa conjunta com o presidente. Na prática, eles ainda recebem um estímulo extra para garantir que o governo fique de pé.

Esse elemento entraria na conta das pressões pelo impeachment de Bolsonaro por sua conduta na pandemia. Dado que o beneficiário imediato da queda do presidente é um general da reserva, o espírito de corpo tende a desestimular movimentos do vice para assumir o posto. Se esse cálculo prevalecer, os sócios devem permanecer juntos até o fim.​

Parem de receitar a cloroquina Bolsonaro ao Brasil

Repita-se e repita-se: Bolsonaro é o maior culpado pela tragédia sanitária no Brasil. Se sem ele já seria difícil combater a pandemia, com ele a tarefa se torna impossível. Bolsonaro é uma cloroquina.



Essa cloroquina continua a ser distribuída irresponsavelmente pelos integrantes do Congresso Nacional que nada fazem para apear o presidente o mais rápido possível. Com Bolsonaro, um plano nacional para evitar a morte de um número maior de cidadãos acometidos pela Covid-19 é fantasia. Ele e seus filhos continuam a desdenhar da doença que já matou quase 220 mil brasileiros em menos de um ano e sabotar com pilhérias as medidas preconizadas por epidemiologistas e infectologistas. Com esse tipo de escumalha, não há o que fazer, a não ser usar os instrumentos da democracia para tirá-los de onde estão e, em seguida, processá-los criminalmente.

Neste momento grave, ao invés de preocupar-se com o que deve ser feito urgentemente, deputados e senadores ocupam-se, com as exceções de praxe, em obter o máximo de benefícios de toda ordem no escambo com o Palácio do Planalto, enquanto o Brasil arde de Covid-19. Os que se dizem de oposição querem manter Bolsonaro na presidência da República em nome da “estabilidade institucional neste momento de crise sanitária”. Lorota criminosa. Trata-se apenas de fazer “sangrá-lo” até as eleições de 2022. Já vimos esse filme em outras ocasiões. Bolsonaro é o maior responsável pelo alastramento da doença no país e pela falta de qualquer planejamento nas medidas de isolamento social e de vacinação da população. O Brasil assiste, paralisado, à mais completa improvisação na compra de vacinas, insumos e imunização em massa. Enquanto outras nações fizeram encomendas gigantescas de várias vacinas ainda em desenvolvimento, em meados do ano passado, o governo federal contentou-se, de má vontade, em comprar a da AstraZeneca/Oxford e participar de um consórcio de países organizado pela OMS. A muito custo político, concordou em adquirir a Coronavac a ser fabricada pelo Instituto Butantan, sob os auspícios do inimigo João Doria, mas sempre desprezando o que os bolsonaristas chamavam de “vachina”.

Bolsonaro agora tenta bancar o governante responsável, mas o figurino lhe é apertado demais. Para manter-se no poder, ele vai se garantindo com a compra descarada de deputados e senadores sequiosos por cargos na administração federal. Também pretende se refestelar no assistencialismo, sempre com o dinheiro do pagador de impostos — no caso, todo mundo, inclusive os mais pobres. A manutenção da reserva estratégica da fome de milhões de cidadãos que se contentam com esmolas é o único plano consistente de governo no Brasil, não importa a ideologia dos inquilinos do Planalto ou das composições do Congresso.

Mesmo os sistemas mais degenerados, contudo, têm limite. No caso de Bolsonaro, é vida ou morte. Nunca foi assim. Ele vem cortando literalmente o oxigênio de milhares de brasileiros. Média móvel de mil mortos por dia, senhores! Não é possível que falte esse nível de consciência — e de honra — a deputados e senadores empenhados no fisiologismo ou simples cálculos eleitorais.

Eduardo Pazuello é um bode expiatório para enganar o distinto público. Se nada for feito em relação ao presidente da República, o Congresso Nacional será cúmplice da barbárie que se desenrola diante dos nossos olhos, sem horizonte provável para terminar. Parem de receitar a cloroquina Bolsonaro ao Brasil. Independência ou morte.

Furando as bichas e outros bichos...

Tendo sido caluniado como homofóbico por um ator, devo explicar o meu título.

No livro Fila e Democracia (Rocco, publicado em 2017), escrito com Alberto Junqueira, explicamos que “bicha” é um sinônimo para um aglomerado em fileira, tal como revela a morfologia das cobras e dos vermes. Nas democracias, é normal enfileirar-se; no Brasil, porém, a “bicha” é sinal de inferioridade. “Tenho que entrar numa fila!”, reclamamos reveladoramente.

Os “grandes” jamais entram em fila porque todos conhecem seus privilégios. Eles sempre são os primeiros a ter o privilégio de furar todas as bichas (filas). Aristocratas não esperam. A reunião só começa quando eles chegam. Eles são a cereja do evento social.

Sem tempo a perder com inferiores (tal como aconteceu comigo numa reitoria, conforme relato no meu recém-publicado Você Sabe Com Quem Está Falando?: Estudos Sobre o Autoritarismo Brasileiro), esses velhacos têm todo o tempo para a nobre arte de coçar o saco ou de “ficar sem fazer nada”...

Do alto dos seus cargos, eles só olham para nós, os comuns (sujeitos da “gripezinha”), quando precisam. Afora isso, sabemos que esperar, obedecer e servir definem subordinação. Os criados correm; aos superiores cabe o privilégio de serem lentamente servidos. Se furamos todas as filas, pois furar e desobedecer são sinais de superioridade, como esperar por uma vacina que confirma o horror: o fato de que, quando chega a nossa vez, o que queremos acabou?

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Como filho mais velho, fui sempre o primeiro, mas tive o privilégio compensado sendo obrigado “a dar o exemplo”. Justo o que falta no Brasil que, somente agora, começa a exigir que prioridades e privilégios tenham como contrapartida o exemplo, a honestidade, o equilíbrio, a sinceridade e a competência.

No mundo público nacional, o que vemos é um acúmulo de privilégios proporcional à ausência das obrigações morais que os justificam e legitimam.

Entre nós, os privilegiados nada dão de volta ao sistema e por isso concretizam um modelo antigo, atrasado e imoral de serem privilegiados. A hierarquia só tem razão quando os de cima são servidos (é claro!), mas também servem os de baixo.

Os andares existem, mas as pessoas que os ocupam estão em pleno movimento. Não se pode ser rei sem ter noção de que tal cargo é uma incumbência - uma delegação, uma missão e uma obrigação.

Não cabe mais guardar lugar numa fila ou no cinema. Do mesmo modo que não cabe saber se você é advogado ou médico numa fila de banco ou diante de um sinal de trânsito. Quanto mais democracia, mais absurdo fica o “você sabe com quem está falando?”.

Esse ritual de hierarquia eu só fui estranhar quando conheci a América que, conforme temos testemunhado, é muito mais democrática do que os Estados Unidos.

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Eis um episódio típico da América.

Num aeroporto, um homem vermelho de indignação ao ser informado do cancelamento do seu voo grita agressivo para a jovem funcionária uniformizada do outro lado do balcão: “Do you know who you’re talking to?!!!” (Você sabe com quem está falando?). Calmamente a moça pegou o microfone e anunciou: “Tem um sujeito aqui que não sabe quem ele é! Alguém pode me ajudar a descobrir quem é esse ‘son of a bitch’ (fdp)?”.

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Nos sistemas fundados na extrema desigualdade - pense no Brasil escravocrata -, a superioridade estava no corpo: na cor, no gênero, na idade... Estava em tudo.

Quando vivi com os índios apinajés, eu andava de bermuda, chinelo de dedo e raramente vestia uma camisa. No entanto, todos me chamavam de “patrão”. Um dia, perguntei de onde vinha esse senhorio. A resposta foi curta e clara: “Pelo seu jeito”!

Neste caso, o velho adágio - “as aparências enganam” - foi desmentido. As aparências não enganavam! E quem não entende tais sutilezas recebe a reprimenda do “você sabe com quem está falando?”, que leva a repensar a aparente igualdade do mundo. Furar a fila (ou a bicha) faz parte do mesmo conjunto de rituais de subordinação, os quais ensinam quem são realmente as pessoas com as quais convivemos.

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Nos sistemas relacionais, a qualificação precede a apresentação e a etiqueta requer um intermediário. A autoapresentação é inibida no Brasil, sobretudo quando as distâncias sociais são grandes. O estilo americano do “Como vai, eu sou o Zé da Silva - é muito bom conhecê-lo!” sugere uma igualdade que o nosso viés hierarquizado traduz como confiança: uma liberdade atrevida - uma abusada ousadia.

Se a posição social “está na cara”, como não reconhecer imediatamente um superior? E, ao inverso, como não reagir negativamente a qualquer situação regulada por igualdade, como é o caso da bicha ou da fila?

No Brasil, diz meu amigo Richard Moneygrand, se você quiser causar problema, iguale....

Pensamento do Dia

 


As Forças Armadas do caos

Uma das maiores ilusões a respeito do Governo Bolsonaro é que ele seria composto por dois eixos em estado contínuo de antagonismo. De um lado, haveria o núcleo ideológico, com suas pautas de regressão social e isolamento internacional, enquanto no outro lado encontraríamos o núcleo militar. Se o primeiro seria impulsionado pela crença em ser o protagonista maior de uma revolução conservadora no Brasil, o segundo seria ainda pautado por certa perspectiva “moderada” e “racional”.

Na verdade, essa foi a melhor narrativa que as Forças Armadas poderiam encontrar para si mesmas. Isso lhes permitiu tomar de assalto o poder executivo, colocando milhares de seus membros da ativa e da reserva dentro da estrutura do poder, sem ter que assumir o ônus de agente fundamental do caos. Jogando a carta do corpo técnico que assume o Estado corrompido, procurando defende-lo de ideólogos que viriam de todos os lados, as Forças Armadas tentaram vender ao país a imagem de serem uma espécie de força de contenção indispensável e inevitável. Bastouuma pandemia com seus desafios reaispara que toda essa história ruísse

Na verdade, o país viu, agora em escala catastrófica, a repetição do que sempre ocorre quando as Forças Armadas tomam a frente. O que está a ocorrer no Brasil atualmente é sim a implementação consequente do ideário que anima suas Forças Armadas. Pois longe de serem uma parte da solução, elas são historicamente o eixo fundamental do problema.

Faz parte das tomadas de poder das Forças Armadas criar essa imagem de serem animadas por um conflito interno, como se estivéssemos a todo momento a lidar com uma instituição dividida entre o bom policial e o mau policial. Já na ditadura militar havia a pantomima do conflito entre o núcleo duro e os moderados. Foi isso que permitiu aos militares fazer um duplo papel, entre o Governo e a oposição ao Governo delas próprias. Se a ditadura brasileira conseguiu durar inacreditáveis 20 anos é porque tal pantomima fazia parte do modo normal de governo. Para fazer o Governo funcionar, era fundamental que os opositores encontrassem, nas próprias Forças Armadas, a esperança de uma contenção das Forças Armadas. Da mesma forma, agora estamos a ver o pretenso conflito entre o grupo ligado a Bolsonaro e os generais mais sensatos. Sensatez essa que não foi capaz de influenciar em uma ação sequer que pudesse tirar o país do caminho em direção às mais de 200.000 mortes, isso a despeito de todo o esforço estatal de desaparecimento de corpos.

Quem fizer uma pesquisa a respeito das propagandas louvando o “ideal de desenvolvimento” do regime militar encontrará essas campanhas narrando a vitória do homem (sim, eram sempre homens) sobre o “inferno verde” representado pela Amazônia. Vitória essa que se daria através da abertura de estradas como a Transamazônica ou de projeto absurdos e corruptos como o Projeto Jari. Fotos de grande troncos de árvores centenárias cortadas e empilhadas em caminhões ilustravam o canto do país que vencia suas “fronteiras internas” à base do fogo, do roubo, da posse e do desaparecimento dos corpos de ameríndios mortos. O que Bolsonaro fez foi simplesmente levar às últimas consequências o ideário que sempre moveu as Forças Armadas como ponta de lança da guerra do Brasil contra si mesmo. As chamas cuja fumaça chega agora até nossas grandes cidades não é fruto de um Nero tropical, mas a consequência lógica do espírito que suas Forças Armadas sempre representaram.

No entanto, essa guerra do Brasil contra si mesmo foi não apenas contra a natureza. Ela foi uma guerra contra sua própria população. A história das Forças Armadas brasileiras é a história de uma guerra interna, de uma guerra civil não declarada que vai de Canudos e Contestado até o uso do Exército como “força de pacificação” nas comunidades do Rio de Janeiro. Ela foi a história do uso da força e do extermínio contra movimentos populares de toda ordem desde o Império. Ela foi ainda a história perpetua da “caça ao comunismo” desde o aparecimento do primeiro líder popular da república brasileira, Luís Carlos Prestes: um militar que escolheu o lado das lutas populares e que antecipou as táticas que seriam usadas, de maneira vitoriosa, na grande marcha chinesa. Esse fantasma da “caça ao comunismo” é a razão de existência das Forças Armadas brasileiras, e Bolsonaro sabe muito bem disso. É ele que lhe levou a dizer: “Quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas”. “Comunismo” é o nome que as Forças Armadas brasileiras usam para se referir à figura de um povo insurreto.

Mas, principalmente, militares brasileiros estão associados ao uso da força para o silenciamento das consequências da miséria e do descaso. Faz-se necessário lembrar disso mais uma vez pois o que estamos a ver nessa pandemia, a catástrofe humanitária que a gestão das Forças Armadas produziu, não é um acaso. É a consequência necessária da maneira com que os militares sempre lidaram com a morte da sua própria população. Longe de procurar “proteger” as populações, suas ações sempre se deram no sentido de lembrar aos setores vulneráveis da população brasileira de que eles são matáveis sem dolo e sem imagem. É isso que as Forças Armadas estão a fazer mais uma vez com sua gestão criminosa e omissa em relação à pandemia.

Em menor escala, isso já ocorreu entre nós outras vezes. Que se lembrem dos espaços de silêncio da história brasileira. Lembremos, por exemplo, da natureza da violência estatal para confinar e deixar morrer populações em crises de seca. Foi no Ceará, entre 1915 e 1932, que o Brasil conheceu campos de concentração (sim, esse foi inclusive o termo usado à época) criados em cidades como Senador Pompeu, Ipu, Quixeramobim, Crato e Cariús, destinados a impedir que os flagelados da seca chegassem à capital. Campos nos quais se confinavam milhares de retirantes e se morria em massa por descaso, omissão e indiferença. E vejam que coincidência, o número de mortes é ainda hoje incerto (estimam-se só no Patu, em Senador Pompeu, até 12.000 mortes sem certidão de óbito e em vala coletiva). Ou seja, esse é de fato o modus operandi das Forças Armadas.

Contra a revolta de setores da sociedade diante de tal descaso, as Forças Armadas agora ameaçam o país com um estado de defesa, que suspenderia certas garantias institucionais, e que seria a forma efetiva de um autogolpe de Bolsonaro. No momento em que até tal carta é colocada sobre a mesa, o país não pode mais ser leviano em relação ao impeachment daquele que ocupa atualmente a presidência da república. Há sob sua responsabilidade direta uma somatória de crimes de omissão, de responsabilidade, de incentivo a comportamento que resultaram em um verdadeiro genocídio da população brasileira. Nenhum presidente da república tem tantas razões para ser afastado, julgado e encarcerado quanto o senhor Jair Bolsonaro.

Há um ano, vários foram os que insistiram que a única saída seria o impeachment. Naquela ocasião, não faltaram os que disseram que clamar por um impeachment era colocar a política à frente das exigências imediatas de gestão. Disseram que era importante obrigar o Governo a atuar contra a pandemia, ao invés de dispersar forças em um pedido de impeachment. A história demonstrou, no entanto, que não havia possibilidade alguma de levar Bolsonaro a gerir a pandemia. Ao contrário, ele não desprezou ocasião alguma para colaborar efetivamente para a situação na qual nos encontramos agora, com a população brasileira em estado de máxima vulnerabilidade, insuflando a indiferença em relação à morte e à ausência de proteção efetiva por parte do Estado.

Tudo isso demonstra como há de se lembrar, mais uma vez, que a única saída é o impeachment. E àquelas e àqueles que esqueceram, impeachment se conquista através da ocupação das ruas e do bloqueio das atividades. Os que têm privilégios ligados à segurança fornecida pelo acesso a serviços privados de saúde deveriam usar tal privilégio e forçar o fim deste Governo através da ocupação das ruas. Essa é a única coisa realmente concreta que podemos fazer para defender o país contra a pandemia. E só a certeza da existência dessa força popular que fará as Forças Armadas ocuparem seu único e verdadeiro lugar: esse caracterizado pelo afastamento da vida política nacional, o silêncio em relação à política e o retorno aos quartéis. Um pretenso Governo Mourão, por ser fruto da pressão popular, já nasceria natimorto. Isso até que consigamos enfim uma sociedade que não precise mais de Forças Armadas, pois se defende a si mesma.
Vladimir Safatle

A vacina dos camarotes

Uma das características da pandemia de coronavírus, que certamente será objeto de muitos estudos e pesquisas, é a desigualdade social escancarada que nos revela. A cortina foi rasgada pelo auxílio emergencial: a iniquidade chegava a 56 milhões de pessoas, dos quais 2,6 milhões em São Paulo e 1,6 milhão no Rio de Janeiro, cidades ícones do Sul Maravilha, segundo dados do Portal da Transparência de junho do ano passado. O número de “invisíveis” dependentes dos recursos governamentais ultrapassava meio milhão de pessoas em Salvador (762 mil), Fortaleza (747), Manaus (634 mil) e, pasmem, Brasília (562 mil). No time das 10 cidades com maior número de “flagelados” da crise sanitária, constavam, também, Belo Horizonte (494 mil), Belém (453 mil), Recife (420 mil) e Curitiba (339 mil).

Vejam bem, não estamos falando do Brasil profundo, mas das principais cidades brasileiras, que lideram o nosso desenvolvimento econômico e social, os principais polos da transição do Brasil rural para o urbano, na marcha forçada do nosso modelo nacional-desenvolvimentista. Esse processo melhorou a vida das pessoas da porta para dentro, principalmente da classe média. Entretanto, o crescimento acelerado das cidades deteriorou as condições urbanas e deixou ao abandono a vida banal das periferias e morros, degradando a vida coletiva da porta para fora. Principalmente depois do Plano Real, a economia informal e o empreendedorismo mascararam a gravidade do problema, mitigado, ainda, pelo programa Bolsa família, até que veio a recessão provocada pela pandemia, que destruiu empregos e também provocou um “apagão” de capital.



A conta da pandemia, do ponto de vista fiscal, ainda vai chegar, mas ninguém mais pode ignorar a gravidade do problema social que o Brasil enfrenta, principalmente, as elites econômicas do país. As desigualdades se manifestam em todos os seus aspectos — econômico, social, cultural, étnico e de gênero — e não será a prorrogação do auxílio emergencial que resolverá o problema. É inviável uma política de renda mínima sem um projeto de desenvolvimento, sem política industrial e de comércio exterior, sem reforma tributária e administrativa, sem investimento em ciência e tecnologia, em habitação, transportes e, principalmente, educação. Acontece que, até agora, o governo federal pautou-se pela omissão ou o improviso nas políticas sociais.

Um retrospecto das declarações do presidente Jair Bolsonaro; do ministro da Economia, Paulo Guedes; e do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, mostra um governo errático na condução do país e focado apenas na preservação e fortalecimento do seu poder em relação ao Legislativo, ao Judiciário e aos demais entes federados. O sucesso do Palácio do Planalto nas disputas pelo controle das Mesas da Câmara e do Senado fixará o foco na “guerra de posições” para consolidar um governo bonapartista, que se pretende tutor da sociedade. O problema das desigualdades está fora de sua agenda. A crise sanitária mostra isso. Uma política de transferência de renda com objetivo apenas eleitoral não será sustentável.

A política de saúde pública de Bolsonaro, por exemplo, é inspirada na Lei de Murici: “Cada um sabe de si”, a máxima do coronel Pedro Tamarindo na debandada da terceira campanha de Canudos. O presidente da República sempre se colocou ao lado dos que não querem se vacinar, mesmo depois de os principais líderes mundiais darem o exemplo se vacinando. É o principal responsável pelo desmantelo do Ministério da Saúde na condução da política epidemiológica. Agora, Bolsonaro resolveu defender a compra e a distribuição de vacinas por empresas privadas, entre elas, a Petrobras e a Vale, para imunizar seus funcionários, furando a fila do Programa Nacional de Imunização, para manter a atividade da economia. A doação de metade das vacinas para o Sistema Único de Saúde (SUS) legitimaria o privilégio. Teremos a vacina dos camarotes, para usar uma expressão do meu xará Luiz Carlos Rocha, advogado de Curitiba, enquanto a “pipoca” espera a vez nas filas do SUS, devido ao descaso e às trapalhadas do general Pazuello na Saúde.

Acontece que a Lei de Murici pode ser a senha para um desastre anunciado, como na retirada de Canudos. Tudo começou quando o sanguinário coronel Moreira Cezar, no dia 3 de fevereiro de 1897, mudou subitamente de ideia e optou pelo ataque imediato, em vez do cerco a Canudos. O arraial foi duramente castigado pela artilharia. As forças do Exército conseguiram invadir o arraial e conquistar algumas casas. Foram, contudo, obrigadas a recuar, devido à pouca munição. Após cerca de cinco horas de combate, Moreira César foi mortalmente ferido no ventre, quando se preparava para ir à frente de batalha incentivar a tropa.

O comando foi transferido ao coronel Pedro Tamarindo, que decidiu recuar, após sete horas de combate. Moreira César agonizou 12 horas, ordenando que Canudos fosse, uma vez mais, atacado. Em reunião de oficiais, porém, fora decidida a retirada, dado o grande número de feridos, numa marcha de 200 quilômetros até Queimada. Atacada incessantemente pelos jagunços, a tropa debandou. Tamarindo foi morto no Córrego dos Angicos. Seu corpo foi deixado no campo de batalha. Acabou empalado num galho de angico pelos jagunços. A primeira favela do Rio de Janeiro foi formada pelos soldados desmobilizados após a Guerra de Canudos.

A dieta de um governo viciado em leite condensado

Ex-usuário de cloroquina, droga que até hoje prescreve para quem queira se curar da Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro nunca escondeu sua dependência do leite condensado, engolido a seco ou na companhia de um pedaço de pão. Já correu atrás de uma ema com uma caixa de cloroquina na mão. Costuma fartar-se de leite condensado durante encontros com os filhos.

Os gastos com a cloroquina foram jogados na sua conta e ele não reclamou. Pelo contrário: assumiu a paternidade dos milhões de doses produzidas às carreiras pelo Exército e distribuídos em todo o país. Quanto aos gastos com leite condensado, que segundo o site Metrópoles ultrapassaram no ano passado a casa dos R$ 15 milhões, Bolsonaro preferiu jogar na conta das Forças Armadas.

É a lei da compensação. Há mais de 3 mil militares em posições de destaque no governo. Nem na época da ditadura de 64 foram tantos. Em compensação, são obrigados a socorrer o presidente da República sempre que ele se vê em apuros. Foi o que fez o general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa: matou no peito e chutou a bola para fora da grande área.


Com base no Painel de Compras do Ministério da Economia, Metrópoles
mostrou que em 2020 todos os órgãos do governo pagaram, juntos, mais de R$ 1 bilhão em alimentos, um aumento de 20% em relação a 2019. Fora o arroz, feijão, carne, batata frita e salada, houve espaço no carrinho para geleia de mocotó, pão de queijo, pizza, vinho, bombom, chantilly, sagu e até chiclete.

Os valores chamam a atenção. Só em goma de mascar, foram R$ 2.203.681. Sem contar a compra de molho shoyo, molho inglês e molho de pimenta que, juntos, somam mais de R$ 14 milhões do montante pago. Pizza e refrigerante custaram R$ 32,7 milhões. Mais R$ 5 milhões na compra de fruta desidratada. Os frutos do mar não poderiam ficar de fora (R$ 6,1 milhões).

E muito menos peixes in natura e conserva (R$ 35,5 milhões), bacon defumado (R$ 7,1 milhões) e embutidos (R$ 45,2 milhões). Para as sobremesas, muito açúcar: sorvete, picolé, fruta em calda, doce em tablete, cristalizado, para cobertura, granulado ou confeitado. Ao gosto do cliente, por R$ 123,2 milhões. A maior parte das compras está ligada ao Ministério da Defesa. Só em vinhos, R$ 2.512.073.

Daí porque sobrou para o general Azevedo e Silva se explicar, uma vez que Bolsonaro, em dia de conversão a todo tipo de vacina e aos princípios do liberalismo aplicados à economia, não quis falar sobre coisas incômodas. Segundo o general, o ministério tem a responsabilidade de promover a saúde do seu efetivo – composto de 370 mil pessoas “por meio de uma dieta balanceada diária”.

A administração militar, diz a nota do general, “deve esforçar-se para assegurar a excelência da alimentação militar, quer nas Organizações Militares de Terra, quer nos navios... Uma vez que “a defesa do país e a segurança das fronteiras marítima, terrestre e aérea, bem como o treinamento e o preparo, são obviamente essenciais, não podem ser interrompidas”.

Taokey. Mas governar é estabelecer prioridades. Bolsonaro cortou 68,9% da cota de importação de equipamentos e insumos destinados à pesquisa científica. A medida afeta principalmente as ações desenvolvidas pelo Instituto Butantan e pela Fundação Oswaldo Cruz no combate à pandemia. Em 2020, o valor foi de R$ 1,6 bilhão. Para este ano, R$ 499,6 milhões.

Uma dieta balanceada poderia passar sem goma de mascar, molho shoyo, molho inglês e molho de pimenta. Sem pizza e refrigerante, por que não? Sem fruta desidratada, bacon defumado e embutidos. Não daria para ter reduzido à metade os gastos com sobremesas? Só com tudo isso se teria economizado cerca de R$ 122 milhões. Seria menor o corte na área de pesquisa científica.

O valor gasto com leite condensado (R$ 15 milhões) é cinco vezes superior ao que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais recebeu para fazer o monitoramento por satélite de toda a Amazônia, Pantanal e demais regiões do país - R$ 3,2 milhões no mesmo período. 

O Programa Carro-Pipa fornece água potável a dois milhões de pessoas na região semiárida do Nordeste. Existe há 20 anos e cobre 626 municípios. Para sua alimentação e higiene pessoal, uma pessoa precisa de 20 litros de água por dia. Neste momento, o orçamento do programa é de R$ 89,7 milhões para este ano. O Ministério do Desenvolvimento Regional calcula que serão necessários para que o programa não pare R$ 672 milhões. Menos leite condensado, por favor! Menos chicletes!

Fora Bolsonaro, para quê?

Por estranho que pareça, o grito de guerra “Fora Bolsonaro” é falta de agenda, como era falta de agenda o “Fora Temer”. O governo do capitão é desastroso no varejo e no atacado. Diante de uma pandemia, todas as suas ideias e iniciativas estavam erradas. Sua “nova política” aninhou-se no Centrão, o Brasil virou um pária. A tragédia do Amazonas mostrou que o pelotão palaciano gosta de ficar zangado; com João Doria, com a Pfizer, com a China e com quem disser que eles não sabem trabalhar. Mesmo assim, o capitão chegou ao Planalto pela vontade de 57,8 milhões de eleitores, e a Constituição diz que pode ficar lá até o dia 1º de janeiro de 2023.

O grito de “Fora Bolsonaro” é falta de agenda porque não tem base nem propósito. Não tem base parlamentar, e isso foi informado pela senadora Simone Tebet. Não tem base popular porque 28% dos entrevistados pelo Datafolha ainda acham que ele está fazendo o certo no combate à Covid. Sua popularidade está derretendo. O capitão é rejeitado por 40%, mas ainda tem o apoio de 31%. Admitindo que a velocidade desse desgaste prossiga, em um mês ele ainda terá 25% de admiradores.

No mundo dos sonhos de quem grita “Fora Bolsonaro”, se ele for embora, as coisas melhoram. Se isso acontecer, para a cadeira vai o general Hamilton Mourão. Ele é um vice singular. Nada tem a ver com seus antecessores que foram catapultados à cadeira de presidente. Michel Temer e Itamar Franco tinham identidades políticas. Mourão é apenas vinho da mesma pipa da safra de 2018. Foi escolhido numa reunião matutina porque o príncipe de Orleans e Bragança achou que ainda se vivia no Império. Itamar fez discretos acenos à oposição. Temer chegou a anunciar um plano de governo. Para o bem ou para o mal, o general tem sido um fiel comandado do capitão.



Itamar e Temer mudaram o curso das administrações de Fernando Collor e de Dilma Rousseff. Ganha uma fritada de morcego do mercado de Wuhan quem for capaz de desenhar mudanças possíveis com Mourão.

Admita-se que elas podem acontecer. Aconteceram em 1946, quando elegeu-se presidente o general germanófilo Eurico Dutra, um marquês da ditadura de Getúlio Vargas. Em primeiro lugar, Dutra elegeu-se. Além disso, empalmou a essência da plataforma da oposição democrática. Se o “Fora Bolsonaro” tivesse propostas além do “Fora”, o grito de guerra teria um conteúdo. Não só ele lhe falta, como a oposição ao presidente ainda não tem propósito. Olhando para o fim da ditadura, vê-se que Tancredo Neves encarnava uma proposta.

Bolsonaro meteu o andar de cima e suas Forças Armadas na ruína que hoje está personificada no general Eduardo Pazuello. Ele foi para o lugar de Luiz Henrique Mandetta, que tinha um plano, e de Nelson Teich, que não cumpria ordens de leigos. A pandemia era uma “gripezinha”, que em dezembro estava no “finalzinho”, pois a segunda onda era uma “conversinha”.

O capitão ainda tem quase dois anos de mandato, e sua capacidade de produzir crises desnecessárias é infinita. Como disse o senador Tasso Jereissati, será preciso “trincar os dentes” para atravessá-los. O “Fora Bolsonaro” exige um apenso: “Para quê?”.

Pelo andar da carruagem, essa pergunta precisa entrar na agenda. Ela poderá ser respondida no ano que vem.

Brasil entupido

 


Novos xingamentos contra Bolsonaro

Desde sua posse, Jair Bolsonaro já foi chamado de cretino, grosseiro, despreparado, irresponsável, omisso, analfabeto, homófobo, mentiroso, escatológico, cínico, arrogante, desequilibrado, demente, incendiário, torturador, golpista, racista, fascista, nazista, xenófobo, miliciano, criminoso, psicopata e genocida. Os autores dessas desqualificações são cidadãos comuns que escrevem mensagens para os jornais, produzem memes e entopem as redes sociais. Está tudo registrado e seria divertido ver o governo processar tal multidão.

Nenhum outro governante brasileiro foi agraciado com tantos epítetos, a provar que a língua é rica o bastante para definir o pior presidente da história do país. Mas é inútil, porque nada ofende Bolsonaro. Ele se identifica com cada desaforo.



Afinal, foi quem rebaixou o Brasil ao nível de estrebaria de quartel, ao inundar os lares com um vídeo sobre golden shower, chamar um jornalista para a briga (“Minha vontade é encher a sua boca de porrada!”) e ejacular mais palavrões numa reunião ministerial do que em todas as reuniões ministeriais somadas desde 1889.

Seus seguidores absorvem tudo isso porque ainda acreditam que ele livrou o Brasil da corrupção. Não se perturbam com o fato de que Bolsonaro subverte as leis para impedir que seus filhos se sentem no banco dos réus —por corrupção. E não percebem que ele é que é, ao contrário, o grande corruptor —da Justiça, do Exército, da diplomacia, do meio ambiente, da saúde. É o Midas do terror. Ao seu toque, tudo ganha cheiro de vela e se decompõe.

Nos últimos dias, Bolsonaro ganhou dois novos epítetos populares. Um, o de covarde, ao jogar a culpa por seus crimes nos ministros que ele mesmo escolheu e doutrinou.

Outro, e que só agora começa a ser percebido por seu próprio público, o de traidor, ao se pôr de quatro diante dos países, pessoas e instituições que ele ordenou odiar.

Haja alfafa para 'cavalões'

(Os militares) cumprem ações que requerem, em grande parte, atividades físicas ou jornadas de até 24 horas em escalas de serviço, demandando energia e propriedades nutricionais que devem ser atendidas para a manutenção da eficiência operacional e administrativa com a disponibilização de uma dieta adequada
Ministério da Defesa em nota sobre os gastos com "alimentação" nas Forças Armadas

Governo inexistente

A palavra do presidente Jair Bolsonaro não vale nada. Diz algo num dia para desmentir suas próprias declarações no dia seguinte, desmoralizando-se como chefe de governo. Bolsonaro tornou-se sinônimo de caos – sua especialidade desde que aprontava como militar indisciplinado.

A rigor, sua gestão nem pode mais ser chamada de “governo”, pois um governo presume alguma direção, projetos claros e liderança política razoavelmente sólida. Bolsonaro não inspira nada disso: é, ao contrário, fonte de permanente inquietação e desorganização.

Para o País que trabalha e produz, está claro que não se deve contar com um governo que não existe mais, se é que algum dia existiu. Pior: é preciso encontrar maneiras de defender a vida e o patrimônio da dilapidação institucional e administrativa promovida pelo bolsonarismo.

Raros são os ministros de Bolsonaro que se salvam. A mediocridade é tamanha que o País aplaude quando um ministro não faz mais que sua obrigação e não atrapalha seu setor. Em áreas estratégicas, como Educação, Saúde, Meio Ambiente e Relações Exteriores, há mais do que simples incapacidade: Bolsonaro colocou ali ministros cuja missão parece ser a de ajudá-lo a vandalizar o Brasil.

De vez em quando, alguém lembra do dever de chamar esses sabotadores à responsabilidade. Atendendo a uma representação do partido Cidadania, que acusa o almoxarife que comanda a Saúde, Eduardo Pazuello, de omissão diante da crise de desabastecimento de oxigênio para doentes de covid-19 em Manaus, a Procuradoria-Geral da República requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a instauração de inquérito.

Não deve ter sido fácil para o procurador-geral da República, Augusto Aras, fazer o requerimento, mas, premido pela indignação nacional, decidiu afinal tomar alguma providência, e o ministro do STF Ricardo Lewandowski rapidamente atendeu ao pedido de inquérito.



A insanidade no Ministério da Saúde, que agora se tornou caso de polícia, retrata com fidelidade a essência do governo Bolsonaro – mas, em defesa do intendente, enfatize-se que a responsabilidade final e soberana é de quem o colocou lá.

Foi Bolsonaro quem passou os últimos meses a fazer campanha contra a vacina, contra o distanciamento social e contra as autoridades que trabalhavam para conter a pandemia. Promoveu aglomerações, receitou remédios inúteis e perigosos e escarneceu de mortos e doentes.

Pazuello, portanto, não é causa, mas consequência de um catastrófico desgoverno – cujo presidente ninguém de bom senso leva mais a sério e cujo principal fiador, o outrora superpoderoso ministro da Economia, Paulo Guedes, sai de férias e ninguém dá pela falta.

Aos brasileiros aflitos com as sombrias perspectivas econômicas após o fim do auxílio emergencial, Bolsonaro reserva o mais absoluto desdém: “Lamento muita gente passando necessidade, mas nossa capacidade de endividamento está no limite”. Ou seja, Bolsonaro não perde o sono diante do sofrimento de milhões de brasileiros a quem lhe coube governar e não toma nenhuma medida para cortar gastos e viabilizar o imprescindível auxílio emergencial.

Tampouco se empenha pelas reformas e pelas privatizações. A recente renúncia do presidente da Eletrobrás, Wilson Ferreira Júnior, está diretamente relacionada à dificuldade de tocar adiante a privatização da estatal, em razão da falta de envolvimento de Bolsonaro. Não foi o primeiro a abandonar o barco por frustração das expectativas criadas pelo discurso supostamente liberal de Bolsonaro – no qual só acreditou quem quis.

O objetivo de Bolsonaro na política sempre foi o de salvaguardar os interesses de seu clã. Não é por outro motivo que entrou de cabeça no processo sucessório das Mesas Diretoras do Congresso. Quer ali políticos que lhe sejam fiéis o bastante para livrá-lo do impeachment, blindar a filharada e, de quebra, aprovar meia dúzia de projetos para agradar a sua base de fanáticos. Os mortos, os doentes, os desempregados e os famintos só lhe interessam na exata medida de seu projeto de reeleição. Foi a isso que Bolsonaro reduziu a Presidência da República.

Pazuello deveria pleitear uma delação premiada

O coronavírus deixou Brasília mais surrealista do que o habitual. Improvisado na função de ministro da pandemia, o general Eduardo Pazuello foi alvejado por duas investigações —uma no STF, outra no TCU. Em ambas terá que explicar os mistérios da cloroquina. Há no polo passivo dos processos uma grande ausência. Falta ao enredo o protagonista: Jair Bolsonaro.

Por ordem do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, Pazuello será interrogado pela Polícia Federal nos próximos dias. Responderá por suas ações e omissões no colapso hospitalar do Amazonas. Terá de esclarecer, por exemplo, por que sufocou Manaus com 120 mil comprimidos de hidroxicloroquina num instante em que os pacientes de Covid morriam asfixiados, por falta de cilindros de oxigênio.

Por determinação do ministro Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas da União, Pazuello terá de se explicar por escrito. Foi intimado a esmiuçar as razões que levaram o ministério que supostamente comanda a despejar na rede hospitalar do SUS lotes de hidroxicloroquina para ser usados no "tratamento precoce" da Covid. Distribuiu remédio ineficaz "sem amparo legal."



Todo investigado, como se sabe, é inocente até prova em contrário. Entretanto, no caso da prescrição da cloroquina como elixir anti-Covid, Jair Bolsonaro, um presidente sem comprovação científica, tornou-se a própria prova em contrário. Falta ao capitão apenas descobrir que existe um remédio para cada culpa: reconhecê-la.

Pazuello já esclareceu que comanda a pasta da Saúde, convertida numa espécie de ministério de campanha, guiando-se por um lema marcial: "Um manda e o outro obedece." Transformado em boi de piranha, aquele bicho que é jogado na água para ser comido enquanto o resto da manada passa, o general talvez devesse pleitear um acordo de delação premiada.

Se o suor do dedo não for suficiente, há um sem-número de entrevistas e lives do presidente. Há também os desembarques de Mandetta e Teich, que se recusaram a avalizar impensável. No limite, Pazuello pode arrolar como testemunha de defesa uma das emas do Palácio da Alvorada. Armado de caixa de cloroquina, Bolsonaro ameaçou a ema na frente das crianças e dos repórteres.

Vá lá que as autoridades de Brasília queiram poupar o presidente. Mas é preciso maneirar. O surrealismo, quando é demasiado, ofende a inteligência alheia.

Indigestão cívica

Na coluna de ontem, citei estudo da cientista política professora Kathryn Hochstetler, hoje na London School of Economics (LSE), que aponta três razões para um presidente não terminar seu mandato na América do Sul: ausência de uma maioria parlamentar de apoio ao presidente, mobilização popular e envolvimento pessoal do chefe de governo com escândalos de corrupção. 

Citei os dois primeiros para dizer que o presidente Bolsonaro estava blindado pelo acordo com o Centrão e pela pandemia de COVID-19, que impede ou dificulta manifestações populares. Não falei sobre corrupção, e muitos adeptos do governo viram nisso uma tentativa de não enfrentar uma questão da qual, dizem, Bolsonaro está livre. O próprio Bolsonaro vive dizendo que nunca foi descoberto um escândalo de corrupção em seu governo, o que verdade relativa. 

A Controladoria-Geral da União (CGU) detectou em 2019 irregularidades em uma licitação de R$ 3 bilhões do Ministério da Educação ( MEC ). O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação ( FNDE ) financiaria a compra de equipamentos de informática como computadores, notebooks, projetores e lousas digitais para escolas de todo o país dentro do Programa Educação Conectada.  

Relatório oficial identificou que a licitação estimou um número maior do que o necessário de computadores a serem adquiridos, usando critérios falhos e sem base técnica. A investigação constatou que 355 escolas encomendaram mais laptops do que seu número real de alunos. “O caso que mais chamou a atenção diz respeito à Escola Municipal Laura Queiroz, do município de Itabirito/MG, que registrou a demanda de 30.030 laptops educacionais, embora a escola só tenha registrada na planilha o número de 255 alunos (117,76 laptops por aluno)”, registrou a CGU em seu relatório. 



Embora a maracutaia tenha sido interrompida por um órgão de fiscalização do governo, até hoje não se soube o responsável pelas deformações da licitação e o presidente do FNDE naquela altura, Carlos Alberto Decotelli, acabou nomeado ministro da Educação por Bolsonaro. Não resistiu porém às imperfeições do próprio currículo, recheado de informações falsas sobre seus diplomas e vida acadêmica. 

Agora mesmo temos um escândalo que seria cômico se não fosse trágico. Uma reportagem do portal Metrópoles revelou que o governo federal adquiriu no ano passado nada menos que R$ 15 milhões em latas de leite condensado, o equivalente a mais de 2,5 milhões de latas do produto que Jair consome em seu café da manhã no Palácio do Alvorada. Outra extravagância foi gastar R$ 2,2 milhões em chicletes, R$ 8,9 milhões em bombons e R$ 31,5 milhões em refrigerantes. São números que merecem ser investigados, chamam a atenção do mais desatento dos auditores. 

Além dessas questões pontuais de potencial corrupção, o presidente Jair Bolsonaro e sua família estão envolvidos em investigações sobre desvio de dinheiro público no tempo em que eram todos parlamentares. As “rachadinhas” que beneficamente o hoje senador Flávio Bolsonaro quando era deputado estadual estão sendo investigadas, e o envolvimento da família com milicianos pode ter desdobramentos. 

A ligação do ex-PM Fabricio Queiroz com os dois tipos de crime, e sua relação antiga com a família assombram desde o inicio o governo. Mesmo que se alegue que tecnicamente nada poderia ser feito, pois os supostos crimes foram cometidos antes de Bolsonaro ser presidente da República, algumas situações reverberaram no atual mandato, como a manobra para esconder Queiroz na casa do advogado pessoal de Bolsonaro em Atibaia; ou o uso das agências de inteligência para ações em órgãos como a Receita Federal para tentar anular as provas contra o senador. Ou a interferência pessoal do próprio presidente na Polícia Federal, com o mesmo intento. 

Não é preciso, porém, que o presidente seja apanhado com a boca na botija, mas a simples demonstração de que ele está envolvido com atos corruptos, por menores que possam parecer, bastaria, num país normal, para que fosse alvo de investigações e passível de impeachment. Não se trata de matar passarinho ou dar cascudo na ema do Alvorada, como disse o ministro Paulo Guedes para tentar desmoralizar o movimento pelo impeachment. R$ 15 milhões em leite moça é de dar indigestão cívica.